Mataram o operário por engano, simularam um suicídio e tentaram esconder o corpo. É desta tragédia humana que vou tratar aqui hoje com conhecimento de causa.

Trinta e três anos atrás, no dia 22 de janeiro de 1976, na página 16 do primeiro caderno do Estadão, fui eu que denunciei este crime praticado nos porões do DOI-CODI por agentes da ditadura militar.

Na tarde desta segunda-feira, segundo relato do repórter Marcelo Oliveira, no portal Terra, a Justiça decidiu reabrir o caso para punir os responsáveis pelo crime: “A 5ª Turma do Tribunal Federal em São Paulo decidiu, por unanimidade, determinar a reabertura da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal para que sete servidores públicos estaduais que participaram da prisão ilícita, torturas, morte e da ocultação das reais causas da morte do operário Manoel Fiel Filho sejam declarados civilmente responsáveis pelo caso.

O assassinato ocorreu no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército, em São Paulo, em 17 de janeiro de 1976.

A ação do MPF pede a declaração judicial de responsável pessoal dos réus pela perpetração desta seqüência de violações dos direitos humanos e a condenação à reparação dos gastos da União com indenizações de parentes da vítima, estimados em R$ 438 mil, além da perda das funções e cargos públicos e a cassação de benefícios de aposentadoria dos acusados”.

Até onde sei, esta é uma iniciativa inédita do MPF para punir torturadores.

O país só ficaria sabendo da morte de Manoel Fiel Filho pelo jornal, cinco dias depois do assassinato. Para aqueles que ainda não tinham nascido, eram muito jovens na época ou já se esqueceram do crime, é bom relembrar como era o trabalho dos jornalistas naquela época e o tratamento que se dava aos presos políticos.

Trato da cobertura que fiz do caso Fiel Filho em dois dos livros que publiquei e vou recorrer a eles para contar a história como foi desde o começo.

Nas páginas 35-37 do meu livro “A Prática da Reportagem”, lançado pela Editora Ática, em 1985, conto como fui escalado para fazer esta reportagem, o trabalho de apuração, que contou com a ajuda da sorte, e as conseqüências da publicação da matéria:

Numa segunda-feira de manhã, Clóvis Rossi, chefe de reportagem do Estadão, me passou um relatório sobre a morte de um operário no DOI-CODI, mais ou menos nas mesmas circunstâncias do que acontecera com o jornalista Vladimir Herzog:

“Dá uma olhada nisso, vê o que você consegue levantar”. No relatório, só o nome do operário e seu endereço. As chances de conseguir alguma coisa, naquele tempo, eram mínimas. Mas a obrigação do repórter é tentar _ sempre.

Na casa dele não havia ninguém. Os vizinhos não sabiam de nada. E, se alguém sabia, tinha medo de falar. Com um deles, consegui pelo menos uma indicação: Manoel Fiel Filho, o operário, tinha parentes que moravam num outro bairro, “perto de uma padaria”.

Quando já estava quase desistindo de encontrar esta casa dos parentes, vi passar perto da padaria um Bispo. Bispo, nessas horas, sempre costuma saber o que está acontecendo em sua diocese.

Não deu outra: o Bispo tinha acabado de sair da casa onde se encontrava Teresinha, a viúva do operário. Depois, foi só complementar o que ela me contou, ouvindo colegas de serviço na fábrica, patrões, o coveiro, a zeladora do velório e os dirigentes do sindicato dos Metalúrgicos, ao qual ele pertencia.

No dia seguinte, até eu levei um susto quando vi a matéria publicada no alto da página. Explica-se: fazia apenas três meses que Vlado tinha morrido _ e todos nós, jornalistas ainda vivíamos com medo.

Minha mulher estava grávida da segunda filha, e disse que eu era maluco: a matéria saiu assinada. Mas, enquanto os colegas ainda comentavam a matéria na redação, poucos dias depois chegava a notícia de que o comandante do II Exército, general Ednardo D´Ávila Mello _ responsável último pelo que acontecia no DOI-CODI _ tinha sido afastado do cargo pelo presidente Ernesto Geisel.

Alguns trechos da matéria que publiquei no Estadão:

Como todos os dias dos últimos dezenove anos, desde que entrou na Metal Arte, Manoel Fiel Filho chegou à fábrica da Mooca antes das sete da manhã, na última sexta-feira.

O chefe do pessoal lembra que Manoel não mostrou nenhuma preocupação quando os dois homens lhe disseram que ele precisava ir ao DOPS “para fazer um reconhecimento”.

Duas horas depois, Manoel e os dois homens chegavam à sua casa, na rua Coronel Rodrigues, 155, em Sapopemba.

Ao se retirarem, Teresinha, desesperada, desrespeitou as ordens dos policiais e se aproximou do marido:

_ O que vão fazer contigo?

No dia seguinte, sábado, um táxi parou em frente à casa 155 da rua Coronel Rodrigues. Um homem desceu, jogou no quintal um saco de lixo e um envelope, e berrou:

_ O “Seu” Manoel tentou o suicídio.

Teresinha ainda tentou perguntar alguma coisa, mas rapidamente o homem entrou no carro e desapareceu. A viúva só teve tempo de gritar:

_ Eu sabia que iam matar ele. Eu sabia que vocês iam matar ele.

No saco azul de 20 litros, com o emblema da Lixeira Ideal, estavam a calça e a camisa de brim, o cinto e um par de sapatos. No envelope, com o timbre do Exército, os documentos de Manoel.

Na página 57 do meu livro de memórias “Do Golpe ao Planalto _ Uma vida de repórter”, editado pela Companhia das Letras, em 2006, conto o que aconteceu quando voltei á redação.

“Rossi, consegui a história completa. Mataram o operário do mesmo jeito que fizeram com o Vlado e tentaram esconder a morte dele”.

Começava aí a parte mais dramática da história, pelo menos para mim. A direção do jornal só aceitava publicar a denúncia se eu assinasse a matéria e assumisse toda a responsabilidade por ela. Minha mulher, grávida, andava cada vez mais assustada com a prisão de jornalistas e o desaparecimento súbito de colegas da faculdade.

Apesar de todo o meu medo, eu não tinha alternativa. A matéria foi publicada na, sob o título “Manoel, da fábrica da Mooca à morte”. Nos dias seguintes, caía Ednardo d´Ávila Mello, o comandante do então II Exército. Geisel (general Ernesto Geisel, presidente da República na época dos fatos) cumpriu o que prometera: se houvesse um novo caso Herzog nos porões da repressão, demitiria o comandante.

Fiel Filho, cuja única atividade “subversiva” era distribuir o jornal Voz Operária, do então clandestinoPartido Comunista Brasileiro, decerto foi morto por engano _ um “acidente de trabalho”, como se dizia cinicamente naqueles anos mais tarde chamados “de chumbo”.

Hoje em dia é muito fácil para qualquer cidadão, jornalista famoso ou leitor anônimo, detonar o presidente da República, as Forças Armadas, o Congresso Nacional e o Judiciário, mas eu gostaria de saber onde estavam estes valentes de salão nos tempos em que contar _ assinando a matéria com o próprio nome _ o que o regime queria esconder era correr risco de vida.

Publicado no Blog no blog Balaio do Kotscho em 16/9/2009