O conservador jornal paulista mais uma vez faz de suas interpretações da política federal o ponto central de suas reportagens, relegando a prática do contraditório aos rodapés de suas páginas. Com direito a chamada de capa no jornal deste domingo, 17/01, o Estadão afirma que a Conferência de Cultura arma novo ataque à mídia e, a partir dessa premissa, faz diversas ilações que apontam para um suposto autoritarismo do Governo Lula que estaria imiscuído na tentativa de implantar uma “democracia direta” no país.

As criticas ao texto-base da conferência são bastante rasas e pontuais, considerando que expõe uma indignação pelo fato de o texto, resultado de debates em conferências municipais (2992 cidade) e estaduais (todos mais o DF), apontar a necessidade de quebra dos monopólios privados nos meios de comunicação, aumentando o vínculo entre a diversidade cultural brasileira e a comunicação. Para isso, indica para a regulamentação de artigos aprovados na constituição de 1988.

Para minha surpresa, o jornal, em tom indignado, reproduz um trecho que me parece absolutamente simples e óbvio: “as emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social do país”.

Ora, alguém tem dúvida de que a voz do mercado não pode ser a única a ser ouvida no país? Em que mundo estavam estes quando estourou a crise econômica de 2008, evidenciando que foi exatamente a desregulamentação do sistema financeiro, que concedia todo o poder ao mercado, o que proporcionou a avalanche de quebradeiras empresariais e nacionais?

A impressão que tenho é que a mídia tradicional brasileira continua sem entender o que está acontecendo no país. Eles ainda não perceberam que a verdade deixou de ser oligopolizada: ela se espalhou por aí e a população decidiu que fará sua própria leitura do mundo. Por exemplo: segundo o jornal, “no governo Lula, as conferências nacionais têm sido realizadas constantemente e produzido propostas polêmicas, mas inócuas. Na prática, servem para que o presidente Lula dê voz ao público interno do PT e dos movimentos sociais”.

Vários preconceitos se expressam aí. Em primeiro lugar, a polêmica faz parte de uma democracia que, para que possa ser chamada de democracia, deve ser plural, portanto, não ser apenas expressão de consensos, mas, principalmente, vetor da explicitação de dissensos. Isso mostra que produzir polêmica é positivo para a democracia brasileira. Em segundo lugar, não é verdade que as conferências sejam inócuas. Para citar um único caso, vale lembrar que a 2ª Conferência Nacional de Meio Ambiente teve 83% de suas deliberações implementadas no ano seguinte, o que legitimou a convocação e grande participação na 3ª Conferência.

Eu não tenho aqui o número total de conferências nem o balanço de cada uma delas, mas sei que elas, além de serem um compromisso público expresso nos programas de governo do Presidente Lula, têm por tarefa a promoção e difusão de debates de temas nacionais exatamente para que eles não estejam restritos à mídia privada que, por óbvio, têm lado e, portanto, não pode se arvorar ao direito de falar pelo todo.

Em terceiro lugar, não é justo dizer que as conferências são um instrumento “para que o presidente Lula dê voz ao público interno do PT e dos movimentos sociais”. Se observarmos o caso da Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), veremos que lá estavam representados três lados: governo, movimento social e empresários. Todos os setores organizados que quiseram participar tiveram a sua oportunidade. Alguns, exatamente por não gostarem do contraditório e da participação popular, por não aceitarem o debate franco e aberto e a aprovação de propostas que lhes poderiam ser economicamente desfavoráveis, excluíram-se do debate e esconderam a conferência de comunicação. Além disso, havia muito mais setores organizados do que o PT consegue abarcar. Vários partidos e movimentos estavam lá representados, o que não permite que a Confecom seja caracterizada como uma artimanha do presidente Lula para contentar sua base social tradicional.

O fato é que o jornal busca desqualificar as conferências nacionais por não acreditar na democracia participativa e, por sua vez, preferir a democracia dos patrões, ou seja, a democracia daqueles que Raimundo Faoro classificou como “os donos do poder”. Mais do que publicar uma mera reportagem, o jornal percebeu que seria preciso dar voz a alguém que ajudasse a legitimar sua tese, ou seja, alguém que ajudasse a desqualificar as conferências e o modelo de participação praticado nos últimos sete anos.

Para isso, o jornal buscou um intelectual bastante próximo ao PSDB paulista e que seguida e legitimamente tem manifestado suas discordâncias em relação à políticas do governo Lula: o cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Sendo assim, é positivo o fato do prof. Leôncio não tentar disfarçar ou enganar o leitor sobre suas convicções. Ele é muito claro: “Uma nova elite de origem plebéia ascendeu com Lula. Chegou ao poder vindo de baixo. Essa elite não eliminou a outra, ao contrário, fez acordos. (…) Houve aproximação com a elite conservadora. Engraçado, não houve aliança com a elite moderna, intelectualizada, agrupada em torno de Fernando Henrique”.

Na entrevista com o professor Leôncio, a repórter Clarissa Oliveira, na esteira de uma resposta do entrevistado, que diz que “a esquerda perdeu a guerra militar, mas está ganhando a guerra ideológica”, pergunta: “Essa guerra ideológica está inserida nos textos das conferências nacionais com a roupagem de democracia direta?”

Essa é a deixa para que o entrevistado e o próprio jornal passem a chamar aquilo que o governo e o PT chamam de democracia participativa de democracia direta. Em nenhum momento a realização de conferências, que tem em suas regras uma perspectiva clara de participação sem negar o método da representatividade – já que são realizadas conferências municipais, estaduais e setoriais e, por conseguinte, são eleitos delegados para as fases subseqüentes – pretende implantar no país uma Ágora grega. Lula não vai à praça discursar e pedir aclamação. São publicados editais de convocação, regras de participação e documentos para análise e debate. E, no mais, as conferências, ressalvando as diferenças entre elas, têm caráter consultivo e deliberativo desde que não firam a autonomia de poder dos ministérios nem o equilíbrio entre Executivo e Legislativo.

Portanto, não é correto dizer que a política de realização de conferências é uma maneira de implantar a democracia direta no Brasil e, com isso, fazer alusões ao fascismo. O prof. Leôncio disse que “existem certas tendências no PT que acreditam efetivamente que a democracia direta seria ‘mais democrática’ do que a democracia representativa. Mas essa idéia do contato do líder direto com a população e a crítica à democracia representativa, ao parlamentarismo, foi a base do fascismo. O fascismo está muito ligado a isso, ao líder popular de classe média, como o Mussolini”.

Dito isto, creio que não seja necessário ir além para evidenciar as intenções da crítica à conferência nacional de cultura. O óbvio está posto. Parece que o Estadão pretende dizer que conferência é igual a uma burla à democracia representativa, ou seja, é uma forma de fascismo, um tipo de golpe às regras constitucionais e democráticas.

O que se vê, ao menos, é muita gente mobilizada para participar dessa conferência e o tema da diversidade cultural no país ser alçado à condição de pauta central da política nacional e, como no governo Lula, política externa é política de governo, o respeito à diversidade cultural também está presente no Itamaraty.

Para alguns pode ser triste, mas talvez seja exatamente pelo viés da promoção e proteção da diversidade cultural – como já bem definiu a UNESCO com a liderança do Brasil – que cultura, educação e comunicação integrem definitiva e conjuntamente o centro da pauta política no Brasil.

Glauber Piva é sociólogo e diretor da ANCINE, Agência Nacional do Cinema

Publicado no portal PT em 18/01/2010