Entrevista: Gustavo Venturi – Eleição com candidatas mulheres pode ajudar a combater desigualdade
Por Camila Souza Ramos
Esse cenário surge após avanços da condição feminina nos espaços público e privado, com a instituição de leis de proteção à mulher e o aumento de sua participação no mercado de trabalho. É o que analisa o sociólogo Gustavo Venturi, professor de Sociologia da USP e um dos organizadores do livro “A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado”, da Fundação Perseu Abramo, publicado em 2004 e que está sendo relançado agora.
O livro traz à tona um estudo realizado em 2001 com mulheres de diversas camadas sociais e regiões sobre suas percepções dos avanços na sociedade e suas principais expectativas, além de textos analíticos. As perguntas tratam de temas tanto relacionados à inserção das mulheres no mercado de trabalho, como a atendimento de saúde, violência de gênero, relação com o homem, educação e cultura política.
Entre os aspectos que as entrevistadas mais queriam que melhorasse estão o fim das discriminações no mercado de trabalho, a igualdade de direitos e o combate à violência. Quanto à política, 70% responderam que reconhecem a importância da participação das mulheres, mas menos de 30% faz mais do que tentar convencer outras pessoas a votarem em candidatos de sua preferência.
De acordo com a pesquisa, uma dos espaços onde ainda mais se mantém a divisão sexual do trabalho é em casa: enquanto o tempo médio que uma mulher gasta com tarefas domésticas é de 24 horas por semana, o homem gasta, no mesmo período, somente 6 horas. Estes dados, porém, estão para ser atualizados. Neste ano, segundo Venturi, será realizada uma nova pesquisa sobre a condição das mulheres. “Agora podem terão medidos os impactos das
políticas públicas mais recentes”. No entanto, ele acredita que os resultados ainda não consigam medir os impactos das mudanças institucionais, dada que são recentes. “A minha hipótese é que, dada a grandeza do problema e as políticas muito recentes, a situação não tenha mudado significativamente”, mas acredita que, com relação à violência contra a mulher, os dados sejam mais positivos.
Confira a entrevista com Gustavo Venturi na íntegra.
O espaço privado ainda é onde a mulher mais se destaca?
Não temos dados comparativos. Essa pesquisa será atualizada neste ano e terá uma comparação de 2001 com 2010. Se analisarmos as declarações das entrevistadas em 2001, é clara a disposição da maioria em avançar na direção de uma maior ocupação do espaço público em detrimento de seu dia a dia dedicado ao espaço privado. São muitos claros os traços marcantes da dupla jornada, todas as mulheres que trabalham fora não deixam de se responsabilizar por uma carga elevada do trabalho doméstico, distribuído de forma extremamente desigual. E quando perguntadas como gostaria que fosse, a maioria quer ocupar mais o espaço público, trabalhando fora ou na participação política.
A discriminação no mercado de trabalho também é relevante, a dificuldade das mulheres galgarem postos de comando nas empresas, as diferenças salariais. O fato deste ano termos candidatas mulheres à presidência como Dilma, Marina, pode ajudar a combater esse aspecto da desigualdade. Ganhando ou não a eleição, transmite o exemplo de empoderamento de forma ampla e passa o recado que as mulheres têm capacidade de disputar por igual o espaço público com os homens.
Mas, pela pesquisa, a participação política não é vista como prioridade para as
mulheres entrevistadas.
Não veem como prioridade pessoalmente, cada uma considerando suas próprias vidas, provavelmente por conta de não saber como equacionar isso com as demandas do trabalho doméstico. Mas a maioria valoriza a ideia de que as mulheres participem da política.
Nos dados sobre violência, vê-se que a maioria não pede ajuda nem faz denúncias oficiais. Isso ainda é real? Falta estrutura para atendimento das mulheres?
Esse é um dado que precisa se relativizado bastante por causa do tempo dessa pesquisa, realizada em 2001. É um dos dados que mais precisa ser atualizado, porque de lá para cá supõem-se que tenham ocorrido mudanças, já que teve a Lei Maria da Penha. Agora podem ser medidos os impactos das políticas públicas mais recentes.
A minha hipótese é que, dada a grandeza do problema e as políticas muito recentes, a situação não tenha mudado significativamente. Em 2001, a noção de que a violência doméstica é um problema da esfera privada ainda é predominante. A tradução disso está nos ditos populares, como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. É um pensamento em declínio, mas presente na nossa cultura. Isso associado a um contexto em que não havia legislação que desse apoio a denúncias e criação de instituições e espaços de apoio. Tem também uma forte pressão econômica, muitas mulheres às vezes denunciam o marido mais no intuito de interromper a violência do que de colocá-lo na cadeia, porque muitas vezes eles são os responsáveis pelo sustento da casa.
Pelo menos em 2001, a quantidade de denúncias nos casos de violência sexual é
menor que a quantidade de denúncias de outros tipos de violência. Por que existe esse tipo de
diferença?
Tem um dado de uma pesquisa qualitativa que eu trabalhei no meu mestrado, em que captamos que existe uma instituição milenar, que é o débito conjugal ou a dívida conjugal. É a ideia de que os parceiros têm que estar à disposição um do outro quando o outro tiver vontade. Claro que isso funciona de forma unidirecional: quando o homem quer, a mulher tem que estar à disposição. Nessa pesquisa, encontramos muitas mulheres que concordam com isso, de que, quando ela casa, tem que estar à disposição, e algumas concordam que mesmo não querendo o
homem teria o direito de forçá-la. Até por razões pragmáticas: primeiro porque, se casou, ela estaria sabendo que tinha que estar à disposição do marido; segundo porque, se ela não atender o marido, ele vai resolver isso fora de casa. Encontra-se apoio, ainda que minoritário, das próprias mulheres a esse tipo de atitude. Entre os homens, esse raciocínio é mais prevalecente.
Não temos ainda na legislação a figura do estupro conjugal. A Lei Maria da Penha começou a tocar nisso, mas não é uma figura jurídica clara. E como a sexualidade é sempre uma questão de intimidade sobre a qual existem muitos tabus, ela carrega muita culpa. Antes das delegacias da mulher, quantos casos não ficaram conhecidos de mulheres que iam denunciar e o primeiro questionamento após uma denúncia de estupro era sobre ela mesma: a roupa que estava usando, como se ela tivesse provocado o estupro? Isso causa constrangimento e faz com que muitos casos
de violência não transcendam a esfera privada, não chegam às autoridades. Sem uma legislação que dê apoio, é pouco provável que isso melhore de forma substancial. Um dos elementos importantes para ajudar a combater essa situação é debatê-la e tornar público o debate para que deixe de ser uma ocorrência privada entre casais.
Publicado na Revista Fórum em 21/01/2010