Entrevista – Ricardo Carneiro: A crise, do rescaldo ao que vem por aí
Por Silvio Anunciação
Em setembro do ano passado, a imprensa mundial anunciava a falência de uma das mais influentes instituições de Wall Street, o banco de investimento Lehman Brothers. Após período de quebras de outras instituições financeiras, crise do setor automotivo, demissões em massa e período de recessão mundial, indicadores recentes sinalizam para uma recuperação da renda e do emprego. Passado um ano do episódio que marcou, até o momento, a fase mais aguda da crise, já se fala em fim da recessão e discute-se um cenário pós-crise. Mas, afinal, a crise acabou mesmo? O professor Ricardo Carneiro, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, faz uma análise conjuntural do quadro atual e traça cenários futuros. Membro do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) do IE, o docente prevê “um lento desenrolar da crise, marcado por um baixo dinamismo que pode ser compatível com alguns períodos de melhora”.
Na entrevista que segue, Carneiro analisa que, ao contrário da crise de 1929, a forma e intensidade da ação do Estado determinaram uma menor gravidade do quadro atual. Mas, alerta: “Durante um tempo mais ou menos longo, todos vão procurar reduzir suas dívidas ao invés de gastar”. Sobre uma nova configuração para o poder econômico global, ele antecipa: “Dificilmente, a economia americana voltará a ser a ‘locomotiva do mundo’, mas não há outra candidata a substituí-la”.
Jornal da Unicamp – Já podemos falar em um cenário mundial pós-crise? Há sinais que evidenciem este cenário ou pelo menos de que o pior da crise tenha passado?
Ricardo Carneiro – Não creio que a crise tenha sido superada tão depressa. O fato de estar havendo uma leve recuperação da renda e do emprego nos países avançados e nos periféricos não significa muito diante da profundidade da crise. De qualquer modo, há uma forte divergência entre os economistas quanto ao assunto. Há os que apostam que “o pior já passou”, outros que falam em reincidência de fases mais agudas. Do meu ponto de vista estaremos diante não de movimentos bruscos, mas de um lento desenrolar da crise, marcado por um baixo dinamismo permanente que pode, eventualmente, ser compatível com alguns períodos de melhora. Ou seja, creio que a crise terá uma dimensão crônica.
Após a crise de 1929 houve longo período de recessão mundial.Desta vez, em um ano, a recessão parece estar chegando ao fim. Houve uma reação exagerada com a atual crise ou o mundo está mais preparado para sair de turbulências como as de 1929?
A grande diferença que marca o desenrolar da crise atual ante a crise de 1929 é a forma e intensidade da ação do Estado. Em 1929 houve uma espécie de omissão do Estado – por meio das suas principais agências econômicas, o Banco Central e o Tesouro. As ações só começaram a ganhar corpo, no caso americano, por exemplo, em 1933, quando o impacto maior da crise em termos de emprego e PIB já havia se manifestado.
Em 2008, o Estado agiu prontamente com os bancos centrais emprestando dinheiro barato aos bancos e uma gama mais ampla de instituições financeiras. O Tesouro, por sua vez, ampliou seus gastos. Com isso se evitou uma falência em cadeia dos agentes – o que os economistas chamariam de deflação – e, ao mesmo tempo, promoveu-se uma sustentação da renda pelo gasto público.
Isto explica a menor gravidade da crise atual em termos de perda de renda e emprego. Ma é preciso também analisar os limites da ação do Estado; ela vai se manifestar exatamente na forma e intensidade da recuperação. Depois da catástrofe de 1929 houve, na década de 1930, uma recuperação substantiva induzida pelo gasto público. Agora é diferente: ao evitar a deflação, o Banco Central evitou que os ativos e endividamento das famílias e das empresas “virassem pó” como no passado. Em contrapartida, o fato de manter as dívidas faz com que esses agentes estejam menos dispostos a gastar seus eventuais aumentos de renda, induzidos pelo setor público. Durante um tempo mais ou menos longo todos vão procurar reduzir suas dívidas ao invés de gastar.
É possível fazer uma comparação entre as duas crises?
Há semelhanças e diferenças. Ambas as crises são resultado da operação de um capitalismo desregulado e financeirizado. Nas duas houve um processo de ampliação sustentada de preços de ativos, descolada dos fundamentos, as chamadas bolhas que terminaram por “furar”, ocasionando vários tipos de problemas. É interessante notar que esse tipo de capitalismo tem na especulação uma importante mola propulsora que lhe confere durante certo tempo elevado dinamismo.
Mas, ele leva sempre a um “descolamento” e a um ajuste que nem mesmo a ação do Estado pode evitar. As diferenças são relevantes e dizem respeito de um lado ao ativo principal sobre o qual se fixou a especulação. Em 1929, a bolsa de valores era o carro-chefe; em 2008, os imóveis. No segundo caso, o grau de envolvimento das famílias foi muito maior. Ou seja, havia um percentual mais elevado de famílias americanas comprometidas na especulação imobiliária, até porque a propriedade de imóveis é mais disseminada.
Com a fragilidade da economia norte-americana diante da crise, o senhor acha que haverá, do ponto de vista econômico, uma divisão de forças e uma nova configuração internacional?
Na verdade, mesmo antes da crise já era visível uma certa redistribuição do poder econômico global em direção à Ásia e principalmente à China. A crise deve acelerar este processo, mas ele será eivado de contradições ou de marcha e contra-marchas. Eis alguns exemplos: dificilmente a economia americana voltará a ser a “locomotiva do mundo” como foi no ciclo recente, mas não há outra candidata a substituí-la.
Para manter o ritmo de crescimento, as economias asiáticas terão que se alimentar do dinamismo interno, o que não é trivial. O crescimento da dívida pública americana deverá criar algum grau de rejeição ao dólar como moeda de reserva internacional. No entanto, não há no horizonte uma moeda substituta para cumprir o seu papel. A proliferação de moedas/acordos regionais pode ser uma resposta. Em síntese, nós deveremos entrar num período de relações econômicas internacionais mais instáveis até que alguma outra ordem de maior estabilidade seja posta no seu lugar.
Podemos falar num novo modo de regulação da economia internacional e da reabilitação do papel Estado nessa regulação?
Até o momento não, pois o que temos de fato é o G-20 que constitui na prática um grupo informal de consulta. É importante enquanto agrupamento por incluir países em desenvolvimento, mas seria necessário que caminhasse para alguma forma institucional. Por sua vez é necessário considerar que há interesses divergentes dentro do grupo. Na minha opinião, uma forte regulação do sistema financeiro internacional, ou seja, dos fluxos de capitais, que constituiria a contrapartida à regulação financeira doméstica, não interessa aos EUA. Isto significaria reduzir a importância do dólar no cenário internacional. As medidas que têm se originado do G-20 são, por enquanto, cosméticas ou retóricas.
O senhor poderia citar aspectos negativos e positivos de reação à crise que foram adotados pelos principais países afetados, incluindo o Brasil?
Ricardo Carneiro – Creio que a resposta à crise nos vários países, incluindo o Brasil, foram no geral positivas. Ela envolveu a aceitação da importância do papel do Estado como instrumento de estabilização em momentos de turbulência. O aspecto negativo é que esse papel estabilizador é visto como necessário apenas em momentos de crise. Ou seja, creio que não se viabilizou ainda um consenso ancorado em forças sociais expressivas capazes de propor e implantar uma nova forma de regulação e de participação do Estado na vida econômica capaz de evitar a constituição de economias guiadas pela especulação.
Qual é o papel dos Brics – Brasil, Rússia, Índia e China – na retomada do crescimento mundial diante deste cenário?
O que caracteriza esses países é uma certa capacidade – diferenciada entre eles – de resistir à crise. A China está muito melhor posicionada pelo seu grau de desenvolvimento produtivo, volume de reservas internacionais, perfil da política econômica etc. Seguem-se a Índia, o Brasil e a Rússia. De todo modo, devemos deixar de lado a ilusão de que esses países podem liderar um novo ciclo de crescimento mundial: eles não têm as pré-condições para fazê-lo, tais como tamanho, moeda, finanças, controle da tecnologia etc. Talvez, quem sabe, essa capacidade possa vir daqui a uns 20, 30 anos se esses países continuarem numa trajetória de crescimento acelerado.
Em certa medida, a crise evidenciou, internacionalmente, o bom desempenho da economia brasileira, já que o país foi um dos últimos a entrar e está sendo um dos primeiros a sair dela, segundo analistas. Que fatores podemos destacar da economia brasileira que contribuíram para o bom desempenho do país diante da crise, quando comparado a outras nações?
As ações do Brasil têm semelhanças e distinções com as dos demais países. Do ponto de vista macroeconômico, seguimos a orientação correta de realizar uma política anti-cíclica de razoável envergadura: reduzimos a taxa de juros para patamares civilizados – embora com algum atraso em relação aos demais países – e diminuímos o superávit primário em cerca de 2% do PIB.
Cometemos o pecado de deixar a nossa moeda se valorizar, o que nos custou algum dinamismo e pode custar ainda mais no futuro. De qualquer modo, nessa dimensão, o saldo foi positivo. O outro aspecto que merece ser enfatizado, e que é talvez o mais importante, refere-se à ação do Estado no plano mais estrutural. O Brasil – assim como a China, a Índia e a Rússia – possui importantes setores econômicos controlados pelo Estado. Assim foi possível evitar uma queda substancial no crédito por meio dos bancos públicos e assegurar um programa importante de investimentos na área de energia por meio da Petrobrás. O PAC também tem constituído um importante instrumento de criação de expectativas favoráveis sobre o futuro. Em resumo, enfrentamos melhor a crise, saímos dela com uma perspectiva razoável de crescimento mas ainda é necessário deixar mais clara a estratégia de um crescimento de longo prazo num mundo marcado por fortes incertezas.
Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp