Em entrevista exclusiva para o Portal FPA, o presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fala sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) e as intensas reações causadas pela iniciativa em alguns setores da sociedade.

Em entrevista exclusiva para o Portal FPA, o presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fala sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) e as intensas reações causadas pela iniciativa em alguns setores da sociedade.

Há uma discussão acalorada na imprensa sobre a Lei de Anistia, a reboque da divulgação do III Plano Nacional dos Direitos Humanos. Qual é a avaliação da Fundação sobre esse debate?

Existe um manifesto do Comitê Nacional contra a anistia aos torturadores, que está recolhendo assinaturas de juristas, intelectuais, ativistas de movimentos dos direitos humanos, lideranças de movimentos sociais e populares, cidadãos… Isso, para ser anexado a uma ação que arguiu o preceito fundamental da Constituição, chamada ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) e ingressada pela OAB em 2008. Nela, o STF vai julgar se a Lei de Anistia de 1979 concede ou não impunidade aos torturadores – por causa daquela expressão “crimes conexos”, usada para criar a ideia de que a Anistia era para os “dois lados”.

Esse manifesto já tem 12 mil assinaturas, e a Fundação Perseu Abramo resolveu ingressar formalmente nesse movimento. Ela publicou no seu portal a petição, e fará um apelo para que as pessoas o assinem, difundindo-o. A FPA concorda com o teor do apelo, segundo o qual a tortura é um crime imprescritível. Não é crime político – portanto, não foi beneficiado pela Anistia de 79. Trata-se de um crime comum que afrontou as leis da época, da própria ditadura, e também é visto como tal pelo direito internacional, que o considera imprescritível. E o Brasil faz parte dessa legislação, desses tratados, e eles são absolutamente insofismáveis quanto a seu caráter imprescritível. Ninguém propõe a revisão da lei da Anistia, e sim que a Justiça considere que esta lei não perdoe o torturador.

Quer dizer que este debate da Anistia não tem nada a ver com o que está proposto no PNDH?Não é um decreto do presidente Lula, conforme tem sido colocado pela imprensa?

Não, não é, isso é uma notícia manipulada. Trata-se de uma versão que vem tentando se transformar em fato, quando não é verdade que o Plano seja para rever a Lei de Anistia. Ele não faz essa revisão. Nesse debate, tanto o Paulo Vannuchi como o Tarso Genro – assim como nós e todos os que nos apóiam – acham que é uma decisão a ser tomada pela Justiça. E é uma posição do presidente Lula também, não há o que o discutir.

Então o que propõe o PNDH sobre a ditadura, que provocou toda a reação (dos militares e afins)?

O Plano propõe uma Comissão de Verdade, que é outra coisa. A Comissão de Verdade é administrativa, ela não substitui a Justiça, não tem o poder de declarar se os torturadores estão perdoados ou não. Ela deve recompor um trabalho sobre a memória e a história para chegar à verdade histórica, ao que aconteceu durante a ditadura civil-militar que durou 21 anos no Brasil. E isso provocou essa reação, e sempre provocará…

A cúpula militar, a inteligência militar do país é totalmente identificada com a democracia, tem profundo sentimento nacional e espírito público. Ela está profundamente identificada com um projeto de Nação que está sendo construído no Brasil. Não tem contradição nisso, ela acata e aceita a Constituição totalmente. Mas [ao mesmo tempo] tem uma dificuldade enorme de lidar com o passado. Querem manter a ficção de que a ditadura instalada em 1964 foi um golpe para restabelecer a democracia, o que não é verdade. Foi para instituir uma ditadura com todas as suas consequências, e que durou 21 anos.

Agora, esse é um problema que tem que ser enfrentado dessa maneira. Quer dizer, não se trata de civis contra militares, ou democratas contra militares, não é nada disso. Não tem disputa maniqueísta do bem contra o mal. São pessoas que a gente admira, que o Brasil respeita. O país admira suas Forças Armadas, trata-se de parte integrante do nosso projeto e nenhum louco pensa diferente. Então, é necessário apartar essa ideia de uma volta do confronto entre a esquerda e a direita, que aconteceu durante a ditadura. Não tem nada a ver isso, é passado, fica no domínio da História. O que está em discussão agora é: como resgatar o passado? A democracia avança. Se na ditadura a Lei de Anistia possível foi aquela, inconclusa, incompleta, imperfeita, excludente, ela também cumpriu um grande papel na volta da democracia. Tanto que foi mudada várias vezes. Na Constituição de 1988, foi alterada pela lei 9140/95, que reconheceu os mortos e desaparecidos políticos – antes, não o eram. E foi mudada na Comissão de Anistia, que incorporou reparação econômica e moral – o que a Anistia inicial não comportava – para civis e militares perseguidos pela ditadura. Ela foi modificada várias vezes, não é intocável.

Mas nem por isso é proposta uma nova lei de Anistia, porque isso passou. Já temos trinta anos da Lei, o que a gente vê no Brasil é um processo que acompanha a evolução democrática do país. E à medida em que se consolida a democracia, direitos novos se colocam. Hoje existe a demanda ao direito à memória e à verdade – que é tão importante quanto outros direitos. Uma nação com sua democracia não comporta a manipulação de sua História, nem permite que alguém vete sua busca. Ninguém tem esse poder, é um direito inerente à cidadania e à democracia. Então não terá veto.

Temos que tratar isso de uma maneira madura, de modo que saibamos dialogar, mesmo com as dificuldades existentes. E é isso que está colocado. O PNDH 3 é uma sequência de dois planos prévios, que vieram do governo anterior. Participei dos dois ativamente, eu era da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e um dos negociadores do Plano Nacional 1, que tem pontos que estão entrando hoje neste terceiro. No 2 os movimentos de Direitos Humanos brasileiros e do mundo inteiro colocaram que o Estado brasileiro incorporasse uma nova versão, com os direitos sociais, econômicos e culturais. Isso foi feito em 1999.

O que significam esses direitos, na prática?

Significa, para os Direitos Humanos, incorporar o mundo do trabalho, o acesso à terra urbana e rural, e o direito à alimentação como parte dos direitos econômicos. Incorpora direitos sociais – os direitos previdenciários, o direito à saúde, que são dever do Estado – e a assistência social cidadã. E inclui grupos vulneráveis, povos ameaçados de extinção e de risco social elevado.

Os direitos humanos culturais – o direito à educação – ficam abertos, e vão se acrescentando na Constituição. O antigo “ensino fundamental” – agora, pré-escola – e o ensino médio profissional vão entrando, de forma progressiva, no ensino universitário. E a agenda vai evoluindo enquanto o país evolui.

O direito à cultura, não como o “direito de ser espectador”, mas produtor da cultura, com todas suas as implicações – em todos os níveis, em todo o país, para todas as classes. Entra o acesso aos bens do progresso científico, como bem comum da humanidade que não pode ser apropriado por uma classe social, por um grupo. E é inserido o combate a toda a forma de discriminação e preconceito: de gênero, sexual, de procedência nacional ou regional. A questão racial, tudo isso entra, desde o primeiro plano.

Por que se fez o Plano 3? Porque depois de sete anos de governo Lula, com investimento no social, o Brasil mudou. Então agora existem novas demandas e agendas, e o PNDH tem essa tarefa em comum para o Brasil todo – não é do governo A, B ou C, nem do partido A, B ou C. É tarefa de todos. Muitos só veem Direitos Humanos retoricamente, quando entra no plano concreto, há reação. A Kátia Abreu (senadora ruralista) é a favor dos Direitos Humanos; mas, quando isso atinge os ruralistas e o latifúndio, ela é contra. No momento em que queremos discutir o trabalho escravo e degradante, a questão da produtividade e o limite da propriedade, é guerra civil. Mas essas são coisas banais nos Direitos Humanos.

Ela (Kátia Abreu) é a favor dos Direitos Humanos retóricos, formais. Mas ao falarmos que é um direito para todos, é contra. Trata-se de uma tarefa a se conquistar, convencê-los (os ruralistas) que não podem ter a terra. A Constituição fala da função social da propriedade. Nossa Constituição é inóspita. Os compromissos internacionais proíbem o trabalho escravo, que tem que ser erradicado; proíbem o trabalho infantil, o trabalho degradante, pedem o trabalho decente. Sempre existirá um conflito com eles, que também tem que fazer esse aprendizado. Eles têm que se comprometer com os Direitos Humanos mesmo, sem ser da boca pra fora, como estão fazendo agora, se aproveitando de um momento peculiar para colocar as manguinhas de fora, com todo seu conservadorismo, seus privilégios, sua recusa a qualquer mudança. O Brasil precisa avançar na luta contra a desigualdade econômica, social, política e cultural.

Outra área que protestou foi as dos militares, sobretudo dos que têm a ver com os porões, que não querem ver escancarados seus crimes. E isso o Brasil deve enfrentar sem revanchismo. E se o STF decidir que é imprescritível, é uma decisão de Justiça. E Justiça não é revanchismo. Foi feita a Justiça, ao contrário da ditadura, quando não se tinha direito de defesa, havia tortura, assassinato, desaparecimento… Na democracia, se alguém for acusado tem todo o direito de se defender. O rito da lei tem que ser rigorosamente cumprido, não fugiremos disso. Se o STF decidir que as Forças Armadas devem acatar a decisão, elas o farão porque são democráticas. E os porões terão que se defrontar com seus crimes do passado.

Também houve uma reação da Igreja Católica, não é?

A Igreja defende os Direitos Humanos. Ela e parte das outras igrejas são contra o aborto (também na situação do anencéfalo). Isso é uma diferença. No mais, ela concorda com tudo no Plano, a Igreja é uma parceira dos Direitos Humanos. O governo Lula tem agido da seguinte forma: a questão do aborto é de saúde pública, e isso levou a um conflito permanente com a Igreja. Agora, isso saiu de conferencias estaduais de Direitos Humanos e da Conferência Nacional de DH, com centenas de atores sociais. A Igreja é parceira, precisa saber lidar com isso, com paciência. Há dificuldades, mas deve-se trabalhar com paciência, habilidade e tolerância. Não são contra o PNDH, eles participaram de sua própria elaboração. Centenas de pastorais e orgãos da Igreja estiveram no processo.

Vale também para as igrejas evangélicas…

É um desafio nosso fazer com que as chamadas igrejas messiânicas também abracem os Direitos Humanos. É uma tarefa permanente pra quem lida com DH. Quem mais se opôs? A mídia. Foi contra pelos mesmos motivos pelos quais se opôs à Conferência Nacional de Comunicação. Porque a Confecom vai muito além. No Programa, o que está colocado é uma pequena parte da Confecom. Toda mudança suscita reação.

A democracia brasileira entra em novo estágio. A sociedade brasileira quer a democratização da comunicação, é um direito. Há essa questão da convergência da mídia, a era da mídia digital. A lei já diz que isso tem que ser compartilhado entre público, privado, estatal. O que já suscita reação. Quando votamos sobre a tortura em 1997, era a regulamentação da Constituição Art. 5º, e houve 77 votos contra. Tinha gente que ia ao microfone e falava que "tipicar o crime da tortura acabará com a polícia no Brasil". Toda mudança, por mais justa e necessária, gera resposta, e isso tem que ser enfrentado de forma democrática.

Tudo isso tem que passar pelo Congresso, no qual todos os partidos estão representados. Os donos da mídia, os ruralistas têm bancada enorme. O que tem pouco lá é bancada dos sem rádio, sem casa, sem diversidade, sem terra. Esses são os que têm menor representação. Então todos vão opinar, e portanto debaterão o plano. O que existe é uma manipulação política nessas reações ao Programa.

Por que, neste momento, se cria esta celeuma? Já houve planos similares, este consolida uma série de ações que vêm sendo discutidas e implementadas desde o governo FHC. Por que agora?

Porque há uma disputa eleitoral em 2010. No caso do PNDH 3, boa parte do que li, é assim: "não li e não gostei". Estão opinando a partir do “ouvir dizer”. Não houve boa vontade nem mesmo para ler o conteúdo do Programa. A Folha de S.Paulo fez uma matéria honesta hoje (12/11). O Fernando Rodrigues (jornalista da da Folha) fez uma comparação dos três planos, e se o resto da mídia ler o que ele escreveu, a partir de amanhã o tratamento sobre o assunto será outro. Há muita hipocrisia, existe muito tucano que, na época em que era governo, apoiou o PNDH 2. Apoiaram e deram respaldo. Agora, vêm em defesa do PNDH 3 pessoas como José Gregori, Paulo Sérgio Pinheiro, que são identificados com o PSDB mas defendem o Plano. E eles vão mostrar que a discussão está desfocada.

Agora, o plano deve ser debatido, não é intocável. Nada do que está ali tem que ser mantido a ferro e fogo. Ele esteve em uma consulta pública até na internet. Saiu da conferência de 2008, precedido de outras, é um processo inteiramente público. O debate é totalmente transparente. Para o PNDH, é muito bom que haja uma discussão honesta sobre seu conteúdo. Então vamos debater por quê rico não paga imposto, que transfere para o andar de baixo. Então para tratar de justiça social no país, vamos discutir isso. Quem paga imposto é a classe pobre, popular. Ricos, não.

A concentração de terra também é uma forma de concentrar riqueza e poder no Brasil. O Brasil tem que enfrentar isso. No caso da mídia, a lei brasileira já diz que a mesma empresa não deve ter propriedade cruzada, acumulação de poder, deter toda a cadeia produtiva. Não pode, mas no Brasil existe. Isso tem que ser enfrentado, porque todo a população tem direito à comunicação. E ele está sendo conquistado pelo povo. A sociedade não aceitará isso, temos que que avançar. A democracia é um processo inacabado, em construção. Nunca termina. Não tem ponto de chegada definitivo. O recém eleito presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, diz que a luta pela justiça social, pela igualdade, é permanente, e deve-se subir degrau a degrau.

Daqui a 10 anos, quando vier o PNDH 4, existirá a mesma reação. Os planos sempre têm uma parte programática, que depende de passar pelo Congresso, de outros poderes. É difícil de aprovar.

Há também a interpretação de que o PNDH 3 é um programa de governo para Dilma. Que o PT está lançando o programa agora, que é uma consolidação das propostas do PT….

Não foi o PT que lançou isso. Temos uma cultura de Direitos Humanos que passou pelo José Gregori, pelo Paulo Sérgio Pinheiro, por mim e está com Paulo Vannuchi; o tema é suprapartidário, não deve ser partidarizado. Porque, para se efetivar, o plano depende dos governos estaduais e municipais. E aí estão todos os partidos. Se os governos estaduais não decidirem eliminar a tortura, o programa não se viabiliza. O trabalho infantil só acaba se os municípios entrarem no PNDH, a exploração sexual infantil também. Então os Direitos Humanos são uma luta de todos, de todas as esferas. Trata-se dos governos Federal, Estadual e Municipal, do Estado Executivo, Legislativo e Judicíário, com o Ministério Público, e envolvendo a sociedade. É ela que empurra. Então não é verdade que o PNDH é programa desse ou daquele partido. Assim como não foram do PSDB os planos 1 e 2, não é do PT o Plano 3.

O anúncio do PNDH 3 deveria acontecer em 2009 como resultado do processo de construção?

É a agenda mesmo, deu para 2009, já que a Conferência aconteceu em 2008. Até por excesso de zelo do Paulo Vannuchi, para negociar melhor, para tornar o debate conhecido, para evitar reações, ele retardou o quanto pode, para conversar com o máximo de gente. E a reação do Jobim é esperada, é diferente da do Vannuchi, e do Tarso Genro e de tantos outros. Ele acha que tem que por uma pedra no passado. Há milhares de cidadãos neste país que discordam radicalmente disso, e acreditam que só investigando bem o passado teremos um futuro melhor. Faz parte do processo, e o Jobim é gente do bem também, e vamos continuar divergindo.

E deixar de vincular isso a programas de eleição?

Espero dos proceres tucanos honestidade em relação ao Plano, que o tratem com o mesmo respeito com que trataram o PNDH 2.