Há cem anos, em Córdoba, segunda cidade mais importante da Argentina, um conflito de estudantes universitários com a direção da universidade geraria uma pauta de reivindicações que transformaria radicalmente o ensino superior não somente nesssa cidade mas no país e em todo o continente.  No Brasil, pelo centenário daquele evento, a UNE Volante irá percorrer as universidades públicas de todas as regiões do país e em uma dela, na UFRGS, em abril, terá como tema a Reforma de Córdoba.

Fundada em 1613 pela Companhia de Jesus, a Universidade de Córdoba foi nacionalizada em meados do século XIX. No final desse século a universidade estava marcada pelo autoritarismo na gestão, o reacionarismo acadêmico e a mediocridade intelectual resultado do seu caráter elitista. Os estudantes entraram em choque com as autoridades e professores em 1918 num conflito que paralisou a universidade até que foram aceitas muitas das reivindicações reformistas.

Autonomia das instituições de ensino frente aos governos, participação de estudantes e profissionais egressos no governo da universidade, ensino universal e gratuito e liberdade de cátedra, são princípios que foram consolidados pela luta estudantil cordobesa naquele ano.

Há, no entanto, uma dimensão da Reforma de Córdoba que nem sempre é mencionada e merece ser resgatada. Para os jovens que a impulsionaram, a reforma era parte de um movimento muito mais amplo que incluía a aliança dos estudantes com os operários e suas lutas. Houve iniciativas como as Universidades Populares, onde estudantes e profissionais já formados davam aulas aos trabalhadores. O movimento ainda tinha uma dimensão anti-imperialista e demostrou ampla simpatia pela Revolução Russa que tinha triunfado no ano anterior. Os jovens intelectuais que se projetaram com essas lutas – entre eles, o mais destacado foi Deodoro Roca (1890-1942) – teriam importante atuação na defesa dos direitos humanos: na luta contra o assassinato pela justiça dos EUA dos anarquistas Sacco e Vanzetti em 1927; em apoio ao exército do Sandino contra a ocupação da Nicarágua pelo imperialismo norte-americano; na crítica ao desvio stalinista da URSS e na defesa da República Espanhola contra o fascismo em 1936-39.

Aquela luta deflagrada em Córdoba permitiu muitos avanços. Mas quando olhamos hoje para seus resultados nas universidades – brasileiras e latino-americanas – vemos que as conquistas ficaram muitas vezes na superfície, foram apropriadas por um corporativismo universitário que lhe roubou a essência.

Córdoba não reivindicava a universidade para os estudantes e professores, mas para o povo. Aqueles estudantes queriam vincular sua luta às grandes batalhas que livrava a humanidade e o fizeram. O parágrafo com que inicia o Manifesto que sintetizou a postura dos estudantes é claro nesse sentido:  “As dores que ficam são as liberdades que faltam. Acreditamos que não erramos, as ressonâncias do coração nos advertem: estamos pisando sobre uma revolução, estamos vivendo uma hora americana”.

Para ler mais:

Documento da UNE que resgata a luta da Reforma de 1918:
https://www.une.org.br/site/wp-content/uploads/2017/09/Manifesto-em-Defesa-da-Universidade-P%C3%BAblica.pdf

O livro editado por E. Sader, H. Aboites e P. Gentili, “La Reforma Universitaria. Desafíos y perspectivas noventa años después” traz artigos que oferecem um amplo panorama do evento: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101109062939/sader.pdf

“Deodoro Roca, el hereje” de Nestor Kohan, conta quem foi o principal intelectual da reforma, alem de reproduzir muitos artigos dele:  https://www.lahaine.org/mundo.php/libro-antologia-deodoro-roca-y