Feminismo negro: a emergência das vozes de mulheres encarceradas
Ainda lidamos pouco com o cárcere feminino. Muitos argumentam que isso ocorre devido ao número menor de mulheres em situação prisional, se comparado ao número de homens. Contudo, o sistema de justiça criminal teve modulações e ações diferentes no tratamento de homens e mulheres, considerando o patriarcado interseccionado ao racismo para aplicação de punições. Ou seja, a situação das mulheres no cárcere sofre uma dupla invisibilidade, aprofundando a precarização destas vidas.
A interseccionalidade – conceito cunhado pela professora de Direito e ativista Kimberlé Crenshaw – é, portanto, fundamental tanto para pensar um novo projeto estratégico quanto para pensar medidas emergenciais seja pensando em mulheres em situação prisional, seja em mulheres que acabam passando pelo cárcere indiretamente pela relação com seus familiares.
Entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou em 567,4%, ao passo que a média de aumento da população masculina foi de 220% no mesmo período. Temos a quarta maior população de mulheres encarceradas do mundo. 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras, ou seja, duas em cada três mulheres presas são negras. Há, portanto, um alarmante dado que aponta para a juventude negra como foco de ação genocida do Estado brasileiro. Os dados de jovens mulheres sob medidas socioeducativas também vêm crescendo. A estrutura das casas segue a lógica prisional, a maioria das internas tem entre 15 e 17 anos, sendo 68% negras – este dado no Estado de São Paulo chega a 72%. Tráfico de drogas e roubo são a maioria dos atos infracionais e os argumentos apresentados não diferem: vulnerabilidades sociais, necessidade de sustento dos filhos e família, desestruturação familiar, violência e abuso doméstico-sexual.
Podemos traçar um paralelo entre as punições femininas e as punições dos escravizados, já que ambas realizavam-se no âmbito privado. Por muito tempo, as punições das mulheres eram determinadas e executadas por seus cônjuges, e por motivação de qualquer incômodo entre eles. Ou seja, uma relação direta entre proprietário e propriedade, assim como se estabeleciam as relações entre senhores donos de escravos e escravizados, principalmente até o século 18. Segundo Angela Davis, os sistemas punitivos têm sido marcados pela masculinidade porque refletem a estrutura legal, política e econômica negada às mulheres. O que significa dizer que, sendo o espaço público negado às mulheres e sendo o espaço doméstico e privado sua determinação de vida, as punições ocorriam neste domínio. Estupros contra mulheres negras escravizadas também se encaixam neste âmbito da punição. Destas relações também tivemos como consequência a construção de estereótipos hiperssexualizados de mulheres negras e que apresentam resquícios no sistema penal ainda hoje. Esta visão hiperssexualizada, principalmente no estabelecimento de uma relação desigual e de poder, como se dá também nas prisões, estabelecendo entre criminalidade e sexualidade uma relação perversa que também se aprofundam precariedades e vulnerabilidades. Contudo, esta dimensão da esfera doméstica da punição é importante porque, como apontam diversas ativistas e estudiosas, é este sentido de propriedade e punição que trará consequências para uma violência remetida à violência doméstica nos tempos atuais.
Os espaços punitivos de hoje não rompem com os conceitos seculares de punição às mulheres carregados da esfera moral. Se por um lado são consideradas incorrigíveis, e se hoje muito instáveis e com problemas mentais, o sistema punitivo se apresenta como espaço de domesticação das mulheres. Ou seja, se houve a transgressão moral do papel social e o campo da criminologia adentrava uma perspectiva de “cura” e correção, caberia, então a recuperação de valores e de uma moral domesticada para as mulheres como esposas e mães, para as mulheres brancas, e boas domésticas e serventes para as mulheres negras.
Gênero é fator importantíssimo para compreendermos punição na contemporaneidade. Há várias formas de violência que são reproduzidas e aprofundadas no confinamento como características e padrões de violências psicológicas e físicas. Negligência médica, negação de acesso ao controle reprodutivo e a remédios são alguns dos exemplos de desrespeito e violência a que são submetidas as mulheres encarceradas. As prisões dependem da violência para funcionarem.
E é neste contexto de intensa violência, aderindo contornos de violência psicológica contra as mulheres de forma muito mais intensa, que a relação com o ambiente perverso de relacionamentos abusivos pode ser facilmente remetida.
Sendo o patriarcado um sistema baseado na supremacia masculina e tendo apontado como isso acarreta impactos políticos, econômicos e, sobretudo, morais nas vidas das mulheres, o que teremos com este cenário de encarceramento é a realidade de penas mais duras para mulheres, principalmente negras ao adicionarmos o elemento racista, frente a delitos mais leves. 40,6% destas mulheres, quando foram presas, estavam desempregadas e em 96,5% dos autos de prisão há referências ao uso de drogas, reforçando uma narrativa de drogas como problema, invertendo a lógica de que, na verdade, são as vulnerabilidades sociais que levam ao uso abusivo de substâncias. A imensa maioria destas mulheres são responsáveis por seus familiares, filhos em uma rede de cuidados e sustento da família. 72% não chegou a concluir o Ensino Médio e, apesar da Lei de Execução Penal determinar que é dever do Estado fornecer assistência educacional, tanto como instrução escolar quanto profissional, apenas 25,3% das mulheres em situação prisional estão envolvidas em atividades educacionais formais.
No caso das mulheres, é muito comum o relato de buscas e “apreensões”, invasões sem mandado de busca em seus domicílios, tortura e humilhação para obter informações que sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão pela proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões quando transportando pequenas quantidades, sendo que muitas são intimidadas a fazer isso. A imensa maioria destas mulheres é ré primária, ou seja, jamais teve passagem pelos registros policiais e, quando estabelecem algum tipo de relação com o tráfico este processo se dá na base da cadeia econômica do tráfico, ao que conclui a advogada e pesquisadora Luciana Boiteux, que suas prisões não têm nenhum impacto na dinâmica e funcionamento da economia das drogas.
A guerra às drogas, o encarceramento e o genocídio da população negra definitivamente são pautas prementes das mulheres negras. A construção do saber das mulheres negras, conforme apontam uma série de intelectuais negras como Angela Davis, Patricia Hill Collins, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e tantas outras, demonstra que a construção e a luta por igualdade das mulheres negras são marcos de melhoria na vida de toda a sociedade.
Para as mulheres negras, o empoderamento necessariamente perpassa uma luta e ganhos coletivos, no qual todas subimos juntas e juntos em libertação. Neste sentido, discutir as condições de vida e de vulnerabilidade de nossas comunidades, de nossas mulheres mais invisibilizadas pelo sistema prisional deve ser uma de nossas pautas mais importantes. É esta engrenagem reordenada e reorganizada do racismo que continua a girar sob um novo marco, mais violento e que não visa apenas o controle sobre nós, mas nosso extermínio simbólico e físico. Neste sentido, garantir a voz das mulheres encarceradas, discutir o cárcere, é um debate emergente para as mulheres feministas negras porque toca em vários princípios do pensamento feminista negro, bem como traz o enfoque da luta sobre liberdade.
Juliana Borges é escritora, estuda Sociologia e Política e é consultora do Reconexão Periferias.
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