Internação à força de dependentes é mais cara e menos eficaz
O Diário Oficial da União trouxe na edição da última quinta, dia 6 de maio, a mais recente, porém velha em sua concepção, lei sobre prevenção do uso de drogas e tratamento de dependentes químicos.
Um dos principais pontos da lei 13.840/2019 é autorizar a internação à força dos dependentes, sendo necessário o entendimento de um médico, a pedido da família ou de outro profissional de saúde.
O modelo agora adotado pelo governo federal é rejeitado em diversos países e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma das razões é sua baixa taxa de eficácia e seu alto custo. As internações custam mais caro, a verba disponível atende menos pessoas e os índices internacionais de recuperação de dependentes é menor do que o modelo de redução de danos, que o Brasil vinha adotando.
“No mundo, temos a compreensão de que 25% a 27% dos dependentes que passam pela redução de danos conseguem parar o uso ou reduzi-lo para níveis não prejudiciais. Isso pode parecer pouco, mas é de longe o melhor resultado que a prática internacional tem”, explica Edcarlos Correa de Farias, psicólogo e autor de tese de mestrado sobre o tema, apresentada e aprovada pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em 2017.
As estatísticas são mais modestas quando se debruçam sobre quem passou por internação involuntária. “Você não chega a 2% de eficácia. Já na internação voluntária, quando o dependente toma a decisão de se internar, a taxa não passa de 10%”, completa Edcarlos, que trabalha em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD) na cidade de Campinas.
O custo também é um problema do modelo que só aceita como método de tratamento a internação. O governo do Estado de São Paulo, por exemplo, gasta 1.350 reais por mês por cada paciente do programa Recomeço, inspirado na internação e obrigatoriedade de abstinência pelo tempo em que o paciente estiver recluso.
Com quantia semelhante, um Caps atende mais pessoas. Os Caps são unidades de saúde mental abertas, com atendimento multidisciplinar – médicos, enfermagem, psicólogos, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos. Parte dos pacientes pode conjugar o tratamento com trabalho e convivência familiar. Em casos extremos, quando o dependente está em situação de risco, a rede de Caps também prevê a internação, com consentimento de familiares.
O modelo agora privilegiado pelo governo Bolsonaro prevê que só abstinentes podem ser tratados. Ao fim do período de internação, o paciente é liberado de volta às ruas. Segundo Edcarlos, o fato de o tratamento não ter envolvido as famílias e a volta às ruas não prever manutenção do tratamento facilitam as recaídas. “A maioria das pessoas que saem de uma internação e retomam o uso das substâncias, voltam de maneira mais intensa ainda do que quando foram internadas. Porque geralmente tem a frustração da abstinência, é criada uma expectativa na pessoa e na família. Quando o paciente não corresponde, quando recai, a família desiste”, explica o especialista.
“Quem vai ao Caps e não consegue parar de vez, se precisar vai ter atendimento de novo. A pessoa sempre vai poder receber algum tratamento. Por isso esse modelo é o recomendado pela OMS”, diz Edcarlos. “Já com a obrigatoriedade da abstinência, quem não conseguir parar de vez não vai ser atendido”, completa.
Comunidades terapêuticas
A lei estabelece que é “vedada a realização de qualquer modalidade de internação nas comunidades terapêuticas”, designando para esse fim apenas os hospitais gerais e “unidades de saúde”.
As comunidades terapêuticas são propriedades privadas – muitas ligadas a igrejas ou associações religiosas – cujo método de tratamento, em sua maioria, corresponde à internação, segundo puderam comprovar inspeções realizadas em conjunto pelo Conselho Nacional de Psicologia e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Até o ano passado, fazia parte desse esforço também o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, do agora extinto Ministério dos Direitos Humanos.
Apesar de a lei excluir formalmente essas comunidades terapêuticas das futuras internações, não significa que isso não ocorrerá. Especialmente porque os Caps, que respondem pela maioria dos atendimentos ambulatoriais abertos, sofreram cortes de recursos financeiros em virtude da PEC 95, que congelou investimentos em políticas públicas por 20 anos, e também em virtude da suspensão de repasses de 78 milhões de reais no final do ano passado.
Na direção oposta, o governo Temer havia adicionado 87 milhões de reais para as comunidades terapêuticas, no primeiro semestre do ano passado. Essa combinação entre subtração e adição deve resultar em maior número de encaminhamentos para as comunidades terapêuticas e esvaziamento dos Caps.
Na interpretação de Edcarlos, ao “vedar” internação em comunidades terapêuticas, a nova legislação faz jogo semântico. Primeiro, porque em seu discurso oficial essas instituições negam que essa seja sua única prática. Segundo, porque parte delas não conta com equipes terapêuticas multidisciplinares, o que é exigido formalmente para proceder internações. Na prática, porém, esse deve ser o destino de parte dos futuros internados.