Com a jaqueta que lhe deu de presente Evo Morales e uma camisa vermelha que recebeu de Fernando Lugo, Lula propôs a candidatura de Dilma Rousseff à sua sucessão e teve o apoio unânime dos delegados ao IV Congresso do PT. No dia anterior ele tinha recordado – depois de fazer uma homenagem a seu vice José Alencar – como oito anos antes, em convenção do PT realizada no Anhembi, tinha havido um ensaio de vaia, quando o nome de Alencar foi mencionado como seu candidato a vice-presidente.

O que ocorreu entre um momento e outro? Mudou o PT? Mudou Lula? Mudaram as condições? Que partido é esse que, ao contrário da sua tradição anterior, aprovou sem dissensões, a candidatura de Dilma?

Aquele esboço de vaia visava o que seria uma aliança com o grande empresariado, que obstaculizaria a realização do programa da candidatura de Lula. O alvo estava errado, embora a suspeita tivesse fundamento. A aliança para a qual apontaria a Carta aos brasileiros – que permitiu Lula saltar do patamar histórico dos 30% do PT para os 50%, possibilitando sua vitória – não era com o empresariado nacional vinculado ao mercado interno – como era o caso de Alencar -, mas ao capital financeiro, que teria no duo Palocci-Meirelles, seus melhores representantes. (Tão errada era aquela avaliação, que Alencar notabilizou-se, durante os dois mandatos do governo Lula, pela batalha contra as altas taxas de juros, responsabilidade justamente daquele duo.)

Aquele assomo de vaia desembocaria na cisão que levou à formação do Psol, em base à avaliação de que o PT e o governo não estavam “em disputa” – como era a linguagem característica da luta ideológica daquele momento na esquerda -, mas estariam definitivamente perdidos, levados – segundo a linguagem moralista dos dissidentes – pela “capitulação” diante da burguesia e do capitalismo, governo de “gangues”, como diria Heloisa Helena na campanha de 2006. Outros setores críticos preferiram ficar no PT e dar a batalha interna.

O tempo se encarregou de decidir quem tinha razão. O Psol, depois de gozar da lua-de-mel da candidatura de Heloisa Helena – objetivamente aliada com a direita contra a candidatura do Lula -, está reduzido à intranscendência, praticamente desapareceu do campo político, luta desesperadamente agora para não perder os poucos parlamentares que sobreviveram até aqui.

Enquanto o governo e o PT, depois de passarem pela pior crise das suas histórias em 2005, apresentam – como o Congresso recém realizado demonstra – uma força e um vigor que revelam como quem ficou na batalha interna do partido tinha feito uma avaliação correta: havia uma luta interna a dar, havia uma “disputa”, a tal ponto, que o governo Lula mudou e mudou para melhor. (Como se pode ver, entre outros textos, na análise de Nelson Barbosa sobre as duas fases da política econômica do governo Lula, no livro “O Brasil, entre o passado e o futuro”, organizado por Emir Sader e por Marco Aurélio Garcia, editoras Boitempo e Perseu Abramo, recém publicado.)

A mudança fundamental se deu na substituição de Palocci – coordenador real do governo na sua primeira fase, “contingenciador” dos recursos para políticas sociais, com o primado do ajuste fiscal que ele impunha – não por algum discípulo seu, mas por Guido Mantega, que divergia dessas orientação, ao mesmo tempo que a coordenação do governo passou a ser exercida por Dilma Rousseff. O governo assumiu a centralidade do desenvolvimento econômico, estreitamente ligado às políticas redistributivas, deslocando o ajuste fiscal, que até ali tinha sido o foco central do governo. O Estado, por sua vez, retomou seu papel de indutor do crescimento econômico e promotor do conjunto de políticas econômicas que começam a mudar a fisionomia do país.

No seu conjunto, essa virada representou uma segunda fase do governo Lula, responsável pelo extraordinário apoio popular que conquistou, por sua consolidação política e sucesso impressionante na política externa.

Dilma Rousseff surgiu quase naturalmente como a candidata para dar continuidade e aprofundar os avanços do governo Lula, porque representa a melhor expressão dessa nova fisionomia do governo. O PT, por sua vez, recompôs suas forças, referenciando-se, cada vez de forma mais direta, ao governo federal, o que lhe permitiu superar sua crise e voltar a afirmar-se como principal partido brasileiro.

Lula e Dilma, nos seus discursos no Congresso, desconstruíram alguns dos principais supostos do ideário neoliberal: o de que a economia deveria primeiro crescer, para depois redistribuir; que elevação real dos salários leva inevitavelmente à inflação; que o Estado mínimo interessa aos que não necessitam do Estado; que o que chamam de “inchaço “ do Estado é a contratação de médicos, enfermeiros, professores e tantos outros servidores públicos, para fazer política social e não para burocratas sem função social. Reiteram como os bancos públicos e o mercado interno de consumo popular foram decisivos para que o Brasil saísse rápido da crise e para que os pobres não pagassem o preço mais duro dela.

O Congresso revelou como o PT se reafirma como um partido de esquerda, comprometido com um projeto popular e democrático, centrado no desenvolvimento econômico sustentável, na justiça social e na soberania política. Restam muitos desafios pela frente, o maior deles, a organização das imensas bases lulistas, – “subproletárias”, como alguns a chamam -, beneficiárias das políticas sociais do governo, que necessitam organizar-se politicamente, adquirir consciência social e tornar-se sujeitos do novo bloco no poder em processo de construção no Brasil.

O PT sai fortalecido, Lula se projeta como um grande estadista e Dilma se revela como a melhor candidata para dar continuidade e aprofundar o projeto do governo. O IV. Congresso do PT está tão distante daquela convenção de 2002, quanto a herança maldita que Lula recebeu está distante da herança bendita que deixa, na expectativa que Dilma possa dar continuidade na direção da ruptura definitiva do modelo herdado e na construção de um país justo, desenvolvido e soberano.
 

Publicado na Agência Carta Maior em 20/02/2010