Por Raimunda Monteiro

A pujança das manifestações das mulheres brasileiras no país e no mundo em 29 de setembro de 2018, com o poderoso slogan #EleNão, aponta novas vias para se pensar a difícil trilha da democracia brasileira na emergência de causas, liderança e meios de mobilização social. Assim como traz à tona uma capacidade adaptativa inovadora nas formas de sentir as pautas de comoção social e de comunicá-las.

Toda luta nasce de incômodos, dores e sacrifícios e ganha força política quando se torna coletiva e se traduz em um discurso comum. A força política surge quando o discurso traduz o sofrimento e o sentimento coletivo e encoraja a manifestação e  a reação.

A luta contra o sexismo, o racismo e o fascismo no Brasil conseguiu esse feito em um tempo que poderia ser medido por várias referências. Vou tomar duas como exemplo. A primeira, em dois anos, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a consequente derrocada de direitos e políticas sociais, cujos efeitos afetam de forma mais dolorosa as mulheres mais pobres da população dos direitos trabalhistas, o asfixiamento dos investimentos sociais com a Emenda Constitucional 95 e do sistema de políticas públicas inclusivas derivadas da Constituição de 1988. Foram cerca de trinta anos de construção e treze de efetivação de políticas afirmativas na educação, na saúde, na própria Justiça. As perdas e as ameaças de desmonte do Estado de bem-estar social que apenas começava foram sentidas e assimiladas de forma individual, sem que essas medidas antidemocráticas se convertessem em bandeiras unificadoras.

Os partidos progressistas e as organizações sociais, embora denunciassem pelas vias clássicas, não conseguiram transformar essas insatisfações em lutas para reverter a avidez do neoliberalismo que se manifestou também na desregulamentação ambiental fundiária para favorecer o capital internacional e seus aliados nacionais. Exceto as mobilizações do Movimento dos Sem Terra, localizadas, as reações não obtiveram êxitos massivos.

Um outro tempo que pode ser compreendido como um tempo de cultura desse movimento são os seis meses de período eleitoral, em que às perdas econômicas e sociais se somam a explicitação das perdas de liberdade e o ataque ao corpo. Neste ponto, entra uma dimensão nova na constituição das dores e sofrimentos e sua transfiguração em causas.

A explicitação das ideias sexistas, fascistas e de culto à violência, por meio discurso abusivo do candidato Bolsonaro, que a campanha eleitoral de 2018 trouxe à tona, tiveram um efeito mobilizador surpreendente. Bolsonaro galgou a liderança, pelo atraso, entre as candidaturas de direita. Seu discurso se caracteriza pela autoconfiança e arrogância dos setores mais predadores do neoliberalismo em curso. A liderança dele expressa uma radicalização, em parte construída pela forma como Judiciário e meios de comunicação agiram na desconstrução do projeto progressista dos governos encabeçados pelo PT no início desta década. Um discurso pautado pela intolerância com políticas distributivas, inclusivas e de reconhecimento de direitos do que se convencionou chamar de minorias (indígenas, negros, mulheres, movimentos LGBTs). Um discurso que descambou para o fascismo sem máscaras e nem desculpas.

O tempo eleitoral é ele próprio uma cultura de embates em que as ameaças e o medo vão ao seu último grau de explicitação, porque nele se decide poder. Poder sobre os salários, sobre emprego, sobre a velhice, sobre as condições de vida, sobre direitos e, também, absurdamente aconteceu, sobre a raça, sobre o corpo, sobre a segurança e direitos fundamentais de ser e estar. Essas são, numa análise ligeira, questões sobre o sentir.

O tempo, em qualquer das duas hipóteses é curto para se formar um consenso tão amplo contra as ideias fascistas, num país em que as mídias convencionadas e convencionais historicamente são antipopulares, antissociais e politicamente sujeitas aos desmandos dos setores do capital hegemônicos.

Seguramente, aqui se coloca a questão sobre o como a comunicação e uma comunicação em tempos de guerra, como se caracteriza invariavelmente a mídia patronal do Brasil contra políticas e governos progressistas. Talvez numa soma de sofrimentos e medos acumulados nas duas fatias de tempo, emerge, pujantemente, a negação dos meios de comunicação atrelados ao poder.

Quando se pensa que a Rede Globo está há três meses buscando centrar a atenção do país para um “Brasil que eu Quero” (que ela quer, pois edita os milhares de vídeos sem nenhuma auditoria de controle público) pautado na corrupção que atribui ao PT. Foram anos de associação e a prisão do ex-presidente Lula é um fato dramático de estigmatização desse partido como símbolo de corrupção. Nesse cenário de mudez de contraditórios e de debates realísticos, uma parcela considerável da sociedade elege a pauta do sexismo, do racismo e do fascismo com a maior ameaça à democracia. Ou seja, algo que, teoricamente seria uma dor de minorias se tornou um incômodo de maiorias.

E aqui surgem mais inusitados. O incômodo unificou classes sociais, raças, gêneros, gerações e credos partidários progressistas. Unificou brasileiras e brasileiros dentro e fora do país, resgatando um tipo novo de patriotismo baseado em Direitos Humanos. Uma corrente torrencial de solidariedade entre pessoas transpôs instituições da clássica sociedade civil organizada (OAB, sindicatos e associações de classe, centrais sindicais, partidos, ONGs estabelecidas e os órgãos oficiais de defesa de direitos), não só negando, mas afirmando que estas já não conseguem “sentir” e tomar para si as dores individuais e coletivas que envolvem o ser diferente, ser pobre, ser discriminada ou discriminado e ser tolhido em suas escolhas humanas.

Uma nova causa emerge e com ela e, por ela, um discurso surpreendentemente humanista, ecologista e socialmente representativo de uma sociedade que afirma aceitar sua diversidade. Jovens se encorajam em falar sobre o sofrimento das discriminações por sua sexualidade na nova Ágora que se abre à causa do respeito e do direito de ser o que quiserem ser. Apalavra fascismo, que parecia ter sucumbido no século 20 e distante do Brasil, assume um sentido prático na vida das pessoas e ecoa em tambores e vozes diversas e insurgentes.

Junto com o discurso do ser,  o discurso das perdas e das ameaças sociais, econômicas e de soberania nacional, de democracia política também apareceu fortemente, mas sem uma bandeira partidária, sem um programa único. Porque os partidos não se constituíram (e talvez tenham uma natural dificuldade em fazê-lo, como organizações de mediação de poder) como os convocadores. Assim como o embate eleitoral final ocorrerá para além de partidos, mesmo que seja estrategicamente útil exaltar o anti-petismo como tática dos setores que não tiveram outra escolha senão se alinhar ao candidato que expressa o atraso e a ameaça à democracia.

Como fenômeno comunicacional, emerge também o fator de quem convoca. E emergem novas agentes de convocação, ainda sem um rosto nacional, mas com um esboço de programa que se retraduz em cada praça de manifestação. Haverá um rosto que represente tantos nesta diversidade? Uma mobilização tão grande sem uma líder máxima? Esta é a característica da nova onda de mobilizações sociais do século 21. Como o “Occupy Wall Street”, antes de um líder carismático clássico, se projetou uma causa. Nas mobilizações locais, nenhuma líder era citada como referência de convocação. Marielle Franco foi lembrada, homenageada internacionalmente, mas já como mártir da causa.

Por essa via, o movimento que iniciou a convocação pela internet, em tempo recorde para construir um discurso de reação unificador contra o sexismo, o racismo e o fascismo, se sustentou mesmo com a liderança num universo incrivelmente amplo de multiconvocações e de autoconvocações que tomaram os espaços virtuais, havendo um total descontrole e centralidade. A perplexidade é que estariam nascendo movimentos sociais de novas características em relação a tudo que se vivenciou século 20 e se teorizou sobre movimentos políticos e sociedade civil organizada – agora talvez não necessariamente organizada nos moldes de liderança, presencialidade, bandeiras de luta, sentimentos e interesses coletivos.

Nesse universo que se insurge, as ideias do #EleNão funcionaram como elemento de catalisação de revoltas represadas individualmente contra uma opressão que está no dia a dia das mulheres, dos LGBTQi, das pessoas discriminadas por várias razões de ser e de estar por um sistema que busca extrair à exaustão as capacidades humanas que considera úteis e descartar o que considera entulhos. Esta é a lógica do capitalismo neoliberal que vê as pessoas como ativos ou como passivos. Uma opressão em que o patriarcalismo se manifesta em casa, na rua, no trabalho e na vida política. Por isso, o movimento também bradou contra #EleNão de forma mais ampla. Um novo feminismo de alta densidade política está emergindo? O feminismo, como bandeira atualizada ao contexto atual de resistência das mulheres ao fascismo tende a se tornar um front político emergente?

Boaventura dos Santos nos traz o desafio de ler cientificamente esses fenômenos como aprendizados vindos de baixo, dos setores sociais de causas inaudíveis e desprezadas pela ciência ocidental como não-existentes, porque estão em zonas abissais e invisíveis aos olhos da Ciência ocidental. Formas diversas de democracias que irrompem por fora dos padrões clássicos de democracia ocidental, ressignificando questões relacionadas a Direitos Humanos, à Cidadania e aos espaços e formas de exercício de poder. Entre os aspectos mais instigantes a se continuar pensando estão como se formam novas ou se renovam antigas causas de luta, os mecanismos inovadores de convocação e de comunicação das mobilizações sociais; as novas características de liderança ou a diluição e não-personificação de lideranças pessoais e institucionais como elementos de convocação. Indo além, a apropriação coletiva de ideias em tempos de negação e afirmação de causas que se relacionam aos direitos individuais e coletivos, a uma política do corpo e à democracia em sua essência.

E, nisso tudo, a subsistirem essas insurgências, reside um perigo à radicalização do sistema de asfixia humanitária do neoliberalismo a se conferir na História.

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