Agricultura familiar: estagnação ou retrocesso?
A agricultura familiar possui imensa importância econômica e social no Brasil. Dado inquestionável, estatisticamente comprovado e sem viés “ideológico” nenhum. Ponto! Começo assim o artigo para, já de pronto, espantar bruxas, fantasmas, corvos, espantalhos e outras entidades afins soltas nesse eterno halloween ultradireitista em que temos sido confinados.
Em primeiro lugar, a agricultura familiar é a maior empregadora e retentora da mão de obra no meio rural nacional. Ela responde por praticamente 70% da ocupação dos 15 milhões de trabalhadores do campo. Fenômeno por si só da maior importância estratégica, não apenas pelo que significa para a distribuição interna da renda, mas também pelos efeitos que produz na contenção do êxodo do campo, na sobrevivência das pequenas e médias propriedades e na proteção do meio ambiente e das paisagens interiores.
Para além desse ponto, ainda, boa parte dos alimentos tradicionais (arroz, feijão, leite, mandioca, frutas e hortaliças, entre outros gêneros), tem nessa categoria de exploração dos estabelecimentos rurais sua fonte majoritária de obtenção. De fato, uma das autoridades mais respeitadas na área da economia rural brasileira, Rodolfo Hoffman, analisando os dados do Censo Agropecuário de 2006, creditou à agricultura familiar a produção de 33,1% das quantidades totais do arroz obtido em casca, 69,6% do feijão (considerados todos os tipos), 83,2% da mandioca, 45,6% do milho em grão, 14% da soja, 21% do trigo e 38% do café em grão. Na área da produção de origem animal, seus resultados foram: 57,6% da produção do leite de vaca, 67% do leite de cabra e 16,2% dos ovos de galinha. Além disso, a categoria detinha, em 2006, 29,7% do rebanho bovino, 51% das aves e 59% dos suínos1.
Essas informações oferecidas apenas em termos de quantidade produzida (quilos, toneladas, litros, dúzias e assim por diante), impedem uma avaliação quantitativa direta, exata e adequada da importância da agricultura familiar no bolo da produção rural, haja vista que não se pode somar “alhos com bugalhos”, ou seja, quantidades físicas medidas em diferentes unidades métricas. A única saída, então, é a análise feita a partir de uma unidade comum, ou seja, a partir da transformação de todos os produtos em dinheiro. É o chamado valor da produção agropecuária. Por esse critério, a agricultura familiar respondeu, em 2006, por 33,2% do valor gerado no campo, enquanto a agricultura não familiar ficou com a parcela majoritária de 66,8%.
Trata-se, evidentemente, de uma forma de atender a critérios econométricos de comprovação da importância dessa forma de exploração dos estabelecimentos agropecuários. Porém, não existe nenhuma dúvida de que parte da produção da agricultura familiar não tem como destino os mercados agrícolas. Ou seja, ela é retida na propriedade rural para alimentação e sobrevivência das próprias famílias. Não é preciso ir muito além, então, para perceber a magnitude do significado socioeconômico e cultural da produção familiar e o quanto ele extrapola as simples contabilidades numéricas feitas em gabinetes das mais diferentes orientações políticas e obviamente das mais diversificadas tendências e intenções.
Importância cultural, também? Importância cultural, sim, senhor! Sim, senhora! Em boa parte do mundo civilizado, assiste-se hoje à busca da revalorização das tradições alimentares, como forma potente e eficaz de enfrentar os graves problemas da sindemia global, que agrega, simultaneamente, os efeitos perversos das epidemias da obesidade, da desnutrição e da mudança climática. Trata-se da busca do enfrentamento dos efeitos da desmesurada massificação da produção e consumo de alimentos ultraprocessados, que têm condenado multidões à uma dieta nutricionalmente empobrecida, higienicamente comprometedora da saúde e da vida e culturalmente arrasadora, haja vista que já não nos reconhecemos no que comemos, para arrepio de Hipócrates (que já havia nos ensinado, centenas de anos antes de Cristo, que somos aquilo que comemos).
Já pelo Censo Agropecuário de 2017, recém divulgado (25 de outubro), a agricultura familiar respondeu por 48% do valor da produção de café e banana, 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. Veja-se que estamos falando agora em dados medidos em dinheiro, ou seja, pelo valor da produção agropecuária. Ainda assim, analistas apressados (quiçá muito mal-intencionados) já logo se apressaram em tecer comparações entre dados obtidos anteriormente em termos de quantidades físicas produzidas, com os valores monetários presentes. Ora, pois!
Nesse contexto, já surgem na mídia apontamentos para a queda da importância da agricultura familiar na produção de feijão, a qual teria supostamente decaído de 69,6% (em toneladas) para 42% (em dinheiro). Isso, sim, é que é transformar números em ideologia. O resto é balela!
No Censo Agropecuário de 2017 ocorreram mudanças metodológicas e inovações importantes. Tal fato impede avançarmos mais consistentemente na análise comparada e evolutiva da situação da agricultura familiar no campo brasileiro contemporâneo. A principal mudança diz respeito à própria definição do que é a agricultura familiar (não existe definição universal e constante para ela). Agora, o Censo se pauta pela Lei 11.326, que diz que para ser classificado como agricultura familiar o estabelecimento deve ser de pequeno porte (até 4 módulos fiscais), ter metade da força de trabalho e gestão estritamente familiar e a atividade agrícola no estabelecimento deve compor, no mínimo, metade da renda obtida.
A medida alterou a classificação de quem é e de quem não é agricultor familiar, já que, segundo o próprio IBGE, aumentou muito o número de estabelecimentos em que o produtor está buscando trabalho fora da propriedade rural. Além disso, diminuiu a mão de obra da família no trabalho e o número médio de pessoas ocupadas por estabelecimento agropecuário.
Tal fato, ao menos supostamente, indicaria que as estatísticas ora obtidas sobre a composição e importância relativa da agricultura familiar não indicariam um retrocesso verdadeiro, conforme mostram os números alinhados a seguir. Segundo o próprio IBGE, em realidade, a agricultura familiar – agora medida segundo novos indicadores – teria permanecido “estável” no país.
Dizemos apenas “supostamente”, uma vez que não temos, ao menos nesse momento, estatística para avançarmos muito além desse ponto. Há, assim, que acreditar e aceitar que as fontes externas às atividades desenvolvidas na propriedade na composição da renda familiar rural tenham, de fato, crescido substancialmente nesses últimos anos, haja vista que, em 2006, elas representavam pouco mais do que 8% da receita agropecuária total dos estabelecimentos ocupados pela agricultura familiar. Parte importante dessa renda era, então, composta por aposentadorias (entre 40% e 60%) e auxílios via programas sociais (9%, no caso dos assentados) 2.
Embora com as limitações já discutidas, no período analisado com o intervalo de 11 anos, o número de estabelecimentos ocupados pela agricultura familiar, encolheu, de fato, 9,5%. Dos anteriores 4,305 milhões de estabelecimentos, a categoria decaiu para 3,897 milhões. Se, em 2006, eles representavam 83,2% do total de estabelecimentos agrícolas contabilizados pelo Censo, em 2017, eles somavam uma participação de 76,8% das 5. 073.324 unidades agropecuárias cadastradas. Ao mesmo tempo, a área total ocupada pela produção familiar passou de 81,269 milhões de hectares, em 2006, para 80,891 milhões de hectares, no último ano investigado do período, agregando o equivalente a apenas 23% da área total explorada pela agropecuária brasileira, que é de 351,3 milhões de hectares. Pernambuco, Ceará e Acre têm as maiores proporções de área ocupada pela agricultura familiar. Já os estados do Centro-Oeste e São Paulo têm as menores.
Porém, o fato mais agravado foi revelado pela constatação de que o número de pessoas da agricultura familiar ocupadas no campo caiu 17,6% no intervalo apontado. Em 2016, o total de pessoas nessa situação somava 12,282 milhões. Já, em 2017, esse número havia sido reduzido para apenas 10,116 milhões. A agricultura familiar foi a única categoria de exploração agropecuária a sofrer perda líquida de mão de obra ocupada.
Finalmente, os dados informam, ainda, que, nos últimos 11 anos, houve aumento de 20,4% na utilização de agrotóxicos. De acordo com a pesquisa, 15,6% dos produtores que utilizaram agrotóxicos não sabiam ler e escrever e, destes, 89% declararam não ter recebido qualquer tipo de orientação técnica.
Por qualquer ângulo que se adentre à análise e apreciação da importância da agricultura familiar no Brasil, seus benefícios, resultados e sentidos socioeconômicos e culturais são inegáveis. No entanto, a despeito de toda a sua relevância estratégica, a agricultura familiar é permeada de fragilidades e particularidades, que a tornam suscetível às permanentes ameaças à sua sobrevivência. Por isso, necessita ser protegida e amparada por políticas públicas consistentes, estáveis e duradouras, que sinalizem, com clareza e assertividade, o que um país efetivamente democrático enxerga para o seu futuro. Nisso acreditamos e por isso lutamos, sempre!
Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.
Notas:
1 HOFFMAN, Rodolfo. A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil? Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, 21(1):417-421, 2014.
2 KAGEYAMA AA; BERGAMASCO, SMPP, OLIVEIRA, JTA. Uma tipologia dos estabelecimentos agropecuários do Brasil a partir do Censo de 2006. Revista de Economia e Sociologia Rural 2013;51(1):105-122.