Desde os anos 1990, na esteira da globalização comercial e financeira, as grandes corporações internacionais trataram de estruturar suas estratégias de acumulação esparramando suas atividades entre diferentes espaços nacionais e assim constituindo as tais “cadeias globais de valor” (CGV) que redefiniram a divisão internacional do trabalho. Mesmo após os abalos da crise de 2008, as cadeias seguiram basicamente na mesma toada, apenas reorientando uma ou outra etapa do circuito: projeto-financiamento-produção-distribuição-comercialização-aplicação dos resultados.

Mas fatos e circunstâncias recentes sugerem que o mapa da produção mundial poderá sofrer transformações mais profundas nos próximos anos, eliminando elos das cadeias de valor e reconcentrando as atividades com maior potencial de geração de valor nas economias avançadas.

Em estudo publicado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em julho de 2017 (leia aqui) estimava-se que dois fatores fundamentais deverão jogar papel importante no processo de redesenho das CGV’s. Por um lado, as transformações tecnológicas que acompanham a chamada Indústria 4.0 (notadamente a ampliação da robótica e da “internet das coisas”) prometem reduzir dramaticamente as vantagens econômicas e logísticas que justificavam estender a produção para longínquos países da periferia. Por outro, os incrementos salarias que se acumularam ao longo dos anos nesses países reduziu o diferencial que havia em termos de custos laborais, o que significa que esse deverá perder importância como fator estruturante das CGC´s.

Por isso, considerando um cenário de maior intensidade desses processos, o documento da OCDE conclui que deverá ocorrer uma retração das CGV’s em favor do centro e, consequentemente, um impacto significativo no comércio global, o qual poderia encolher até quatro pontos percentuais em 2030.

De fato, embora haja grande grau de imprecisão nesse tipo de estudo prospectivo, parece bastante razoável supor que nos próximos anos tenhamos uma onda de introspecção das CGV’s, até porque dois outros eventos importantes que ocorreram depois da publicação do texto dão ainda mais sentido a essa tendência.

Em primeiro lugar, as resoluções do 21º Congresso do Partido Comunista Chinês sinalizam um aprofundamento da transformação da economia chinesa, com crescente participação da demanda interna na determinação do renda nacional e com um delineamento de novas cadeias de valor no âmbito do projeto “Belt and Road Iniciative”, o qual deverá se pautar não apenas pelos diferenciais econômicos que podem ser explorados em diferentes países, mas antes de mais nada pelos interesses geopolíticos da China.

Em segundo lugar, a recém aprovada “reforma tributária” nos EUA, reduzindo as alíquotas de impostos para os ricos e para as empresas, deverá tornar a maior economia do planeta um forte concorrente dos paraísos fiscais, pois, mesmo que os últimos ainda mantenham vantagens tributárias consideráveis, o porte do mercado norte-americano e a presença dos centros decisórios das grandes corporações poderá fazer toda a diferença – um primeiro exemplo, noticiado logo após a aprovação da reforma de Trump, é o da gigante Apple, que deixará de registrar seus lucros na Irlanda para retornar ao seu país de origem. Se a moda pegar, e uma “guerra fiscal” em escala planetária se intensificar, o deslocamento das CGV será inevitável, com sérias repercussões sobre a divisão internacional do trabalho.

Infelizmente, nós, que desde os anos 1990 temos perdido terreno na produção mundial de bens manufaturados, teremos pela frente um desafio ainda muito maior. Para além da crise política em que nos meteram os golpistas e da captura dos eixos de dinamismo econômico pelas mãos dos capitais financeiros internacionalizados, precisamos reconstruir um sólido projeto de desenvolvimento nacional que seja capaz de promover grandes investimentos em setores estratégicos, retomar a expansão do mercado interno por meio de políticas de desconcentração da renda e fazer a economia voltar a crescer.

 

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