Aprimoramento da violência na gestão da pobreza
Foi somente com o ingresso na sociedade urbana e industrial, a partir da década de 1930, que a incrustada e generalizada violência praticada em suas múltiplas dimensões sobre a pobreza herdada do antigo e longevo mundo agrário começou a se defrontar com a perspectiva da civilidade.
Para um país constituído pela centralidade do castigo das picotas (pelourinhos) no tratamento dos pobres descartáveis (negros que lutavam pela libertação, homossexuais, criminosos em geral) presente nas fazendas escravistas e, posteriormente, nas vilas e cidades, o distanciamento da punição e a publicização do poder não se mostrou tarefa simples na modernidade.
Isso porque o exercício da violência mais vil e brutalizada introduzida pelo sentido da colonização lusitana havia se tornado, com o passar dos tempos, na simbologia do poder público e do respeito à ordem dos grandes proprietários da terra e corporações religiosas e militares.
Com todo o bloqueio recorrente da aristocracia rural às proposições civilizatórias trazidas pelos movimentos emancipatórios de abolicionistas na década de 1880 e tenentistas nos anos de 1930, a solução encontrada foi a legitimação de uma espécie de cidadania regulada a incluir seletivamente parte dos pobres urbanos pelo trabalho.
Sem tocar na questão da terra, restou incorporar, lenta e gradualmente, os pobres residentes apenas nas cidades pela forma organizada da Consolidação das Leis do Trabalho (1943). A sua introdução no regime autoritário do Estado Novo (1937-1945) indicou o quanto a disputa eleitoral travada no reino do voto de cabresto protagonizado pelos proprietários rurais mantinha ainda presente a brutalidade da violência na gestão da pobreza.
Tanto assim que na breve democracia definida por populista entre os anos de 1945 e 1964, a sua interrupção foi justificada pela negação do patronado agrário aos avanços democráticos possibilitados pela perspectiva de inclusão social dos pobres do campo no Estatuto de Trabalhador Rural e nas reformas de base do começo dos anos de 1960, a partir do governo de João Goulart (1961-1964).
De certa forma, o impedimento equivalente ao governo democrático da presidenta Dilma – meio século depois – também não deixa de expressar a reação negativa de ricos e poderosos ao processo de inclusão social crescente das massas empobrecidas no orçamento do governo federal.
Tanto assim que a tese recorrente do “caos fiscal imposto a ferro e fogo pelos porta-vozes midiáticos do dinheiro” somente encontra como solução nas deformas que visam bloquear as portas do acesso aos pobres nos recursos públicos (legislação do teto dos gastos públicos, da flexibilização das leis do trabalho, da destruição da previdência pública, da tributária que não ataca privilegiados e ricos e outras).
Essa mesma parcela, aliás constituída atualmente por cerca de 40 mil proprietários rurais que respondem por cerca de metade das terras agriculturáveis do país, “elegeram” no certame de 2018, mais da metade dos parlamentares federais (deputados e senadores) que tratam de “democraticamente” destruir o código de civilidade implementado a duras penas durante a vigência da sociedade urbana e industrial entre as década de 1930 e 1980.
Com a desindustrialização precoce em curso desde a inserção passiva e subordinada do Brasil à globalização conduzida pelo receituário neoliberal na “Era dos Fernandos” (1990-92, Collor, e 1995-2002, Cardoso), a estrutura da sociedade industrial tendeu a sua própria dissolução e fracionamentos generalizados.
No seu lugar passou a ascender antecipadamente a sociedade de serviços que sem base organizativa e representativa, termina sendo submetida ao resgate das práticas da violência, cada vez mais aprimoradas desde a época das antigas picotas.
Para um país que já detém a terceira maior população carcerária do mundo e responde por 14% da totalidade das mortes violentas do planeta, a emergência de governos dos brutalizados e insensíveis à civilidade não parece mais amedrontar instituições e defensores de um mínimo padrão de justiça pública.
Assim, as massas de antigos pobres e novos empobrecidos herdados das sociedades tanto agrária como industrial sofrem, cada vez mais, o acréscimo da reprodução do descarte emergente no interior da sociedade dos serviços. Para todas elas, contudo, ampliam-se as práticas pretéritas aprimoradas da violência na gestão da pobreza brasileira.
Marcio Pochman é presidente da Fundação Perseu Abramo, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.