Os vagões de Guedes não empurrarão a locomotiva
Apesar das quinze reduções consecutivas nas estimativas do mercado a respeito da taxa de crescimento do PIB esperada para 2019 (no último dia 10 de junho a média dos analistas consultados pelo Relatório Focus do BC projetava um crescimento de apenas 1% para o ano) há ainda alguns gatos pingados que enxergam a possibilidade de retomada da economia no segundo semestre. Será?
Para refletir sobre a questão, uma metáfora ferroviária. Nela, o país seria o trem em movimento. A locomotiva, com seus quatro grandes motores, seria a “demanda agregada”. E os vagões carregados de fatores de produção (gente, equipamentos, combustíveis, conhecimento etc.), a “oferta agregada”.
Entre os especialistas, todos concordam que o trem está em movimento, mas há grande divergência sobre como fazer o comboio andar mais rápido. Há aqueles que estão mais atentos aos aspectos macro e que, por conseguinte, priorizam o desempenho dos quatro motores da locomotiva (investimentos, consumo das famílias, gastos do governo e saldo comercial). No economês, estes estão mais próximos do “keynesianismo”.
Há uma outra turma, porém, que acredita que a “locomotiva” segue um ritmo dado, isto é, sua capacidade de arrasto é condicionada por aspectos tecnológicos, naturais e históricos que não podem ser alterados pela vontade dos homens no curto prazo.
Por conta disso, para melhorar o desempenho do trem, esse grupo de especialistas prefere pensar na eficiência dos vagões (se estão bem conservados, se podem ficar mais leves, se a tripulação está animada, se as rodas podem gerar menos ruídos etc.). Pode-se dizer, portanto – com o perdão da simplificação -, que estes especialistas priorizam a dimensão microeconômica e apostam suas fichas na melhora das condições de oferta. No mundo dos economistas, se aninham em torno do pensamento neoclássico, são também os chamados ortodoxos ou neoliberais e se notabilizam pela crítica às tentativas de intervenção política (estatal) no funcionamento da locomotiva.
Pois bem, e como tem andado o trem Brasil?
Sob a perspectiva das condições de oferta, algumas transformações de grande monta aconteceram nos últimos anos. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos e a rigidez do uso do fator trabalho; depois de longos anos carregando dívidas, tanto empresas quanto as famílias estão hoje um pouco mais aliviadas; houve também uma pequena redução da carga tributária efetiva.
Por conta da brutal recessão, os juros diminuíram e o crédito ficou um pouco mais barato, há farta disponibilidade de mão-de-obra (barata), grande capacidade ociosa nas empresas e, por que não dizer, um relativo entusiasmo da tripulação da primeira classe com a agenda econômica do superministro Paulo Guedes. Ou seja, sob a perspectiva da oferta, a situação melhorou ou pelo menos não parece haver muito mais o que fazer.
Já pelo lado da demanda, isto é, da locomotiva, a situação não poderia estar pior. Os quatro motores estão pifando e o maquinista, Sr. Posto Ipiranga, segue anunciando que não gosta de motores. Vejamos mais atentamente como estão cada um dos nossos motores.
O consumo das famílias: (o motor com maior amplitude e que consegue fazer o trem reagir mais rapidamente) está estagnado. Com o desemprego em nível recorde e 28 milhões de brasileiros na chamada condição de “subutilizados” (uma em cada quatro pessoas ativas precisa e gostaria de trabalhar mais) há uma óbvia retração da propensão a consumir das famílias: seja porque estão entre aquelas com renda insuficiente, seja porque, mesmo tendo renda, estão preocupadas com o quadro geral e pisam no freio. Além disso, apesar das quedas observadas na inadimplência e nas taxas de juros, ainda são muitos os que carregam dívidas pretéritas e parecem pouco estimuladas a ingressar em novo ciclo de endividamento.
O saldo comercial: (motor que depende menos das nossas ações internas de curto prazo e que está fortemente relacionado à dinâmica do comércio mundial), embora siga no campo positivo, vem perdendo fôlego nos últimos dois anos. A retração das taxas de crescimento econômico dos principais parceiros comerciais do Brasil – em especial da Argentina – tem impactado negativamente as exportações, principalmente de produtos manufaturados e com maior intensidade tecnológica – cabe alertar que não são poucos os especialistas que projetam uma contração mais severa do comércio internacional em 2020.
Os gastos do governo: (motor de grande porte e com maior capacidade para induzir os motores do consumo e do investimento e cuja maior qualidade é seu caráter autônomo, isto é, pouco depende do que ocorre no conjunto do comboio e por isso é especialmente importante para ser dinamizado quando os demais fraquejam) estão se contraindo, orientados pela insistência na política de austeridade fiscal. Ano após anos, desde 2015, o setor público brasileiro vem cortando gastos e postergando despesas, engessado por um conjunto de normas legais (teto de gastos, Lei de Responsabilidade Fiscal, regra de ouro) contraproducentes e que só fazem aprofundar a crise.
Investimentos: (talvez o motor mais nobre da locomotiva, tem a qualidade de quando acionado não apenas transmitir potência aos outros motores, como consegue ampliar a produtividade da locomotiva para melhor enfrentar os vales e curvas do porvir) segue no pior patamar da história (oscilando entre 15% e 16% do PIB) e tudo indica deverá demorar a se recuperar. Primeiro porque há grande ociosidade no setor manufatureiro (hoje utilizando apenas 75% da capacidade instalada) e, segundo, porque para ser estimulado a ponto de atiçar o “animal spirit” que habita cada capitalista, depende da estabilidade de um conjunto de circunstâncias (econômicas, sociais e políticas) que está longe de se verificar.
Tudo considerado e partindo do princípio de que a economia brasileira só encontrará o caminho da recuperação se forem mobilizados alguns motores da demanda, resta concluir que o país está malparado. Mesmo as medidas oportunistas que têm sido ventiladas pelo governo não parecem suficientes para dar potência à desgovernada locomotiva. Senão:
As privatizações das subsidiárias da Petrobras e de outras estatais correspondem fundamentalmente à troca de posições patrimoniais e não devem induzir maiores volumes de investimento. O pouco que vier a ocorrer deverá maturar somente em meados do próximo ano.
A cessão onerosa de poços do pré-sal deve injetar algo como 110 bilhões der reais no caixa do governo federal. Deste total, uma parte (especula-se que setenta bilhões) seria repassada para estados e municípios em troca do apoio de suas bancadas à reforma da Previdência. Essa grana, sem dúvida, dá um alento aos entes federativos, mas em grande parte será utilizada para remendar orçamentos já muito esgarçados pela crise (salários e obras atrasadas, projetos adiados). Isso deve ajudar a movimentar um pouco a economia local, mas de forma muito residual e prolongada no tempo, até porque estes recursos só se farão presentes nas máquinas públicas no primeiro trimestre de 2020.
Quanto ao montante que ficará com a União, cabe lembrar que por desdenhar dos motores, Guedes pretende utilizar a folga no caixa para abater dívida pública, ou ao menos não deixar que ela cresça, o que significa que não serão transformados em gasto novo e pouco ajudarão a economia real.
As concessões (algumas já realizadas) em curso, são sem dúvida instrumentos importantes para induzir o investimento privado, especialmente no setor de infraestrutura de transporte. Entretanto, pela complexidade e escala dos projetos, seus efeitos dinâmicos devem demorar para engrenar e, na melhor das hipóteses, só entregarão resultados palpáveis em meados de 2020.
A liberação das contas do FGTS é uma alternativa apontada pelo governo para impulsionar o consumo. Estima-se que algo entre vinte e trinta bilhões de reais dos recursos retidos pelo FGTS poderiam ser sacados pelos trabalhadores, o que certamente produziria algum impacto no consumo agregado. A medida, contudo, além de não ser suficiente para impulsionar a retomada (vale lembrar que Temer liberou 44 bilhões de reais do FGTS em 2017, promovendo algum alívio, mas sem força para reanimar a economia) compromete o financiamento de obras nos setores de infraestrutura de saneamento e de habitação, os quais teriam um efeito dinâmico mais duradouro e disseminado.
A virtual aprovação da reforma da Previdência não irá trazer qualquer força adicional à demanda. Primeiro porque, pelo contrário, irá reduzir a renda disponível dos aposentados e pensionistas e dos trabalhadores da ativa (que terão que contribuir com maiores alíquotas). Segundo porque a lorota que prega que os investidores ficarão mais confiantes e mais inclinados a investir não tem respaldo na realidade. O capitalista investe se há previsibilidade quanto à sustentação da demanda em médio e longo prazo. Ou será que alguém acredita de fato que algum empresário irá comprar um caminhão ou alugar um galpão novo apenas porque houve alteração nas regras no sistema de aposentadorias da nação?
No frigir dos ovos, o que resta concluir é que, por um lado, não há razão para acreditar em recuperação do trem da economia brasileira neste ano de 2019. Já há consultorias do sistema financeiro apostando em crescimento de apenas 0,5%. Mesmo que Guedes se renda à importância dos motores, é demasiado tarde para conseguir produzir algum efeito antes de 2020. Por outro lado, a história demonstra que quadros depressivos como o que parece o atual só podem ser revertidos com uma decisiva e vigorosa ação anticíclica do gasto público. Mas, como este governo repele veementemente essa alternativa, é possível dizer que o país seguirá se arrastando nesta anemia econômica até que haja uma completa inversão na condução da política econômica.