Um projeto estratégico, para além do FSM
Katarina Peixoto
A mesa sobre a conjuntura política do seminário de avaliação dos dez anos do Fórum Social Mundial, na manhã de terça-feira (26), foi aberta com a participação à distância de Jamal Juma, num vídeo gravado especialmente para os participantes deste FSM. Juma é coordenador do movimento popular Stop the Wall, contra o muro de anexação que Israel vem construindo em territórios palestinos na Cisjordânia. Conhecido por suas posições e conduta pacifistas, Jamal participa dos Fóruns Sociais pelo mundo desde as suas primeiras edições, denunciando e convocando o boicote e o desinvestimento contra Israel, como medidas eficazes para deter as políticas de ocupação, anexação e militarização do país. Preso sem acusação formal e sem processo em dezembro passado, Jamal teme sair de Jerusalém, onde vive há 47 anos. Ele tem medo de, na volta, ficar detido, de novo, sob o julgo do arbítrio, do preconceito e do autoritarismo.
Passou dias numa cela cheia de fezes e vômito. O motivo? Apesar de não haver acusação formal – ou por isso mesmo: a organização de passeatas e o plantio de oliveiras em territórios palestinos recentemente “anexados”. Como disse a jornalista israelense Amira Hass, em artigo publicado nesta página, a luta popular se tornou um perigo para Israel. Jamal é antes de tudo um militante pacifista, popular, do tipo que não negocia convicções por vidas, nem por terras. É um dos responsáveis pela revisitação da tese defendida há décadas e posteriormente tratada como utópica de um Estado para dois povos, secular, democrático, em que a sanha territorial e religiosa achem termo.
Nos poucos minutos de sua fala, lembrou aos brasileiros que a compra pelo Brasil de aviões israelenses não tripulados deveria ser denunciada e cancelada. E pediu apoio a essa iniciativa.
Na sequência de fotos que tomaram o lugar de sua fisionomia, no vídeo, constava uma frase pichada no muro de anexação de parte da Cisjordânia, do lado palestino: “Existir é resistir”. Jamal se despediu. Estava muito magro e abatido, vivo e sorridente.
A mesa foi então formada pelo estadunidense Michael Leon Guerrero, da Grassroots Global Justice Alliance , dos EUA, pela brasileira da Marcha Mundial de Mulheres, Nalu Faria, pelo boliviano Gustavo Soto Santiesteban do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais , e pelo jornalista francês Bernard Cassen, do Fórum Mundial de Alternativas e um dos idealizadores do Fórum Social Mundial.
As dificuldades dos movimentos sociais nos EUA
A idéia era fazer um balanço político dos dez anos de edições do FSM. Guerrero, membro da combativa Aliança Popular para a Justiça Global, analisou a participação dos movimentos sociais nos EUA, bem como seu papel tanto na eleição como nos rumos do governo Barack Obama. Para o ativista, a eleição de Obama não foi resultante da atuação dos movimentos sociais e não pode ser lida como o ápice de um processo de acumulação de forças historicamente consolidadas; o que houve, segundo Guerrero, foi uma mobilização, não um movimento. Algo circunstancial, cuja fragilidade e dependência política abriu o espaço para a decepção frente à retomada das operações militares no Afeganistão e às concessões políticas à direita democrata, internamente, bem como à Conferência Climática de Copenhague.
Além da crise econômica de 2008 e do avanço do neoliberalismo nas últimas décadas, no país, Guerrero aponta uma outra dificuldade para os movimentos sociais nos EUA. Eles não conseguem encontrar um ponto de convergência política frente ao sistema bipartidário do país, que possibilite aos movimentos avançarem na disputa pela democratização, desde as estruturas institucionais. A idéia de Guerrero é a de, para usar as palavras de Nalu Faria, da Marcha Mundial de Mulheres, fazer com que as iniciativas dos movimentos sejam “recolhidas” pelos governos e aplicadas como políticas públicas. Esse tipo de “abertura”, propiciada por alguns governos é, para a feminista, uma das chaves para se compreender o Fórum como processo que potencializa as lutas e não como uma “vitrine congelada de diversidade”; um processo que apresente “uma resposta mundial à altura das energias que dispensamos nesses Fóruns”.
A vitória na Guerra da Água
Alheio à querela subliminar que frequenta esses debates de conjuntura em todas as edições do FSM pelo mundo, desde 2001, esteve o boliviano Gustavo Soto Santiesteban, do Ceadesc. Lembrou de saída, triunfante, que a primeira vitória dos movimentos reunidos nos FSM foi a Guerra da Água, em Cochabamba, em janeiro de 2000, exatamente há dez anos. Esse movimento, contra a privatização da companhia municipal de água, culminou na vitória de Evo Morales em 2005, quando, nas palavras de Soto “derrotamos o último presidente neoliberal da Bolívia” e com a sua reeleição, com 64% dos votos, no ano passado. O tom de orgulho e triunfo, porém, foi logo posto no devido lugar. “Tudo isso parece êxitos enormes, do ponto de vista ideológico e político. Mas as dificuldades de levar adiante o conceito de Pachamama seguem sendo mais importantes de serem enfrentadas”.
O conceito de Pachamama ou Terra-Mãe não é um dispositivo místico, exatamente. Pelo menos não na acepção que Soto lhe confere. Pachamama é uma totalidade de seres vivos, ecossistemas; totalidade desde o todo e desde as partes, uma espécie de regra organizadora de um pensamento e de decisões e práticas políticas, que se apresenta no cotidiano da luta política como critério de seus avanços. Soto cita o exemplo de Cochabamba: “10 anos depois da guerra da água, a empresa pública de água segue com problemas graves de gestão e de corrupção. E muitos dos que lutaram contra a privatização ainda não têm acesso à agua” para concluir: “não basta ter clareza quanto a um ponto que somos contra; necessitamos da clareza infinita de um projeto estratégico”.
"O mundo era muito mais simples há 10 anos"
Projeto estratégico é a expressão que talvez possa resumir o conteúdo normativo da intervenção de Bernard Cassen, na Mesa. Ele foi o único que efetivamente procedeu a um balanço dos dez anos do Fórum e desde o Fórum. “O mundo na época do primeiro Fórum, há dez anos, era muito mais simples. Era bastante simples. Os Estados Unidos, a OTAN atuando como polícia do mundo, a OMC, o FMI todos tinham um papel muito claro e fácil de se identificar”. Hoje, contudo, os EUA não tem mais esse poder político que tinha, restando apenas o poder militar, que levou a derrotas no Iraque e no Afeganistão, lembrou Cassen. Isso não quer dizer que deva se subestimar o poder de desestabilização dos EUA, a retomada das atividades da Quarta Frota, as oitocentas bases militares espalhadas pelo planeta.
“Segundo ponto: economicamente houve uma mudança importante. Não esqueçamos que a crise não partiu do Sul, mas do seio do capitalismo, dos EUA. Vê-se então a substituição do G8 pelo G20”, observou, ressaltando que a entrada do BRIC no jogo não é uma trivialidade. A percepção de que há um deslocamento importante de poder em curso exige uma mirada mais detida sobre alguns movimentos importantes já em curso, como a formação da UNASUL e o papel importante que o Brasil desempenhou na sua concretização, observou Cassen. Mas essas são reflexões que ultrapassam as tarefas e o formato do FSM. Na avaliação dele, o atual formato do Fórum não é exatamente um problema. “Deve-se ir além do formato”, sobretudo para prestar atenção numa diferença que o jornalista ressaltou com ênfase, entre solidariedade e incondicionalidade, para fazer a interrogação central de sua intervenção:
“Há uma questão sobre a qual se deve pensar. Os inimigos de nossos inimigos são nossos amigos?” Cassen prossegue: “Eu creio que todo enfraquecimento do poder dos EUA é bom, porque ele é demasiado”, mas outros poderes podem surgir no seu lugar, referindo-se a China. “A União Européia foi afastada do jogo. Ela não tem qualquer papel importante no que está em jogo agora”, disse. Porque o que está em jogo é uma relação simbiótica entre China e EUA. Uma simbiose cujo fortalecimento do capitalismo e consequências para o planeta apresentam uma certa complexidade que não estava disponível há dez anos. “É preciso parar de considerar o Sul como uma só coisa. Há muitos nortes distintos no Sul”, lembrou Cassen, referindo-se às distinções que vêm ganhando importância no jogo do poder global.
É nesse quadro e frente a essas exigências que Cassen defende a reavaliação da relação entre governos e movimentos. Ele apresentou uma agenda possível de questões a serem feitas a China, que apontariam a relevância de sua advertência: “Qual a posição da China sobre a questão das mulheres? E sobre a democracia? Qual a posição da China sobre a Justiça Climática? E, a propósito, sobre a questão palestina com a qual se abriu esta Mesa?”, questionou, para concluir com um lembrete histórico, tomado emprestado a título de metáfora de uma tragédia a ser evitada. O jornalista lembrou o caso Aldo Moro a partir da tese do ex-primeiro ministro italiano da “convergência paralela” (parallele convergente, em italiano), entre o Partido Comunista Italiano e a Democracia Cristã, a qual pertencia Moro.
A tese da convergência paralela contém um ardil fundamental, que implicaria uma espécie de confluência na qual toda diferença sucumbiria. Bernard Cassen alertou para o perigo dessa perspectiva ardilosa, profundamente autoritária, que a história trágica do sequestro e morte de Moro pelas Brigadas Vermelhas dão testemunho: a desmoralização da esquerda e a derrota da centro-esquerda. A confluência de barbárie em que toda diferença sucumbiu, na Itália hoje aliás governada por Berslusconi. China e Estados Unidos, à distância e nem tanto, esse é o horizonte de combate como saldo de um balanço, para além do FSM.
Publicado na Agência Carta Maior em 26/01/2010