Sutilezas da penetração dos EUA no Brasil: um filme imperdível
Anotem o nome do filme e do diretor: Fernando Weller – Em nome da América. Ele narra um episódio revelador da penetração norte-americana na sociedade brasileira e mostra como essa intervenção do império também marcou profundamente os americanos que nela se envolveram.
O filme de Weller ganhou o Prêmio Petrobras de melhor documentário brasileiro, na 41ª Mostra de Cinema de São Paulo. Passou por uma rodada de festivais e mostras e agora começa um circuito para o público mais amplo, com estréias já marcadas em várias capitais. Em São Paulo, o documentário será lançado no dia 03/04, no Instituto Moreira Salles.
O trailer pode ser visto aqui: https://vimeo.com/231401835
O centro da trama é o Peace Corps, um programa criado durante o governo Kennedy e que atendia a várias demandas. A primeira delas era funcionar como válvula de escapa para estudantes que pretendiam evitar a guerra do Vietnã. Daí o apelo de seu recrutamento. Mas havia, é claro, outros vetores, com vínculos mais fundos na tradição norte-americana de constituir um império informal, um império desterritorializado. Keynes dizia que as idéias de David Ricardo conquistaram a Inglaterra “tão completamente quanto a Santa Inquisição conquistou a Espanha.” Guardadas as diferenças, talvez se aplique à expansão norte-americana. Depois da primeira etapa, territorial, em que abocanhou um pedaço do México, a ofensiva assumiu a bandeira do Destino Manifesto, a doutrina quase religiosa de que a Nova Jerusalém precisava não exatamente colonizar, mas civilizar o resto do mundo.
Depois da Segunda Guerra Mundial, esse impulso ganhou novo alento. A lista de programas foi ampla, alguns mais gerais, outros mais focalizados em áreas temáticas ou espaços geográficos. Uma certa flama de ajuda humanitária animava o Peace Corps – garotos e garotas que iriam ajudar comunidades carentes em todo o mundo, ensinando, por exemplo, hábitos de saúde e nutrição. Nessa mesma área já havia precedentes. Em 1954, o Congresso dos EUA aprovou medida legislativa proposta pelo governo Eisenhower – a Public Law 480 – criando um programa de ajuda alimentar. É algo cujas consequências valeria a pena detalhar, mas demandaria tempo, fica para outra ocasião. A ajuda alimentar se metamorfoseou em outra campanha – o Food for Peace de Kennedy (1961). E na América Latina os pacotes foram se confundindo, mas não mesclando, com a imagem mais geral da Aliança para o Progresso, o programa “guarda-chuva” anunciado por Kennedy em 1961.
Algumas ações foram voltadas para domesticar segmentos específicos das sociedades visadas. Os sindicatos, por exemplo, foram alvo privilegiado em alguns momentos. Já em 1943, o governo Roosevelt fomentara a criação de “adidos trabalhistas” em embaixadas e consulados norte-americanos. Um desdobramento que teve importância no Brasil foi a presença do Iadesil (Instituto para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre), uma espécie de sonda norte-americana instalada em território brasileiro. Fazia prospecções, recrutava e treinava simpatizantes, difundia comportamentos e ideias. A criação do Instituto é parte de um conjunto de políticas, planos e organizações inventadas pelo governo norte-americano ou por empresários daquele país para influir sobre sindicatos e movimentos populares brasileiros.
As atividades do Iadesil tinham uma direção – os brasileiros selecionados faziam viagens de “instrução e treinamento” nos Estados Unidos. Não tinham apenas salas de aula. Visitavam instituições e eram apresentados às maravilhas do modo americano de viver – alguns se entusiasmam com o telefone sem fio, outros com o metrô. Mas os resultados não foram tão bons quanto pareciam esperar os promotores. Em alguns casos foram mesmo um tiro no pé, como se evidenciou na trajetória de Clodesmit Riani, sindicalista enviado aos EUA para a doutrinação usual. O mineiro voltou e aliou-se a comunistas para criar o Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT.
O filme de Weller traz um elemento curioso e instigante, quando temos esse pano de fundo. No nordeste do Brasil, mais especificamente em Pernambuco, o alvo direto era o movimento que se constituíra em torno de Antonio Julião, as Ligas Camponesas. E o governo americano buscou, através do fomento a cooperativas e sindicatos rurais, um modo de esvaziá-las ou enfrentá-las. O empreendimento era bem financiado e criou uma aliança bem sucedida com a igreja católica e as forças repressivas locais.
Os depoimentos, colhidos no Brasil e nos Estados Unidos, mostram como muitos daqueles jovens do Peace Corps sequer tinham idéia do jogo em que entravam. Cineasta, pesquisador e professor de Cinema da UFPE, Fernando Weller, começou sua saga de investigador de um modo, terminou de outro. Sabemos disso porque nosso Instituto de Estudos sobre Estados Unidos (www.inct-ineu.org) participou de algum modo desse momento, articulando alguns apoios para a visita de Weller a instituições americanas. O roteiro inicial partia de uma história estranha, quase lenda, sobre misterioso personagem que vivera no sertão pernambucano. Dai vinha o título inicial: Steven esteve aqui. Dessa figura enigmática tudo se dizia, até mesmo que se tratava de Steven Spielberg.
Puxando os fios de uma teia e tecendo com enorme acuidade, Fernando nos traz as vicissitudes do programa. Mostra a angústia retrospectiva daqueles “voluntários” norte-americanos que viveram ao Nordeste do Brasil para “ajudar” seu povo, nos anos 1960 e 70. As aspas do “voluntários” se devem a um fato bem simples e cruel: o programa era uma alternativa ao Vietnã, como dissemos. Uma alternativa para os participantes – que se livravam da farda e das balas. Uma alternativa, também, para a política de controle norte-americano, tentando evitar um confronto futuro com algum perigoso inimigo tropical. Mais um.
Rastreando os personagens, descobrindo suas ligações, suas ambiguidades e suas lembranças, Weller compõe os personagens através de entrevistas em que aparece a trama, sem pré-concepções congeladas e prontas para servir. Muitas ambiguidades e incertezas, aquelas que eram necessárias, afinal para que o programa tivesse sucesso, tivesse acolhida e não fosse visto com suspeita pelos jovens envolvidos.
Mas aí aparecem, também, os dados duros e nada puros. O filme traz documentos inéditos dos serviços de inteligência de lá e de cá, depoimentos dos “ex-jovens” voluntários, recolhidos em diversas cidades norte-americanas, com o calor das lembranças e da “inefável saudade”, como diz uma delas. Cenas de reportagens de época refrescam a memória, como o discurso de Kennedy no primeiro aniversário do Peace Corps, quando o presidente adverte que “aqueles que impedem revoluções pacíficas tornam inevitáveis revoluções violentas”. Desnecessário dizer que os tambores da revolução cubana batiam ao fundo, como trilha sonora. Como dissemos, não era apenas para aqueles jovens que o Peace Corps era uma alternativa a um Vietnã. A cabeça do império pensava no futuro.
Alguns dos personagens do filme são visivelmente angustiados pelo reconhecimento posterior do que, de fato, estavam fazendo em Pernambuco. Outros, visivelmente, tergiversam, tentam driblar sua história e as perguntas do repórter-cineasta. Um desses esquivos chama-se Tim Hoghen. Nem sequer olha para o entrevistador, enuncia frases cortadas, por vezes agressivas – o que parece uma pista para intuir que ele era mais do que um inocente útil. Aliado ao fato de que comprovadamente manuseava bom volume de recursos para operações no campo, temos tudo para imaginar seus vínculos com os patrões do programa – o governo e as corporações norte-americanas que o financiavam. O lobo não perde o vício: ao receber seu entrevistador, ele o apressa, mal humorado, dizendo que “isto não é o Brasil, aqui o tempo anda mais rápido”. No tom e no conteúdo da frase percebemos como estamos diante de alguém especialmente dotado para nos domesticar e trazer ao ritmo de sua “civilização”.
Para alguns dos personagens, o passado dói. Algumas das lembranças são amargas, outras são apenas nostálgicas. O passado não passa. E talvez estejamos vendo ao vivo, aqui e agora, o remake de algumas das cenas do filme. Os roteiros e personagens são certamente diferentes, no cenário atual, mas os produtores do espetáculo, quem sabe, não tenham mudado muito. O governo norte-americano, sua “inteligência para uso externo” e as corporações (com sua inteligência, também), ainda operam como produtores de espetáculos como esse – aqui, na Venezuela, no Egito, na Ucrânia e em várias partes do mundo. Quando o golpe militar fez 50 anos tivemos vários eventos acadêmicos mostrando a forte presença norte-americana naquela conjuntura. Talvez tenhamos que esperar outros 50 anos para olhar para o dia de hoje. E outro “Em nome da América” para mostrar algum outro Peace Corps reencarnado.
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