Crônica: ‘A vida como ela será. A educação e a reforma’
O ranger das dobradiças quando João Curralo abriu a porta denunciava que há tempos não havia óleo na manutenção dos móveis daquele apartamento castigado pelo tempo. Boa noite amor!… e dirigiu-se para cumprimentar a esposa com a mesma disposição de um jovem amante – mesmo depois de duas década completadas de relacionamento. E ela, com a mesma reciprocidade adolescente logo depois do carinho indagou: Nossa, por que chegou tão tarde?
Tive que esperar um pouco na baldeação, quase tive que pegar o último ônibus porque cheguei tarde ao metrô.
Outra vez ficou falando com os alunos!? Amor, não podemos mais gastar com táxi. Este último ônibus já é bem tarde, tente não perder.
É difícil, eles gostam de fazer perguntas depois da aula; não dá pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Sabe como é, tá cada vez mais raro o contato com os estudantes, é importante aproveitar esses momentos.
Mas já não podemos nos dar ao luxo… táxi nem pra emergência. O orçamento não comporta. Além disso, o que resolve? Se ao menos em 2016 soubéssemos de como essas mudanças teriam efeito, ainda dava tempo, agora conversar é perda de tempo… tudo rápido, tudo técnico, tudo supérfluo… você ainda é aquele mesmo sonhador de vinte anos atrás. Não cabe mais, estamos na pós-modernidade.
É por isso que você ainda me atura Jussara. A educação mudou, o trabalho mudou, o mundo mudou, mas eu ainda não mudei… E deu um leve toque na cintura da esposa que a fez sentir cócegas, enquanto se dirigiam à cozinha… Se ao menos soubéssemos naquela época que escola sem partido é na verdade o EaD de sociologia, antropologia, filosofia, pensamento social, ao menos teríamos resistido de outro modo.
A reforma trabalhista de 2017 foi mais prejudicial à Educação que qualquer mudança curricular. Aliás, ela trouxe várias das atuais grades para o primeiro plano… e a verdade é que acabaram com o pensamento crítico, com a capacidade de análise, com qualquer esperança de emancipação pela educação. É difícil os alunos de hoje perceberem o tamanho do estrago e a falta que o pensamento crítico faz… os alunos, esses pobres coitados não têm culpa, se só querem o certificado pra tentar ter um pouco de valorização é porque acham que o mundo é essa insegurança de hoje.
Eu sei João, não pense que no secundário aconteceu coisa muito diferente… ainda preservo minhas aulas, mas toda criticidade também se foi. EaD é pras humanas, pras inutilidades, o que se preservou foram as matérias técnicas, sem nenhum debate, números e fórmulas. Não é culpa de ninguém, os alunos não têm como saber que antigamente a preparação gerava mais noção de realidade, tinha mais capacidade intelectual e de análise… A construção de liderança, o papel transformador da educação, tudo isso é passado. Agora já foram gerações afetadas pela mudança. O ensino na média não tem mais nada a ver com formação, é pura preparação pra servir o cliente…
Depois de tanto tempo a gente só é considerado sonhador, saudosista. Mas agora os trabalhos são vários, inseguros e sem condições de atender um mínimo de estrutura de vida. Nem falo do nosso. Todo mundo se acostumou a várias atividades em vários momentos e tudo mau feito… O que é isso aqui?
São as trufas que estou fazendo para vender na sala dos professores. Tive até encomenda essa semana.
Nossa! Que bom, eu não botava fé nisso. Afinal, a vida anda bem complicada pra todo mundo. Outros professores também já devem estar pensando em como vão ganhar a vida no recesso.
É verdade, mas tem também os funcionários do colégio e os terceirizados. No final tem até um universo grande de clientes. Afinal, tudo mundo tenta compensar um pouco no doce.
Enfim, pelo menos as férias de verão nesse ano começam mais cedo. Dá pra descer pra Praia Grande mais cedo. Podemos aproveitar mais o tempo.
É, mas você já sabe que o Paçoca vai pegar pesado esse ano… e o aluguel no litoral ficou mais caro. Vamos ter que trabalhar mais na barraca dele pra poder pagar os dois aluguéis. Esquece fugidinha pra uma onda no final do dia, porque ele disse que vai descontar até os minutos…
Poxa! Mas até nosso trabalho de verão afetado pela crise? Bom, pelo menos os alunos não nos reconhecem mais, já quase não há estudantes descendo ao litoral em janeiro e fevereiro… E, pra falar a verdade, é mais fácil encontrar com alunos pelo AVA, quase não há mais interação humana.
Amor, encontrar aluno é o de menos. O importante é que com o recesso de final de ano ainda podemos ter trabalho de verão. Quando até isso acabar, como vamos pagar o aluguel no final do ano? Com apenas os salários do período letivo, o trabalho intermitente não nos dá outra opção.
Estou pensando em largar as aulas amor. Nossos filhos já estudaram, não precisamos mais da bolsa de estudos do colégio. Agora posso procurar um emprego ano inteiro…
Não sei, tá valendo mais a pena né!? Talvez vc tenha razão…
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