Segunda parte da entrevista com José Cláudio Souza Alves

 

Em 26 anos de pesquisa acadêmica sobre as milícias que atuam no Rio de Janeiro, o professor de Ciências Sociais da Universidade Rural do Rio de Janeiro (URRJ) José Cláudio Souza Alves circula entre a capital e os municípios da Baixada Fluminense com frequência e desenvoltura. Conhece muita gente.

Ele nos conta que, apesar da força acumulada pelas milícias ao longo do tempo, coletivos continuam organizando e colocando em ação formas de não ceder à submissão. Negócios como grilagem de terras e pagamento de taxas ditas de segurança por parte das milícias esbarram em grupos que, a partir do debate político, de atividades culturais e busca de parcerias para ajuda mútua entre as vítimas e as potenciais vítimas das milícias, constituem oásis em que a onipotência desses grupos armados se dissipa. Essa luta consegue unir setores da igreja católica e da igreja evangélica, algo que pode parecer improvável no cenário atual.

Ao concluir esta entrevista, o professor e escritor destaca outros coletivos que, na opinião dele, apontam para o único caminho de superação desse poder ao mesmo tempo ilegal e legal, uma vez que constitutivos do próprio Estado.

“Olha, passamos 20 anos ensinando direitos humanos pro capitão do BOPE. Você pisa no pé do capitão do BOPE, ele pede desculpa pra você. Ele é um gentleman. O cara tem um sociologuês e um antropologuês perfeitos. Só que o BOPE hoje mata o dobro do que matava no passado. Agora você me reponde: o que adiantou 20 anos de direitos humanos pro capitão do BOPE? Não adiantou nada. Piorou mais ainda, sabe. Isso eu debito numa concepção equivocada da esquerda, de que pode alterar aquilo que está lá dentro. Aquilo lá não é alterável”, afirma.

Confira:

FPA: Mas a escola Guadalajara não fechou.

José Cláudio: Eu estive lá no ano passado e ela não fechou. Então, graças a Deus, que conseguiram com a resistência de professores manter essa escola. Então, citei pra você agora que são vários casos, são casos pequenos. Por exemplo, outra resistência: existe em Duque de Caxias o Regional Periferia.

O que é o Regional Periferia? São os padres e leigos da igreja católica que ocupam a periferia da cidade de Duque de Caxias. Estão em Xerém, do 4º. Distrito; em Imbariê, do 3º. Distrito; estão nessa área que eu falei pra você do Pilar e no São Bento. E eles formam uma parte da igreja mais aguerrida, eles discutem, debatem … já fui lá falar com eles, fizeram confronto com as autoridades em relação à violência que ocorre nessa área toda, que é muito dura e aí eles têm esse espaço de discussão, de debate, entendeu?

A questão de serem ligados à igreja, de serem…

Ajuda.

Conhecidos como o que se chamava antigamente de “homens santos”, isso protege um pouco a vida deles. Intimida…

Sim, sim, sim. Mas principalmente porque eles beberam na água da igreja progressista, da igreja popular, Teologia da Libertação, igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base. Isso também dá a eles essa penetração nos temas políticos, sociais. Isso ajuda. Mas também essa dimensão religiosa está conectada, é uma dimensão mais conservadora, mais tradicional ligada à dimensão religiosa, mas que ganha uma proporção política menos conservadora e menos tradicional, que faz vínculos, então, com lutas atuais.

 

Igreja evangélica sedia debate sobre segurança e violência

Créditos: Fórum Grita Baixada

 

Em Nova Iguaçu há um importante fórum que tem feito muitas ações interligando a Baixada, que é o Fórum Grita Baixada. Ele une vários movimentos sociais, associação de moradores, igreja católica, igreja evangélica, igreja batista. Eles agora ajudaram a criar uma rede, uma rede importante chamada Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência do Estado na Baixada Fluminense, esse é o nome da rede. São mães. E tem um filme no qual elas participaram. Esse filme foi lançado no ano passado, chama-se Nossos Mortos Têm Voz. Elas apoiam mulheres que foram vitimadas, seus parentes e filhos foram mortos, mas elas também agora estão apoiando as mães de presos. Existe um conjunto de presídios no município de Japeri, e as mães desses presos não têm nenhum apoio estrutural, vêm de longe, não têm onde ficar, não têm onde dormir. Você tem que estar de madrugada pra entrar no presídio. Então esse coletivo agora também começa a se movimentar pra apoiar essas mulheres.

Então são vários movimentos. Eu acompanho, por exemplo, movimentos de agricultura orgânica, são produtores orgânicos lá em Seropédica. E é um movimento de resistência também. Eles trabalham na terra, não tem apoio de ninguém, mas se organizam pra sobreviver e sabem das limitações que são impostas. Só que é claro, a milícia atua menos na área rural, mas ela impõe também limitações, muitas vezes a você se movimentar, você se deslocar nessas áreas também. Isso pode acontecer.

Mas são vários. Existem muitos. É porque quando eu faço o debate e entrevistas, a gente acaba focando mais na proporção, nas dimensões que a milícia ganhou ao longo do tempo, que a milícia foi ganhando, né? Mas proporcionalmente há movimentos de resistência, eles não deixaram nunca de existir. Então, desde ações coletivas, como você perguntou, mas também tem ações individuais.

Eu vi gente que foi pra academia, pra fazer pesquisa, pessoas que me procuraram que queriam entender sobre violência nos bairros, e vejo ainda movimentos mais individuais ocorrerem de pessoas. Claro que é pequeno, é frágil, né? Não é qualquer um que consegue chegar numa universidade, mas existe. Eu conheço pessoas que estão fazendo isso. Elas estão se expressando dessa maneira.

Então, sempre foi o que me alimentou. No fundo o que me mantém é ver isso. Se isso não existisse, acho que eu não conseguiria ter sobrevivido. Depois de estudar um tema como esse por 26 anos não é fácil. Já tive muitas dificuldades em termos emocionais mesmo, tive que continuar trabalhando com esse tema e ações, e esses grupos (de resistência) sempre foram meus alunos e pessoas que se aproximaram de mim, que manifestam essa resistência contra a estrutura da violência.

E dessas dificuldades que enfrentou por conta desse trabalho, tem algum momento que o fez pensar em desistir, ou ficou realmente temeroso?

Não, temeroso não. Costumo dizer que eu não sou ameaçado, porque não represento um ameaça pra esses grupos. Sou só uma figura exótica, né? Então eu sou um intelectual, um professor de universidade, claro, que eu sou mais do que um mero intelectual acadêmico, eu tenho uma mobilidade dentro de vários grupos sociais na Baixada. Eu talvez conheça, como ninguém, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Então, hoje eu circulo da cidade do Rio à Baixada com muita facilidade, porque eu conheço mesmo. Então eu conheço a trajetória, mas eu não represento uma ameaça. Eu faço palestra, faço debate, dou entrevistas, publico livro, isso não ameaça. Eles devem rir de mim. Eu não sou uma Marielle Franco que é capaz de fazer uma CPI.

 

Mães e familiares fazem ato em memória de mortos pela polícia

Créditos: Fórum Grita Baixada

 

Na década de 90, final dos anos 90, 98 foi o ano mais preciso, eu sofri muito. Eu perdi minha mãe, ela morre e aí fiquei muito frágil. Aí os caras que eu tinha denunciado – eu sempre cito nomes reais de pessoas no meu livro – essas pessoas progrediram também; são eleitas, têm muito poder, são personalidades, uns são matadores e outros são personalidades políticas. Então eu vivi um momento duro ali de depressão mesmo. Tive que perceber que a realidade profissional era inútil, porque aquela realidade é muito mais dramática, mais difícil. Eu vivi esses momentos e eu sofri muito, ali tive uma fase dura, mas graças a Deus e por esforço meu, claro, tenho acompanhamento terapêutico, psicológico, né? E amigos que me ajudaram muito nesse trabalho. Eu consegui vencer isso e hoje estou aqui ainda fazendo esse trabalho, com dificuldade, mas consigo, consegui superar. Porque tem um momento que você não vê mais sentido em viver, essa é a verdade. Porque você está exposto a uma violência brutal, uma injustiça tamanha, uma covardia desses grupos todos eles apoiados no poder político e hoje o que me espanta é isso, quando esse poder político chega à Presidência da República. Esses caras tem poder mesmo.

A Baixada deu 70% da votação do Bolsonaro. Votação dada por uma realidade de violência há cinco décadas, onde os matadores, grupos de extermínio, milicianos atuam e criam uma estrutura política.

Ali na Baixada o PT nunca representou uma alternativa política a esses grupos. A igreja católica se transformou em conservadora, deixou de ser popular.

E aí basta ter um programa de governo, ou projeto político (…) que sofra ataques e golpes, como Lula e Dilma sofreram, e essa base populacional, essa massa que estava aqui se virar e apoiar, foi o fenômeno que a gente viveu, apoiar o Bolsonoro. Há um lastro histórico, social, político, econômico, cultural que permitiu fazer isso.

Mas fica firme no seu trabalho. Achei importante sua colocação sobre a importância desses grupos de base mesmo, de trabalho de base…

É o que segura. E eu acho que é isso que o PT tem que fazer, o PSOL, a esquerda. A esquerda tem que voltar pra esses grupos, pra essa realidade social, sair dessa postura de salto alto, de quem tem cargo, de quem tem estrutura, de governo federal, isso acabou. Se nós não fizermos isso, a gente vai desaparecer. A milícia não está aí para brincar. Esses caras não estão brincando. Ela vai engolir a gente. Já estão engolindo, né?

Quando o PT, há 16 anos entra no poder, era um front, era uma fronteira. Hoje eu estou em outra fronteira recuada, recuando no campo que eu já avancei nas décadas de 1980 e 1990. Eu vi avanços. Hoje eu começo a perceber recuos significativos. Então é preciso ir pra essa base. Nós nos distanciamos muito. Infelizmente. Eu não me distanciei, porque eu estava aqui vendo tudo acontecer e sofrendo na pele.

A esquerda não faz esse debate sobre segurança pública. E quando faz, faz equivocadamente. Vai fazer um discurso onde há maior repressão, e aí vai jogar água no moinho da direita, né? No moinho conservador, na maior repressão, maior punibilidade, ou vai fazer o discurso, que é mais comum, que é o discurso acadêmico: ensinar direitos humanos pro capitão do BOPE. Olha, passou 20 anos ensinando direitos humanos pro capitão do BOPE. Você pisa no pé do capitão do BOPE, ele pede desculpa pra você. Ele é um gentleman. O cara tem um sociologuês e um antropologuês perfeitos. Só que o BOPE hoje mata o dobro do que matava no passado. Agora você me reponde: o que adiantou 20 anos de direitos humanos pro capitão do BOPE? Não adiantou nada. Piorou mais ainda, sabe. Isso eu debito numa concepção equivocada da esquerda, de que pode alterar aquilo que está lá dentro. Aquilo lá não é alterável. Aquilo lá tem uma estrutura de poder interna e de poder de política externa que é muito mais complexo do que esse discurso acadêmico, de protocolo, de previsibilidade, de fazer estudo de números da violência.

Como seria? Como você imagina?

Eu imagino como alternativa o que eu faço. Você tem que ir a esses movimentos de base e você tem que fortalecer, dar instrumentos pra essas pessoas reagirem no confronto com essa estrutura. No confronto no sentido de deixar alternativas em todos os campos: educacional, jurídico, político, eleitoral. Você tem que dar suporte pra que a população na sua base se organize e se estruture. Você não tem que ir fazer análise de agentes públicos e do Estado na área de segurança pra dizer onde ele tem que melhorar, ter protocolo. Isso é ilusão, é estupidez, besteira. Por que o que importa que eu diga que o Estado é o caminho único e tem que aperfeiçoar o Estado? Não tem nada a ver. O Estado é nosso inimigo maior. Ele que se organizou dessa forma criminosa, junto com a classe dominante, e vai nos massacrar. Não adianta você achar que ele é seu amiguinho. Você vai gastar dinheiro e não vai conseguir nada.

Você tem que ir pra população mesmo. Tem que ir para uma universidade que dialogue com o aquele que está massacrado lá na ponta. Com quem está sendo morto, mesmo. “Ah, eu não consigo entrar na favela”. Porra! Então esquece, vai fazer outra coisa na vida. Você tem que ser um intelectual em uma academia que pratique extensão de verdade, extensão universitária e que esteja lá nesses espaços. E vai fazer isso.

E nos movimentos sociais que eu estou, tem muita gente que ainda acredita, é influenciado por esse discurso acadêmico, e também um discurso midiático: tem que fazer debate com as autoridades. E vou lá debater com autoridade? Eu vou debater com o cara que é responsável pelo homicídio de toda Baixada? Eu hoje me nego a fazer isso. Eu vou ficar sentado na mesma mesa com aquele cara pra ele me responder que a culpa é da população que é conivente, a população é cúmplice porque não denunciou o bandido? Você, em sã consciência, você mora numa comunidade militarmente controlada por milicianos, você vai denunciar o miliciano? Você vai ser assassinado. Então você tem que fazer outras estratégias. Você tem que dizer: esse cara que quer se confrontar com o miliciano, não tem que denunciar o miliciano. Ele tem que criar um coletivo que discuta toda essa realidade e que comece a fazer movimentos coletivizados e não de individualismo, prá não vitimar ninguém, mas movimentos no campo da educação, da cultura, de projetos naquele lugar que permitam uma outra percepção daquela realidade por parte dos jovens, por parte do morador e permite então um questionamento, que passe a ter uma resistência maior, em busca de apoios junto ao judiciário, você pode conseguir.

Então você vai ter que criar um movimento muito mais capilar, com uma resistência muito mais difícil. Disputar com miliciano na rua, no chão da rua, o espaço político, eleitoral, que seja, é uma parada dificílima. Você corre risco. Você tem que ter esse coletivo. Você tem que publicizar as ações. Você tem que ir pensando mais um campo mais peculiar, mais original, mais sutil. Você está ali vivendo os detalhes daquela realidade, saber quem é quem naquela realidade, senão você vai ser morto. E você tem várias histórias de pessoas assassinadas nesses espaços de disputa porque achou que o cara era amigo dele. Achou-se que aquela autoridade ali era companheiro dele. Não era companheiro porra nenhuma. Então é preciso ter uma capacidade de percepção da realidade muito mais detalhada e muito mais complexa.

E aí fortalecer as organizações de base, as comunidades pra, inclusive, ter interlocução com setores do Judiciário, da Defensoria Pública, professores, etc.

Hoje o Ministério Público Federal tá num embate com esses milicianos lá em Caxias, graças à mobilização do Museu Vivo do São Bento. Hoje o Ministério Público Federal está fazendo confronto, retirando pessoas que a milícia colocou em áreas da União. Isso é graças à atuação lá do Museu Vivo do São Bento, entendeu?

Entendi.

A universidade tem que difundir a capacidade de resistência mesmo, de resposta. Isso é o acúmulo de experiências dessas pessoas, que ao longo do tempo resistem. Isso a universidade tem que apoiar e estruturar e fortalecer, mesmo que ela sofra os golpes que ela vem sofrendo ao longo do tempo.

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