“Nenhuma nação consolida transformações significativas em sua economia e nas relações sociais que modificou, por meio de rupturas ou por meio de processos de acumulação institucional, sem expressá-las claramente no universo simbólico – ou seja, na Cultura – dos setores que delas se beneficiaram. Em uma frase: não existe transformação social duradoura sem uma transformação cultural, simbólica que lhe corresponda.”  Inicio minha participação, honrado pelo convite, com essa reflexão produzida a partir de uma experiência de governo, no Brasil, na primeira década do século XXI, em condições de cerco ideológico e de severos limites institucionais, 100 anos depois da Revolução de Outubro.

Numa página desse livro inesquecível, “Os Escombros e o Mito” que Bóris Schnaiderman nos deixou, ele  se refere a um comentário do poeta russo Óssip Mandelstam, escrito por volta de 1918: “Em nenhum país do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”. Penso, com certo alívio, no Brasil isso jamais ocorreria. Aqui costumamos ignorar os poetas, com exceção daqueles que se aproximam da música. Aqui eles não morrem fuzilados, é mais frequente morrerem de fome… ou de solidão. A frase mais usual que lemos nos livros escolares, sobre eles, é: “Morreu pobre e esquecido…”

Depois que a Revolução Francesa de 1789 despedaçou o “ancien règime” e junto com ele a arquitetura de privilégios engendrada ao longo de mais de mil anos de história europeia: sua estratificação de classe, sua organização produtiva assentada sobre a servidão, suas monarquias por “direito divino”, seus códigos legitimadores, sua rígida hierarquia, sua obediência ao papa, sua literatura, sua música, seu pensamento, “tudo o que era sólido se desmanchou no ar”. Desde então não ocorrera nenhum fenômeno das dimensões e da profundidade social, econômica e cultural da Revolução de Outubro.

O mundo ocidental – mergulhado na primeira grande guerra – estava diante do mais devastador cataclismo social que podia imaginar, ou mais grave, que escapava à imaginação mais delirante. Algo que pretendia ser uma espécie de reinvenção da humanidade. O espectro anunciado por Marx que rondara a Europa desde meados do século anterior se levantava ali para converter o impossível no quotidiano. E buscava contagiar com seu incêndio os corações e os sonhos das camadas oprimidas da sociedade.

Foi, de algum modo, filha da Comuna de 1848 e de 1871. Contudo, contrariando a teoria que lhe serviu de cânone, não ocorreu num país capitalista avançado, ao contrário, explodiu no país mais atrasado da Europa. Com as consequências políticas, econômicas, sociais e culturais que essa condição determinava para o império do Czar e para as grandes burguesias continentais.

Foi como se a multidão dos miseráveis de Máximo Gorki descritos em “Ganhando o meu pão”, “Minhas Universidades”, “No fundo” (aqui no Brasil traduzido por “Ralé”, decididamente uma expressão que ele jamais usaria) se evadisse de suas páginas  para ocupar as ruas, as praças, arrancar revestimentos de lambri das paredes dos palácios para acender fogueiras, defender-se do frio e cobrar a parcela de vida que a vida lhes negara. Para por abaixo uma monarquia de 300 anos.

Como registrei acima, com as palavras de Mandelstam, em poucos países do mundo a cultura, no sentido formal como se define contemporaneamente, a alta cultura, a cultura letrada desempenha um papel tão relevante na vida social e na afirmação da identidade nacional como na Rússia. Seus escritores e compositores particularmente realizaram o objetivo maior de todo artista: se constituíram como referências simbólicas indispensáveis à vida, ao quotidiano das pessoas.

Romper com uma tradição tão sedimentada e tão rica que, sem abrir mão da capacidade crítica, de certo modo, organizava o discurso, a visão do mundo e da vida, os valores dominantes de uma sociedade em crise era um desafio nem sempre percebido em toda a sua dimensão pela intelectualidade emergente, os escritores, os poetas, os compositores, os pintores, escultores os agentes culturais de diferentes matizes, fossem eles conservadores ou revolucionários. Uma greve de operárias tecelãs, em agosto de 1917, desencadeou uma rebelião social que escapava ao entendimento até mesmo dos seus mais lúcidos dirigentes.

Inevitável referir-me a Vladimir Maiakovski, nesse contexto confuso e conflitivo. Nenhum artista encarnou de modo mais radical, a expressão estética da Revolução de Outubro. Ao lado de Meyerhold no Teatro, de Eisenstein na linguagem cinematográfica que nascia. Filho da sublevação, nutrido por ela, Maiakovski agitou como nenhum outro grande artista a necessidade da ruptura com a cultura anterior. “A cultura burguesa”, “beletrista”. Tarefa complexa num país que havia produzido no século anterior alguns gigantes da literatura mundial de todos os tempos: Puchkin, Gogol, Lermontov, Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov…

Maiakovski era, digamos, um poeta em voz alta. Pelo verso, nas conferências ou nos acalorados debates que realizava pelas cidades russas defendendo a LEF (Frente de Esquerda das Artes) e vendendo a Revista, não poupava as gerações anteriores e defendia a nova arte revolucionária como condição para reinventar as relações sociais, destruir velho mundo da exploração capitalista e sua representação estética e lançar as bases da construção de uma nova estética futurista e, mais tarde, quando amadureceu e refletiu melhor, socialista…

Registros dão conta de que a poesia de Maiakovski que aos quatro ventos bradava – “sem forma revolucionária, não há poesia revolucionária” – era tão dissonante para o gosto da época que desagradava os ouvidos do principal líder da Revolução, Vladimir Ilitch Lênin, amante de Puchkin, a quem Maiakovski, em diferentes ocasiões não tratou com o respeito devido… “Ele sabia também que Lênin não aprovava o niilismo dos futuristas em relação à herança cultural”. Numa palestra recente a professora da USP, Arlete Cavaliere, pesquisadora das vanguardas russas do início do século XX, sintetiza aquele esforço: “Significa destruir os antigos valores e construir novos, isto é, propõem a reorganização consciente da linguagem artística aplicada às novas formas de ser.”

Na biografia “Maiakovski – O poeta da Revolução” de Aleksandr Mikhailov, publicada no Brasil em 2008, com tradução de Zoia Prestes esse conflito entre o velho e o novo assoma de forma, às vezes, comovente por seu caráter repleto de ambiguidades e contradições, na voz do mais radical entre os radicais. Ouçam esse relato: “Num dos debates no Politécnico Maiakovski criticava de forma bastante sarcástica e até ridicularizava os poetas jovens (apegados às velhas fórmulas), e os não-jovens também, (…) Provocou a insatisfação do público. Subiu então, na mesa da reunião e começou a ler “Quando, para um mortal, silenciar o dia ruidoso…” de Puchkin. E o salão emudeceu, e já um silêncio incomum instaurou-se no auditório gigantesco, e nesse silêncio cortante soaram os últimos versos da poesia:

“E com repulsa lendo minha vida
eu estremeço e amaldiçôo,
amargamente, queixo-me.
Derramo lágrimas amargas,
mas os versos tristes não se apagam.”

Por alguns instantes se instaura um silêncio total, escreve o narrador. De repente uma onda de aplausos estremece a sala de espetáculos. Maiakovski desce devagar e se senta à mesa…”

A par de demonstrar para seus leitores e adversários jovens como ele que a crítica radical do passado estava assentada num profundo conhecimento da obra dos clássicos – no caso de Puchkin era mais que conhecimento era uma relação de amor de quem o lia todas as noites – Maiakovski desejava explicar que não se cria o novo a partir do nada, mas da apropriação crítica dos materiais que herdamos do passado e não da sua imitação subserviente: “Eu os respeito como criadores vivos, não como múmias.”

Caminho para concluir, se me permitem, com a leitura de um poema, sem dúvida entre os mais importantes escritos por Maiakovski. Quatro meses antes de por fim à sua vida aos 37 anos. Mas, faço antes uma advertência aos que me ouvem nesta noite. Imaginem o esforço que encerra o trabalho de transportar versos de um idioma tão distante – do russo para o português. Há uma expressão italiana “Traduttore, tradittore” (tradutor, traidor) que exprime bem esse ofício e seus desafios. Como ser fiel à língua que lhe dá fonte e, ao mesmo tempo, seduzir a língua que acolhe. Essa que aqui será lida é a tradução mais conhecida. Produzida por Haroldo de Campos um dos mais importantes tradutores e divulgadores da literatura russa no Brasil. Que Maiakovski não nos ouça…

“A plenos pulmões”

Caros camaradas futuros!
Revolvendo a merda fóssil
de agora,
perscrutando estes dias escuros,
talvez perguntareis por mim.
Ora,
começará vosso homem de ciência,
afogando os porquês num banho de sabença,
conta-se que outrora
um férvido cantor
a água sem fervura,
combateu com fervor.(1)

Professor, jogue fora as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar de mim, de minha era.
Eu – incinerador,
eu – sanitarista,
a revolução me convoca e me alista.
Troco pelo “front”
a horticultura airosa da poesia
– fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim virgem
vargem sombra alfombra.
“É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim”.
Este verte versos feito regador,
aquele os baba, boca sem babador,
– bonifrates encapelados,
descabelados vates – entende-los, ao diabo!,
quem há-de…
Quarentena é inútil contra eles
– mandolinam por detrás das paredes:
“Ta-ran-ten-n-n…”
Triste honra,
se de tais rosas minha estátua se erigisse:
na praça escarra a tuberculose;
putas e rufiões numa ronda de sífilis.
Também a mim a propaganda cansa,
é tão fácil alinhavar romanças,
– Mas eu me dominava entretanto
e pisava a garganta do meu canto.

Escutai, camaradas futuros,
o cáustico caudilho,
o extintor dos melífluos enxurros:
por cima dos opúsculos líricos,
eu vos falo como vivo aos vivos.
Chego a vós, à Comuna distante,
não como Iessiênin, guitarrarcaico.
Mas através dos séculos em arco
sobre os poetas e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz das estrelas decrépitas.
Meu verso com labor rompe a mole dos anos,
e assoma a olho nu, palpável, bruto,
como a nossos dias chega o aqueduto
levantado por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo, mas terrível.

Ao ouvido não diz blandícias minha voz;
lóbulos de donzelas de cachos e bandos
não faço enrubescer com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
– tropas em parada,
e passo em revista o “front” das palavras.
Estrofes estacam chumbo-severas,
prontas para o triunfo ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando as maiúsculas abertas.
Ei-la, a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita, alerta para a lua.
Rimas em riste, sofreando o entusiasmo,
eriçam suas lanças agudas.
E todo este exército aguerrido,
vinte anos de combates, não batido, eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha até a última letra.
O inimigo da colossal classe obreira,
é também meu inimigo figadal.

Anos de servidão e de miséria
comandavam nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx, volume após volume,
janelas de nossa casa abertas amplamente,
mas ainda sem ler saberíamos o rumo!
Onde combater,
de que lado,
em que frente.
Dialética, não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos ao fragor das batalhas,
quando sob o nosso projétil,
debandava o burguês que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada – (a) glória –
se arraste após os gênios, merencória.
Morre, meu verso, como um soldado anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo sobre o mármore, viscoso.
Partilhemos a glória, – entre nós todos, –
o comum monumento: o socialismo,
forjado na refrega e no fogo.
Vindouros, varejai vossos léxicos:
do Letes brotam letras como lixo – “tuberculose”, “bloqueio”, “meretrício”.
Por vós, geração de saudáveis,
– um poeta com a língua dos cartazes
lambeu os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora um monstro, fossilcoleante.

Camarada vida, vamos, para diante,
galopemos pelo quinquênio afora (2).
Os versos para mim não deram rublos,
nem mobílias de madeiras caras.
Uma camisa lavada e clara e basta,
– para mim é tudo.
Ao Comitê Central do futuro ofuscante,
sobre a malta dos vates
velhacos e falsários,
apresento em lugar do registro partidário
todos os cem tomos dos meus livros militantes.

Dezembro/1929, janeiro/1930
(Maiakovski suicidou-se em 14 de abril de 1930.)

À tensão permanente entre a vida e a arte Maiakovski respondeu de forma cabal: “A arte deve ligar-se estreitamente com a vida. Fundir-se com ela ou perecer.” Ou, em 1924, no Teatro Lenin, em Kiev, mais sintético e radical: “Abaixo a arte, viva a vida!”

Antes de terminar, trago uma reflexão sobre a tensão existencial entre a ação política revolucionária e esse jogo de armar impossibilidades que é o trabalho de escrever poesia, ambas situadas no centro da vida de Maiakovski:  “Quiseram filiá-la (a poesia) ao Partido. Discipliná-la, fazê-la cumprir as resoluções do Comitê Central e as metas do Plano Quinquenal. Com uma ponta de malícia, ela converteu-lhes os versos em relatórios sobre o aumento da produção socialista ou em surrados sermões exilados de toda beleza. Os melhores, os que recusaram a palavra morta, os que insistiram em buscar a palavra viva porque condenados a ela, como Serguei Iessiênin, acabaram suicidas. A ele Maiakovski dedicou, em 1926, um poema que traduz o espírito da Revolução e da busca:

“O tempo é escasso –
mãos à obra
primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la –
em seguida.”

E, Maiakovski, sem adivinhar seu próprio destino, no olho da tormenta, exprimia da melhor maneira, o laço entre a poesia (sua arte) e os contraditórios códigos da vida, para concluir com esses versos definitivos:

“Nesta vida
viver não é difícil.
O difícil é a vida
e seu ofício.”

Não intuía, talvez, para si mesmo o gesto final, quando a vida se apartou de qualquer sentido e chegou sua vez de capturar a poesia pela porta da morte, quatro anos depois.

Brasília, Outubro de 2017. Cem anos depois.

*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo. Palestra proferida no IV Fihst, em Diamantina – MG.

(Mesa – Ecos da Revolução de Outubro – Diamantina-MG, em  06/10/2017)

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