Tully. Ou: o problema é que as mulheres engravidam
Virgínia Woolf afirmou, certa vez, que para consolidar a escritora que nela havia foi preciso “matar” um fantasma chamado Anjo do Lar, um duplo de si mesma que aparecia nas horas mais incertas, a tentar sufocar-lhe não só a inspiração, mas as ideias próprias, autônomas. Com bom humor, descreve como foi consumando o ato a golpes de tinteiro.
É mais ou menos o que faz a personagem da sul-africana Charlize Theron no filme Tully. Mas com sinal trocado. Aceita de bom grado uma figura nova em sua vida para escrever uma história diferente, mais sua.
O filme Tully trata da gestação e do parto de um modo que os filmes ficcionais não fazem. Sem idealizações nem negações. Uma câmera fixa, quase impassível, registra a sequência de cuidados da mãe com o recém-nascido. Chega a ser sufocante, embora a sequência nem seja tão longa, e também incômodo para quem percebe nunca ter prestado muita atenção nisso.
O marido boa praça, mas nem tanto
Reconhecida símbolo sexual, a atriz vive uma mãe que em nenhum momento reclama da maternidade, nem da existência do casal de filhos mais velhos, embora o cansaço que a abala seja visível. O pai das crianças, vivido por Ron Livinsgston, é um homem que volta sóbrio do trabalho, com as crianças ainda acordadas, e até tenta ajudar com a louça – embora consiga cometer desatenção gigantesca em determinado momento.
Ambientado assim num universo classe média de bom-tom, esse drama, fora sua inegável força narrativa, pode, à semelhança de Eu, Daniel Blake, lembrar sua condição de trabalhadores e trabalhadoras a tantos que teimam em tentar esquecer.
Num momento em que parte do Brasil ainda pensa se deve ou não votar em candidatos que decretam a inferioridade das mulheres e “denunciam” o empecilho da maternidade para os interesses capitalistas, Tully é oportuno.
Mas não só por isso. O filme é realmente bom, sustenta intrigante mistério e ainda traz a jovem Mackenzie Davis (de Black Mirror e Blade Runner 2049) em atuação convincente. Charlize é produtora do filme, o que indica uma aposta alta no projeto, dirigido pelo canadense Jason Reitman.
O filme pode ser encontrado em streamming ou alugado nos canais Telecine. Por outro lado, se alguém quiser um filme de terror também envolvendo maternidade, com pitadas de sobrenatural e risco iminente para a humanidade, sempre há a opção de O Bebê de Rosemary. Mas só no video. Nas urnas, #OBebêDeRosemaryNão.
Ficha técnica:
EUA, 2018
1h35min
Diretor: Jason Reitman
Roteiro: Diablo Cody
Elenco principal: Charlize Theron, Mackienzie Davis e Ron Livingston