Estes poemas foram escritos nos últimos dias de outubro de 1975, no Presídio do Barro Branco, na zona norte de São Paulo. O poeta passara, em 1973, pela cela onde foi fotografado o corpo do jornalista Wladimir Herzog, nas dependências do Doi-Codi do II Exército, no bairro do Paraíso. Sabia que não era possível alguém enforcar-se num cubículo como aquele, onde o cadáver aparece numa fotografia macabra, que correu o mundo, com os joelhos dobrados.
Neste 25 de outubro, fazem quarenta e três anos do assassinato de Herzog. A banda de música da família do ex-capitão que disputa a presidência da República, homenageia os assassinos e os trata como heróis. Um curioso perfil de heróis que combateram, dentro dos porões, contra homens e mulheres de pés e mãos atados e olhos vendados. Eventualmente conduziam crianças para assistirem aos combates.

A última noite
Sexta-feira. Noite.
Noite mais longa
que os sete anos de André,
os nove anos de Ivo,
noite mais longa
que a angústia de Clarice.

Na carne da sombra
outras sombras se desenham
buscando formas humanas
(é necessário um disfarce mínimo)
contra o claro corte da luz.

Ninguém viu como chegaram.
Em torno, a treva abriga
o passo de seus filhos.

As mãos sedentas de gritos,
de prisões, de chagas,
arrastam teu corpo
ao território da treva.

Mas não estás sozinho,
nunca mais estarás sozinho.
Teus irmãos te resgatam
e adiam para amanhã
o riso dos chacais.

De tuas mãos ainda brotará
o último noticiário da noite.
Preso entre os dedos
o endereço da morte.

 

Thomás Carvalhal – 1030

I.
Trabalhaste a palavra
para o mundo de teus filhos.
A terra trabalhará em teu corpo
um sol de manhãs e lágrimas.

Na pedra do túmulo,
gravarei o endereço da morte:

Thomás Carvalhal 1030,
esquina com Tutóia.

Sobrevivi. Levarei na pele,
na alma o nome dos meus mortos.

II.
Não trago palavras,
o impotente sopro dos humanos.

Ergo minhas mãos caladas.
Tomaram a feição dos ferros.

Tenho machados nos pulsos
e o gesto de afago
se fez gesto de morte.
Não há palavra possível

entre o ferro e a carne
das feras. Minha linguagem

é o fogo, a fibra do estanho,
o sangue de metais fundidos

num rio infinito
de ódios acumulados.

Não trago palavras,
a boca está seca,

desaprendeu a forma do canto.
Moí a palavra, a pólvora,

a dor, o sangue dos “suicidas”.
Na concha das mãos

sacio a sede dos órfãos
com este mel de tempestades.

Presídio Barro Branco, outubro de 1975.

Pedro Tierra (Hamilton Pereira), poeta, foi preso político durante o regime militar.