“Dinheiro sujo” ou apenas o dinheiro en su tinta?
Lançada neste início de ano pela Netflix, a série de documentários reunidos sob o título “na rota do dinheiro sujo” (Dirty money) traz a público seis episódios sobre as estripulias de grandes empresas e seus CEO’s em um mundo governado pelo dinheiro.
O primeiro episódio (“emissões mortais”) trata de esmiuçar em detalhes a estratégia da poderosa Volkswagen para burlar os sistemas de controle de emissões de poluentes nos EUA – e também na Europa – e assim conseguir vender carros à diesel para abocanhar uma imensa fatia do maior e mais importante mercado de automóveis do mundo. Da matriz alemã em Wolfsburg (cidade dos lobos!!!), a alta cúpula da empresa jogava seu xadrez econômico em um tabuleiro onde clientes, agências reguladoras, moradores dos centros urbanos, laboratórios de testes, entre outros, eram diferenciados apenas pelo número de cifrões que carregavam na testa.
No segundo episódio, conta-se a história da financeira dirigida pelo arrivista Scott Tucker, um ambicioso empresário do mundo das finanças que se aliou a uma tribo indígena (nos EUA as tribos têm imunidade perante às leis estaduais) para conceder empréstimos via internet a indivíduos que já não tinham a quem recorrer para chegar ao fim do mês. Aliviados por um pequeno empréstimo inicial, depois de meses pagando o que acreditavam ser as parcelas referentes a amortização e juros, os tomadores dos empréstimos acabavam descobrindo tardiamente que o valor mensal debitado de suas contas correntes era feito apenas a título de renovação cadastral para revalidar os empréstimos, enquanto as dívidas cresciam aceleradamente – embora a taxas muitíssimo mais baixas do que aquelas praticadas pelos bancos brasileiros à luz do dia e sob anuência do Banco Central. Na arapuca armada pelo tal Tucker, 1,5 milhão de estadunidenses pobres foram fisgados, enquanto ele embolsou alguns bilhões de dólares para torrar em corridas de automóveis.
Nos demais episódios, seguem histórias da mesma laia, em que a concentração de poder econômico estupora as regras mais básicas de civilidade e convivência: no México, o HSBC e seus negócios de lavagem de dinheiro para os carteis do narcotráfico; nos EUA, uma empresa farmacêutica (Valeant) que em 7 anos adquiriu 110 concorrentes, elevou o preço de alguns medicamentos de uso vital (a cartela de um determinado remédio para o fígado que custava 30 dólares passou a custar 26 mil dólares!), e conseguiu assim fazer o valor de suas ações dispararem em Wall Street; no Quebec, Canadá, uma federação de produtores de Maple Syrup, com o propósito de estabelecer um estoque regulador para elevar o preço da iguaria, se transformou em um gigantesco monopsônio, explorando a renda dos produtores e enriquecendo seus dirigentes – assim como fazem, também à luz do dia, muitos laticínios no Brasil e no mundo.
Por fim, no sexto e último episódio, a série culmina com ninguém menos que Donald Trump, mostrando o histórico de falcatruas do homem do topete alaranjado, suas múltiplas falências, sua associação com empreendimentos mafiosos em outros países e sua mais ousada estratégia de se tornar presidente da maior economia do planeta para assim alavancar os seus próprios negócios.
Como parece claro, a série “Dirty Money” persegue em seus seis episódios o papel que o dinheiro joga na sociedade contemporânea. Embora haja considerável diferença no tratamento do tema em cada um dos capítulos, os quais são realizados por diretores distintos, o fio da meada é a corrupção de valores – não de governos! – que se generaliza à medida em que o cálculo econômico se sobrepõe a outras formas de valoração da vida e das relações sociais.
O impressionante da história é que, apesar dos números bilionários que envolveram algumas daquelas fraudes, muitas foram realizadas supostamente dentro da lei, sem que fosse necessário molhar a mão de nenhuma autoridade, nem qualquer desvio de dinheiro público.
Os graves danos causados sobre o meio-ambiente, as pessoas adoecidas que tiveram que vender tudo para comprar o próximo comprimido, as dramáticas sequelas sociais derivadas da expansão do narcotráfico, as famílias pobres cada vez mais endividadas, e até mesmo a captura do governo de uma nação para tornar ainda mais bilionários alguns bilionários, em quase nada constrangem uma sociedade que passou a considerar que tudo pode ser medido pela métrica fria dos preços. Se na ponta do lápis uma estratégia econômica se apresentar como vantajosa, ela ocorrerá. É simples assim.
Por tudo isso, o curto título “dirty money” acaba parecendo excessivo. Seria melhor ter batizado a série apenas de “money”, sem adjetivos ou qualificações. O que seus episódios revelam – ou também quaisquer quinze minutos das rádios que tocam notícias – é que não faz nenhum sentido diferenciar a qualidade dos “dinheiros”, porque não são nem “bons”, nem “ruins”, nem “limpos”, nem “sujos”, mas apenas dinheiro, o substantivo por excelência na ordem capitalista; uma abstração que serve a todos os outros bens (materiais e imateriais) e que, justamente por isso, subverte sem qualquer constrangimento o feixe de valores que há um bocado de séculos vinham nos dando guarida nesta difícil toada.
Nota técnica:
Título original: “Dirty money”
Ano: 2018
Produção Original: Netflix
Diretores: Erin Lee Car, Alex Gibney, Kristi Jacobson, Brian McGinn, Jesse Mos, Fisher Stevens.
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