As grandes emissoras de televisão não mostram. Os livros de história distribuídos nas escolas não contam. As ricas exposições fotográficas, organizadas por institutos privados, ocultam. Os governos conservadores fingem ignorar. Mas a verdade é que Eunice Longo dos Santos e Raphael Martinelli são duas figuras extraordinárias, cujas histórias ocupam papel incomum na vida da cidade de São Paulo e do Brasil, por serem protagonistas na organização de mobilizações populares que até hoje exercem influência.

Os dois foram homenageados na manhã deste 9 de julho, em cerimônia que marcou o Dia da Luta Operária, data inserida há dois anos no calendário oficial da cidade de São Paulo. Quando criado, por intermédio de projeto de lei do vereador Antonio Donato (PT), o Dia da Luta Operária  comemorava o centenário da Greve Geral de 1917, a primeira realizada no país.

Eunice, hoje com 91 anos, foi a primeira mulher a ocupar cargo na direção do sindicato dos têxteis, que conheceu enquanto participava da organização de uma greve em 1949. Embora as mulheres tenham tido participação decisiva em mobilizações anteriores nas tecelagens da cidade, conforme documentam jornais operários da época, nunca haviam ocupado cargos sindicais. Conhecer Eunice é descobrir acontecimentos que mudaram o curso da história. Alguém aí sabia que setores do governo brasileiro tencionavam enviar tropas para a Guerra da Coreia, para ajudar os Estados Unidos, em 1953? Pois bem: Eunice foi uma das organizadoras, em São Paulo, de abaixo-assinado contra a proposta e a favor da paz. Em 1964, foi cassada pela ditadura militar-empresarial. Como é seu estilo, não desistiu. Em 1984, ela estava na linha de frente pelas Diretas Já.

Raphael fez parte de outra categoria de outrora grande importância estratégica, a dos ferroviários. Começou a trabalhar na São Paulo Railway em 1941. Organizou sindicatos, ajudou a fundar o Comando Geral dos Trabalhadores, central sindical dos anos 1960. Cassado pela ditadura, permaneceu na luta até ser preso. Depois de livre, formou-se advogado e passou a outra trincheira na defesa dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

Homenagem a heróis operários celebra a história não-oficial

Créditos: Dino Santos

Eunice e Raphael recebem troféu de Donato

 

Ambos receberam o Troféu José Martinez, cujo nome homenageia o sapateiro espanhol, imigrante de apenas 21 anos, assassinado pelas forças policiais que tentavam sufocar as mobilizações por melhores condições de vida e trabalho, em 1917.

No dia seguinte à morte de Martinez, 9 de julho, seu enterro reuniu milhares de pessoas, entre amigos e outros pobres e trabalhadores, num cortejo que saiu do Brás rumo ao cemitério do Araçá e que se converteu em grande manifestação contra extensas e desumanas jornadas de trabalho e salários de fome impostos pela oligarquia industrial paulistana. Foi o estopim para a primeira greve geral organizada no Brasil, que nos dias seguintes se espalhou por outras cidades do país.

A comemoração do Dia da Luta Operária também relembrou Lúcio Bellentane, ex-metalúrgico morto há menos de um mês. A viúva Maria Sérgia chorou ao lembrar que Lúcio, preso ainda jovem pela ditadura militar-empresarial iniciada em 1964, havia sofrido profundo desgosto depois de descobrir que parte de sua família iria votar no atual presidente da República, notório defensor da tortura e inimigo dos movimentos populares organizados.

“Torturaram, arrancaram os dentes dele… E teve gente da família que votou nesse ignorante que está aí. Por isso o Lúcio se esforçava tanto em contar o que foi a ditadura, para que essas coisas não se repetissem”, disse Maria.

Ela acredita que foi o desgosto que piorou as condições de saúde do marido. “Eu penso que a história precisa ser contada de verdade. Por isso eu aproveito todas as oportunidades, todos os convites, para falar”, disse ela, ainda trêmula, ao final da cerimônia. Lúcio Bellentane liderou recente processo de pesquisa e denúncia que resultou na revelação de que a Volkswagen foi uma das patrocinadoras do golpe de 64.

Homenagem a heróis operários celebra a história não-oficial

Créditos: Dino Santos

Público no antigo prédio fabril

 

Resgatar a história não-oficial, do ponto de vista das camadas populares, foi o objetivo maior da homenagem feita nesta terça-feira, num prédio centenário, vazio, no bairro do Brás, que naquele distante início do século 20 exibia com vigor sua vocação fabril e operária. Foi numa calçada perto dali, na rua do Bucolismo, que há 102 anos tombava Martinez.

“Essa cerimônia é uma disputa para ver quem faz a história. É disputar a memória: quem faz o presente e o futuro”, disse Gilberto Maringoni, que assina o desenho do busto de José Martinez, que virou troféu esculpido por Enio Squeff.

Para Clara Ant, fundadora da CUT, ex-deputada e integrante do gabinete do presidente Lula, a luta pela preservação da memória deve passar a integrar as pautas de reivindicação dos movimentos populares e dos sindicatos. “Como nossos filhos saberão o que ocorreu entre a derrubada da Dilma e a prisão do Lula? Pelo o que a Globo fala ou por aquilo que nós vamos contar?”, argumentou.

O historiador José Luiz Del Roio, colaborador de Antonio Donato na formatação das homenagens de hoje – e por isso mesmo chamado pelo vereador de “patrono do Troféu José Martinez” – ilustrou a importância de a classe trabalhadora se apropriar de sua própria narrativa. “Hoje comemoramos dois acontecimentos importantes. A greve de 1917 e a luta dos operários durante os bombardeios que a cidade sofreu em 1924”, disse, em referência aos ataques aéreos desferidos pelo presidente Artur Bernardes, na tentativa de sufocar a revolta liderada pelo movimento tenentista contra o governo central. No dia 9 de julho daquele 1924 houve o mais intenso ataque à cidade, inclusive sobre o bairro do Brás. “Aquele episódio em São Paulo foi um dos embriões da Coluna Prestes”, explicou Del Roio.

Enquanto acontecia a celebração no antigo prédio fabril do Brás, do outro lado da cidade, em torno do Obelisco do Ibirapuera, ocorriam as comemorações oficiais da chamada Revolução Constitucionalista de 1932, razão do feriado estadual. “Aquilo foi uma tentativa fracassada da oligarquia cafeeira de tentar deter as transformações que iniciava, ainda que de forma autoritária, o governo Vargas”, comentou Donato.

Homenagem a heróis operários celebra a história não-oficial

Créditos: Dino Santos

Lula esteve lá

 

Desde sua segunda edição, as comemorações do Dia da Luta Operária contam com a participação de todas as centrais sindicais e de historiadores e estudantes universitários. Donato, idealizador do projeto, encerrou a cerimônia com um apelo: “Eu desejo que esse 9 de Julho seja assumido por todas as centrais, para que a comemoração ganhe as ruas nos próximos anos”.

No encontro na rua do Bucolismo foram entoadas as canções “A Internacional” e “Bella Ciao”, hinos mundiais da luta operária, com acompanhamento de trompete. Ah, e o “Lula Livre” também. Por falar em Lula, a plateia de aproximadamente 300 pessoas votou a favor, à moda de uma assembleia, para que o Troféu José Martinez de 2020 seja entregue ao ex-presidente.