Preservação do ECA e da pesquisa Fiocruz põe freio em bolsonarismo
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não vai sofrer as alterações que o partido do presidente, o PSL, havia pedido. Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mantê-lo como está e negou a possibilidade, presente em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) encaminhada pelo partido, de as forças policiais deterem, indiscriminadamente, sem infração cometida além de “perambulação”, crianças e adolescentes.
A apreciação da ADI aconteceu na última quinta, dia 8. No mesmo dia, a Advocacia Geral da União (AGU) autorizou a divulgação de pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Um dos pontos cruciais da pesquisa é desmentir a tese de que há uma epidemia de drogas no Brasil.
São duas derrotas contundentes do bolsonarismo, ainda que pontuais. O PSL, ao acionar o Supremo, pretendia, além de legalizar detenções de crianças e adolescentes baseadas apenas no humor de policiais e congêneres, tornar constitucional a “internação” (leia-se a prisão em unidades como a Fundação Casa, ex-Febem) a partir de um único ato infracional. A ação do PSL pretendia também tirar do Poder Judiciário as decisões a respeito do tema, reservando-as aos conselhos tutelares dos municípios. Algo como uma prisão em primeira instância, sem direito a recurso. A medida pretendida criaria a “carrocinha de crianças”, conforme definiu o advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo, em entrevista à imprensa.
Plano Terra
Já a liberação da pesquisa da Fiocruz, que fora realizada entre maio e outubro de 2015, derruba as pretensões do ministro da Saúde Osmar Terra, que em maio deste ano atacou publicamente a Fiocruz e os dados coletados, dizendo que não eram confiáveis, e embargou a divulgação dos resultados. A razão maior é que a pesquisa nega a tese alarmista, proibicionista e policialesca de que o país estaria mergulhado no uso descontrolado de drogas ilícitas. Ao fazer o contraponto científico à tese plana de Terra, a Fiocruz ajuda a combater as pretensões de detenção e internação compulsória de dependentes de drogas.
Sessão do dia 8, que preservou o ECA
As duas pontas se unem. Se conseguissem fazer passar pelo STF a liberação da “carrocinha de crianças” e tornar prevalente a ideia de que o consumo de entorpecentes é alarmante ao ponto de avalizar o aprofundamento da lógica de “guerra às drogas”, os bolsonaristas teriam dado passo decisivo para esgarçar ainda mais os limites rumo ao autoritarismo legalizado.
Há outras pontas soltas nos quesitos segurança pública e drogas, no entanto. Osmar Terra, ministro adepto das comunidades terapêuticas, conseguiu aprovar mudanças na legislação nacional de prevenção às drogas. Entre elas, a autorização para internar compulsoriamente supostos dependentes químicos. Outra ponta, ainda não aprovada, consta do chamado pacote anticrime de Sergio Moro, que prevê o tal “excludente de ilicitude”, eufemismo para legalizar execuções baseadas apenas no julgamento de policiais e similares.
Divergente do pensamento do ministro e de seu chefe, o estudo da Fiocruz, a partir de pesquisa domiciliar, mostra que 1, 4 milhão de pessoas, ou 0,9% da população, afirmam já ter usado ou usar crack. Grave, mas longe de índices epidêmicos. O álcool, produto de poderosa indústria transnacional, atinge patamares bem mais preocupantes. Dos 46 milhões que afirmam ter bebido pelo menos uma vez durante o mês anterior, 2,3 milhões apresentam características de dependência alcoólica.
Para o psiquiatra Roberto Tykanori, doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp e ex-coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde do governo Dilma, a divulgação da pesquisa da Fiocruz é uma obrigação do governo, por ter sido financiada com dinheiro público e realizada por uma instituição pública de reconhecida qualificação. Importante será a manutenção da realização de novas rodadas da pesquisa, para o acompanhamento do quadro do uso de drogas no país, mostrando sua evolução, afirma o especialista.
A liberação definitiva dos dados – parte deles já havia vazado, a despeito do embargo do governo, lembra Tykanori – ajuda também a não deixar que a versão do governo seja justificativa para uma política policial. Quanto à manutenção do ECA, o psiquiatra afirma que é obrigação do Estado garantir a proteção dos direitos das crianças. “Eu sou contra a permanência de crianças nas ruas”, diz ele. “Mas protegê-las não significa sequestrá-las. O Estado e a sociedade devem proporcionar educação, moradia, saúde”.