Desânimo, doença senil do neoliberalismo
“Nossos inimigos não nos derrotam quando perdemos. Eles nos derrotam quando desanimamos”. Estas frases, parte dos textos que foram lidos durante o Festival Lula Livre, que reuniu mais de 80 mil pessoas nos Arcos da Lapa, Rio de Janeiro, no último sábado, representam muito mais que um mantra de manual de autoajuda. São a decifração do objetivo premeditado do golpe e dos ataques neoliberais, e a senha para a necessária resistência.
A melancolia produzida pelo golpe se instalou em primeiro lugar entre aqueles que identificavam a manobra perversa tão logo seus defensores exibiram os tridentes, e foi se alastrando até atingir todos os que tradicionalmente sofrem as injustiças e se aprofundou quando o engodo das promessas de melhora de vida ficou evidente.
Caso a tristeza e seus mais diferentes sintomas permaneçam e levem os indivíduos a abdicar da luta coletiva, o golpe e seus arquitetos terão atingido seu propósito máximo.
O diagnóstico de que a tristeza não é apenas uma consequência natural ou abstrata de um momento pessoal ou da conjuntura político-econômica, mas igualmente parte de um projeto elaborado do poder hegemônico, é compartilhado por diferentes pessoas.
Para essas pessoas, ouvidas pela Fundação Perseu Abramo, o antídoto à sensação de falta de sentido ou de perspectiva, produzida de propósito pelo capitalismo que se pretende onipresente, é juntar-se ao coletivo. Fazer festa, até, como ocorreu no Festival do último sábado, mesmo em meio ao que parece apenas escombros e dúvidas.
“Para manter a saúde mental e o desejo de prosseguir, o melhor caminho é juntar-se aos coletivos. Se a pessoa se isolar, adoece mesmo, pira”, comenta Fernanda Lou Sans Mangano, psicóloga e presidente do sindicato da categoria no Estado de São Paulo.
José Genoino, ex-presidente do PT, destacou esse aspecto em recente conversa com militantes e dirigentes. “Se desanimarmos, se perdermos a vontade de resistir, aí eles conseguiram o que queriam”, disse o ex-deputado, ex-ministro e ex-preso político por duas ocasiões, a ditadura cívico-militar iniciada em 1964 e o pré-golpe de 2016.
Captando esse panorama, o debate “A Luta que Cura: A Função Terapêutica dos Movimentos Sociais”, realizado em junho na cidade de São Paulo, tornou pequeno o salão da livraria Tapera Taperá. Dezenas de pessoas, jovens em sua maioria, sentaram-se no chão dos corredores externos da galeria para participar.
A psicanalista Maria Rita Kehl, que naquela noite lançava o livro Bovarismo Brasileiro, sintetizou a proposta do debate usando o ponto de partida defendido por Freud, o pai da psicanálise. “Ao contrário da medicina, em que o profissional dá instruções, recomenda práticas de cura, a psicanálise não tem fórmulas. Seu princípio é dizer ao paciente: ‘Fala. Fala’. E os movimentos sociais são, para muita gente, o primeiro e o único lugar onde elas podem falar e ser escutadas”, afirmou Maria Rita.
No mesmo debate, Guilherme Boulos, liderança do MTST, narrou sua experiência de descoberta do movimento de luta pela moradia. “Senti a energia renovadora de estar com as pessoas e participar daquele processo de troca, de solidariedade, de dividir as tarefas na cozinha, no cuidado com as crianças. É mais forte e transformador do que qualquer experiência acadêmica”.
O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, a prisão de Lula sem provas, a seletividade da justiça que prende ex-tesoureiros do PT e nem cita os dos demais partidos, a condenação de 23 ativistas por uma corte do Rio, o desassombro crescente da defesa de teses repressoras e preconceituosas, o desemprego, a queda ou sumiço dos salários, o extermínio de direitos e de políticas públicas, a continuidade da repressão nas periferias e tantas outras tragédias são aspectos em relevo de uma dor que se aprofunda em tempos de golpe e, mais especialmente, da ausência de sinais contrários à crise.
“Essa é a experiência da classe trabalhadora hoje – uma classe expulsa do trabalho, que é expropriada materialmente mas também existencialmente. A expropriação do capitalismo funciona também destruindo nossos vínculos, esgarçando nossas confianças uns nos outros”, comenta a antropóloga Alana Moraes. Tomando como exemplo os movimentos de moradia na capital paulista, Alana destaca que “as pessoas chegam falando que sentem o corpo doído, paralisado”.
“O que é resistir senão ter um corpo que, assumindo sua vulnerabilidade, é capaz de se unir a outros e se refazer, se engajar em si próprio outra vez?”, questiona a antropóloga. E propõe uma outra forma de encarar, como movimento, essa questão: “A esquerda não consegue compreender ainda hoje que as pessoas se mobilizam porque sentem no corpo uma transformação, porque o corpo não consegue mais sustentar uma paralisia quando descobre uma cumplicidade no sofrimento do outro. Elas não saem de uma situação-limite porque ‘tomaram consciência’, mas porque foram capazes de sentir de outro modo”.
Na opinião de Alana, é preciso recuperar a ideia de formas de vida para a superação da melancolia. “Nossas saídas sempre tiveram a ver com composições de outras relações possíveis: vizinhança, compartilhar cuidados, saberes, receitas, terapias, medicações, nossas estratégias de proteção contra a violência doméstica e outras”. Para ela, sem dúvida, “algo acontece quando as pessoas se juntam, quando percebem que outras pessoas se importam com aquele desespero que antes era solitário”.
Nessa perspectiva, talvez novas formas de luta possam ser encontradas em dispositivos antigos ou anteriores à institucionalização de entidades ou formas de organização havia pouco predominantes. O movimento sindical, por exemplo. Para Artur Henrique, dirigente da Fundação Perseu Abramo e ex-presidente da CUT Nacional, é necessária uma rediscussão das formas de organização. “Em conjunto com movimentos sociais e partidos de esquerda, para atuar junto com os movimentos de cultura, de arte, de lazer, nos bairros, nas periferias, para pensar desenvolvimento local, economia solidária, educação, novas formas de comunicação e de disputa”, comenta.
O sindicato presente nos bairros, onde os trabalhadores e trabalhadores moram, não é exatamente algo novo, embora pouco cultivado em períodos recentes. O chamado Novo Sindicalismo, profundamente ligado à essência do PT e da CUT, apostou muito nisso. No início do século 20, o movimento sindical, que foi capaz de construir movimentos como a greve geral de 1917, dedicou muito de sua energia e tempo às atividades comunitárias organizadas a partir dos bairros. Com teatro, bailes e portas abertas fora do horário comercial.
Formas diversas de luta pululam em vários espaços. “Quando as pessoas se mobilizam para não ter um posto de saúde fechado, quando ocupam escolas, quando denunciam a violência policial numa quebrada, quando sustentam um cursinho popular, estamos cercados de experiências que podem indicar novos caminhos para a política institucional se democratizar”, comenta Alana Moraes. E democratização envolve mais gente, amplia coletivos, espanta a tristeza e o desânimo.
De qualquer maneira, a solidariedade deve ser a base de tudo, como força motriz contra a opressão capitalista. Mesmo quando tudo parece perdido. Um testemunho poderoso vem de Sérgio Silva, o Serginho, fotógrafo que foi atingido por uma bala de borracha em seu olho esquerdo pelas forças de repressão enquanto cobria manifestações de rua em junho de 2013. Serginho perdeu a visão. “O que me deu força para continuar foi o apoio que eu recebi de pessoas que eu conhecia e daquelas que eu nem conhecia”, conta ele.
Serginho trabalha atualmente na Fundação Perseu Abramo. Continua acompanhando os movimentos sociais. Durante a Flipei (Feira Literária de Paraty – Editoras Independentes), lançou o livro Memória Ocular – Cenas de um Estado que Cega, junto com Tadeu Breda. Nele, narram a violência das armas oficiais que atinge os cidadãos e buscam energia renovada para manter a resistência.