Criação do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais (1956-1969)[1]
O interesse pela história do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais não é apenas reconstituir a sua memória real no ano em que a pesquisa aplicada em Geografia, na Bahia, está completando 42 anos, mas também fazer um importante registro da evolução dos estudos geográficos científicos em nosso Estado nessas quatro décadas.
O interesse pela história do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais não é apenas reconstituir a sua memória real no ano em que a pesquisa aplicada em Geografia, na Bahia, está completando 42 anos, mas também fazer um importante registro da evolução dos estudos geográficos científicos em nosso Estado nessas quatro décadas.
O material que se segue é uma síntese dos dados recolhidos pela pesquisadora, ao longo do período setembro/98 e julho/99, sobre o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia (LGERUB), instituição de que se derivou o atual Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia.
Como consta do projeto que norteou a realização da pesquisa, era seu objetivo reconstituir a criação e a vida do Laboratório, identificar e localizar os indivíduos que dele fizeram parte, recuperar e catalogar sua produção científica e, finalmente, realizar o levantamento da influência de seu criador, o professor Milton Santos, nessa produção.
Para a consecução desses objetivos, foi necessário lançar mão de ampla pesquisa sobre os documentos ainda existentes[2], realizar entrevistas, recolher pronunciamentos verbais do próprio professor Milton Santos e de Michel Rochefort (da Universidade de Paris I – Sorbonne), consultar jornais da época e realizar o levantamento dos trabalhos resultantes das pesquisas realizadas no Laboratório[3].
Os resultados aqui apresentados, apesar de expressivos, são ainda parciais, faltando o detalhamento da fase da história que vai de 1965 a 1969, cujos acontecimentos mais importantes são apenas aflorados.
A Criação e a Vida do Laboratório
A segunda metade dos anos 50 representa um marco para a ciência geográfica na Bahia. Em 1956, instala-se, no Rio de Janeiro, o Congresso Internacional de Geografia, ocasião em que acontece o encontro do jovem professor Milton Santos com o Prof. Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg, França. Após o Congresso, o Prof. Milton Santos, Bacharel em Direito, Editorialista do jornal mais importante da cidade, A Tarde e professor da Faculdade Católica de Filosofia da Bahia, segue para Strasbourg, de onde volta, em 1958, com seu doutorado em Geografia, juntamente com jovens colegas como Tereza Cardoso da Silva, Ana Dias da Silva Carvalho e Nilda Guerra de Macedo (morta, prematuramente, aos 35 anos), também professora secundária, antes da viagem à França, de colégios como o Severino Vieira e o Colégio Central.
Na volta da França, o Prof. Milton Santos conheceu, numa reunião na Reitoria, o Reitor Edgard Santos, que o encarregou de organizar um grupo de pesquisa, em cujo nome, entretanto, não deveria figurar a palavra "geografia", já que a direção não seria dos professores do Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade da Bahia. Seguiram-se novos encontros com o Prof. Jean Tricart, encontros estes que aconteciam no Hotel da Bahia – hoje Tropical Hotel, único hotel moderno da cidade naquela época, e na sala do escritório de advocacia do Prof. Milton Santos no Edifício Antônio Ferreira, na rua Chile, centro.
Assim, com o apoio do Reitor Edgard Santos, da Cooperação Técnica do Ministério das Relações Exteriores da França, representada pelo Prof. Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg e sob a liderança do espírito renovador do Prof. Milton Santos, criou-se o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia em 1o de janeiro de 1959.
A essa altura, a equipe já estava organizada. Compunha-se de jovens, como as já citadas professoras, e de estudantes de graduação em Geografia ou História e até mesmo de estudantes de curso secundário, interessados nas conferências organizadas pelo Prof. Milton Santos, realizadas, na Faculdade Católica, por professores franceses e brasileiros recém-chegados da Europa e da África (Tabela 1). Os pesquisadores mais jovens passaram a fazer parte do quadro permanente do Laboratório somente quando ingressaram na Universidade. Entretanto, em decorrência do grande zelo do diretor do LGERUB, que mandava anualmente, ao Setor de Pessoal da UFBA, a freqüência integral dos jovens colaboradores, estes tiveram seu tempo de serviço contado para fim de aposentadoria, embora não tivessem sido aproveitados para fins de qüinqüênio.
Portanto, antes mesmo da criação oficial do Laboratório, a equipe já convidada, trabalhando sob a orientação do Prof. Milton Santos, realizava trabalhos de pesquisa como os que seriam apresentados no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em agosto de 1959, organizado por ele, sob o patrocínio da Universidade da Bahia e da UNESCO. Os Anais do Colóquio apresentaram os resumos das comunicações de todos os colaboradores do Laboratório de Geomorfologia, mesmo aqueles que ainda não tinham ingressado na Universidade. Eles figuravam ao lado de trabalhos de professores vindos de universidades de Portugal, da França, da Inglaterra, dos EEUU, de vários países da América Latina e de professores da Universidade da Bahia e de outras Universidades do Brasil.
As comunicações, em número de 164, versavam sobre temas os mais variados. Da Bahia, apenas para citar alguns nomes, os professores Milton Santos, Isaías Alves, Jaime e Edite Gama e Abreu, Thales de Azevedo, Pinto de Aguiar, Orlando Gomes, Marieta Alves, Navarro de Brito, Frederico Edelweiss, Hélio Simões, Carlos Ott, Clarival do Prado Valadares, Remy de Souza. Figuravam também trabalhos das equipes do Laboratório de Geomorfologia, do Laboratório de Fonética e do Instituto de Economia e Finanças da Universidade da Bahia. De instituições de outras regiões do Brasil, vieram Manoel Correia de Andrade, A. R. Penteado, Aroldo de Azevedo, J. R. Araújo Filho, Nilo e Lysia Bernardes. Da França, Pierre Monbeig, P. Deffontaines, Jean Tricart, Jean Roche, C-H. Frèches, J. P. Serrautte e F. Mauro. De Portugal, Orlando Ribeiro, João Gaspar Simões, F. Fernandes Martins. De outros países, L. Kuschlin, C.R. Boxer, M. J. Buschiazzo, E. M. López, N.C. Ponsiglione, H.H. Post, J. de Rebel, F.M. Rogers, C.G. Rossi, C. Wagley, entre muitos outros.
A Geografia, na Bahia, até 1959, restringia-se ao ensino e se destacavam professores de excelência, entre os quais Dalmo Guimarães Pontual, engenheiro, professor de Geografia Física e de Cartografia, e Waldir Freitas Oliveira, ambos do Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade da Bahia.
O Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais representou uma proposta acadêmica renovadora. A década de 60 pode ser considerada como a época áurea da Geografia da Bahia: o Laboratório atraiu jovens geógrafos do País e do exterior que se agregaram ao grupo dinâmico já existente (Tabela 2). A motivação era constante: trabalhos de campo, levantamentos de dados, análises estatísticas, leituras comentadas, seminários, cursos, reuniões científicas de apresentações de trabalhos e de avaliação, enfim, um ambiente de efervescência cultural e científica.
As pesquisas desenvolvidas pela equipe eram orientadas para as linhas urbano-regional e meio ambiente, com destaque para a geomorfologia. Neste ano de 1960, o Prof. Milton Santos submeteu-se às provas de concurso para a Livre Docência na cadeira de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, obtendo brilhante aprovação.
No Laboratório, a ciência geográfica era tratada não apenas como técnica, mas como reflexão. Uma reflexão livre, durante a qual o Prof. Milton Santos não só ensinava como incentivava a criação, através do pensamento autônomo, crítico e criativo. O papel pioneiro do LGERUB deve-se ao fato de não existirem, antes dele, estudos científicos sobre o Estado, do ponto de vista geográfico. Um exemplo desse fato foi a realização de um inventário geográfico da Bahia, além de estudos de Geografia Aplicada, realizados a partir de solicitações de organismos administrativos de Salvador, Rio e Recife.
O LGERUB encontrou um ambiente propício na então Universidade da Bahia, na qual havia um sentido profundo de vida social e de produção acadêmica que agregava intelectuais em torno de temas relevantes, discutidos ou apresentados em colóquios e reuniões. O Dr. Thales de Azevedo, então Diretor da Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia, por exemplo, mantinha um seminário freqüentado por vários intelectuais – geógrafos, economistas, antropólogos, sociólogos -, criando um ambiente de troca intelectual, sem competições negativas, num tempo em que não se falava de interdisciplinaridade. Diferentemente do que hoje ocorre, a Universidade valorizava e favorecia a produção científica com base na qualidade e originalidade, e não em "rankings" de citações em periódicos e outras publicações. A Universidade tinha essa identidade clara, definida a partir de seus valores e de sua produção, ocupando-se também da difusão do conhecimento nela produzido para outros centos nacionais e internacionais. Registre-se o fato de, no início da década de 60, o Prof. Milton Santos ter encontrado, em bibliotecas de universidades da África, publicações dele e de outros intelectuais baianos como o Dr. Thales de Azevedo e o Prof. Fernando Pedrão, por exemplo. Além disso, sob a direção do Reitor Edgard Santos, a Universidade acolhia e apoiava o intercâmbio de pesquisadores, garantindo-lhes passagem e estadia em Salvador ou em outros municípios.
Nessa época, destacam-se ainda outros centros de ensino e pesquisa, tais como o Instituto de Economia e Finanças, o Gabinete de Estudos Portugueses, o Laboratório de Fonética, o Gabinete de Filologia Românica e muitos outros.
Nesse ambiente, cria-se, em junho de 1960, o Boletim Baiano da Geografia que se manteve até 1969, chegando até o número 16. Trabalhos de geógrafos baianos, brasileiros e de outras nacionalidades, mas versando, de preferência, sobre temas da Bahia, encontravam no periódico um meio de divulgação. O Prof. Milton Santos dinamizou o Laboratório, trazendo professores, inclusive da França, que proferiam palestras, ministravam cursos, dirigiam seminários e orientavam trabalhos de campo. Entre eles, é possível mencionar os professores Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg, Pierre Monbeig, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Jean Dresch, Pierre George, Michel Rochefort, da Sorbonne, Etienne Juillard, Henry Voigt, Anne Rose Hirsh, de Strasbourg, Guy Lassère, de Bordeaux e Bernard Kayser, de Toulouse, todos cientistas da maior importância na Geografia mundial.
A equipe de jovens pesquisadores do Laboratório muito aproveitou a contribuição desses professores, não só na orientação dos trabalhos que eram realizados na Cidade do Salvador, como nos trabalhos de campo na Zona do Cacau, nas regiões Sisaleira, Fumageira e Cafeeira, no Litoral Sul da Bahia, na Chapada Diamantina, no Recôncavo, entre outras regiões do Estado da Bahia.
Os deslocamentos eram feitos em um Citroën deux-chevaux, modelo especial para trabalho de campo, oferecido pela Cooperação Francesa, que também doou equipamento para o LGERUB, e no ônibus da recém-fundada Escola de Geologia da Universidade.
É deste tempo (entre 1959 e 1964) o trabalho exaustivo denominado Programa de Estudos Geomorfológicos e de Geografia Humana da Bacia do Rio Paraguaçu, estudo que teve o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida das populações locais, realizado por solicitação da Comissão de Planejamento Econômico do Estado e com o apoio do Instituto Joaquim Nabuco de Pernambuco. Um outro grande projeto foi o Estudo sobre o Uso da Terra nas Zonas Cacaueira e Ocidental do Recôncavo, para o Serviço Social Rural, já com análise aerofotogramétrica. Entre 1958 e 1964, foram publicados mais de 70 títulos, livros e artigos de revistas, de autoria de professores brasileiros e estrangeiros.
Durante esse período, a equipe do Laboratório participava ativamente das reuniões anuais da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), nas quais se estudava exaustivamente a cidade sede do encontro e sua região, permitindo, portanto, se “ver” o Brasil. Os jovens geógrafos brasileiros tinham oportunidade de trabalhar com os grandes nomes de Geografia do Brasil. A AGB se reunia nas férias de julho e durante todo o mês "vivia-se" Geografia. Podem-se citar, entre 59 e 64, as AGB de Maringá (PR), Poços de Caldas (MG), Mossoró (RN), Penedo (AL), Campina Grande (PB), Ribeirão Preto (SP) e Jequié (BA), sendo Milton Santos presidente desta última. Muitos jovens geógrafos que participavam dessas reuniões, ao conhecerem o trabalho que se realizava no Laboratório, candidataram-se a um posto na Bahia, engrossando assim a equipe.
Simultaneamente com a direção do Laboratório, o Prof. Milton Santos exerceu o cargo de Chefe da Casa Civil do governo do Presidente Jânio Quadros, que o conheceu numa viagem a Cuba, quando o presidente solicitou ao jornal A Tarde a indicação de um nome que comporia a equipe de jornalistas e o Prof. Jorge Calmon, Redator-Chefe do Jornal, o indicou.
Ao exercer o cargo de Presidente da Comissão do Planejamento Econômico do Estado, entre 1963 e 1964, Dr. Milton Santos tratou de temas de política econômica e planejamento regional, a partir de uma perspectiva científica, utilizando-se de escorreita linguagem acadêmica.
Depois que o professor Milton foi preso e, posteriormente, exilado, em dezembro de 1964, o Laboratório de Geomorfologia, que funcionava até então em uma sala cedida pelo Prof. Hélio Simões, na antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, transfere-se para a rua Augusto Viana, para o prédio onde hoje funciona a Livraria da UFBA. Antônia Déa Erdens, uma das fundadoras do Laboratório, é nomeada Diretora do órgão. Entre os anos de 65 e 69, a equipe de Laboratório, composta pelos mais antigos e outros novos, continuou o trabalho iniciado pelo Prof. Milton Santos.
Com a reforma universitária, em 1970, o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais passou a integrar o Departamento de Geografia, sediado no Instituto de Geociências. Para o novo Departamento, vieram também os professores Waldir Oliveira e Dalmo Pontual da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Apesar de hoje a maioria da equipe já estar aposentada, o trabalho do Departamento reflete o espírito científico e o entusiasmo do Prof. Milton Santos que, além da transmissão de conhecimento a todos que com ele conviveram, mostrou-se amigo e incentivador dos jovens.
Tabela 1. Relação dos Pesquisadores do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia.
Nome |
Situação Funcional |
Ano de Ingresso |
Titulação |
Ano de Obtenção do Título |
Universidade |
Milton Santos |
Diretor |
1959 |
Doutor |
1958 |
Strasbourg |
Ana Dias S. Carvalho |
Quadro Permanente |
1959 |
Especialização |
1963 |
Strasbourg |
Antônia Déa Erdens |
Quadro Permanente |
1959 |
Doutor |
1973 |
Paris/Sorbone |
Avany A. Mota |
Quadro Permanente |
1963 |
Mestrado |
1971 |
UFBA |
Célia Peixoto Motti |
Quadro Permanente |
1961 |
Livre Docente |
1968 |
UFBA |
Cléa Oliveira |
Estagiária |
1962 |
Graduação |
Sem Dados |
UFBA |
Conceição Lecarpentier |
Estagiária |
1959 |
Doutora |
1969 |
Strasbourg |
Dorcas C. Perrin |
Estagiária |
1960 |
Especialização |
1962 |
Strasbourg |
Dulce B. Barbe |
Quadro Permanente |
1959 |
Doutora |
1970 |
Toulouse |
Euda Maria Cunha Caldas |
Estagiária / Quadro Permanente |
1962 |
Mestre |
1989 |
UFBA |
Ezilda Pereira |
Estagiária |
1959 |
Graduação |
Sem Dados |
UCSal |
Florisvaldo Henrique Falk |
Estagiário |
1962 |
Doutor |
1992 |
USP |
Iara Lima |
Quadro Permanente |
1963 |
Especialização |
1969 |
UFBA |
Irlene Magnavita |
Quadro Permanente |
1966 |
Graduação |
Sem Dados |
UFBA |
Lilian Leal Souza |
Estagiária |
1959 |
Graduação |
Sem Dados |
UCSal |
Maria Auxiliadora da Silva |
Estagiária / Quadro Permanente |
1959 |
Doutora |
1972 |
Strasbourg |
Maria do C. Barbosa de Almeida |
Quadro Permanente |
1964 |
Doutora |
1970 |
Strasbourg |
Marlene d’Aragão Carneiro |
Estagiária |
1959 |
Mestre |
2000 |