Um dos maiores consensos nacionais é a desmoralização da política e dos políticos. Esporte fácil, dos mais praticados nas rodas de conversa, alimentado pela imprensa e favorecido pelo comportamento dos parlamentares, que, no entanto não tem alterado em nada a composição do Parlamento – individualizado como a instância por excelência da política -, políticos acusados sistematicamente pela imprensa como pivôs de grandes escândalos – como Collor, Sarney, Renan, entre tantos outros – têm sido reeleitos sistematicamente. Ao mesmo tempo, outra instância que personifica a política – os governos – tem tido em geral grande apoio do eleitorado, nas eleições e nas pesquisas, salvo casos limites – como o de Yeda Crusius.

Ao mesmo tempo, as pesquisas sobre credibilidade colocam o Congresso sempre em posição muito ruim e a imprensa em posição de destaque. No entanto, os jornais baixam sistematicamente sua tiragem em um caminho sem volta para sua crise definitiva, enquanto suas vítimas privilegiadas são eleitos e reeleitos. E ao mesmo tempo, a imprensa, que teria muita credibilidade e fabrica – literalmente – a “opinião pública”, é quem mais influenciaria a população, se choca com a vontade dos eleitores, que tem reiterado a maioria de partidos – como especialmente o PMDB – atacados centralmente pela imprensa. Quem tem mais apoio da população – como algum que outro acusado já disse: a imprensa, que não se sustenta no voto popular, ou os parlamentares, que são submetidos periodicamente à consulta da cidadania?

Em última instância: de onde vem a desmoralização da política? Quem se aproveita disso? Qual a credibilidade que a imprensa tem? Qual seu poder de influência? Como se constróem os consensos no Brasil?

Na transição da ditadura para a democracia, a política estava em alta, contra o poder militar, que sempre buscou desmoralizá-la: as cassações se faziam contra dois grupos de políticos, os supostamente subversivos e os corruptos. A derrota das eleições diretas para presidente – recordemos o papel da Globo, que tentou, até o último momento, desconhecer a campanha, para finalmente aderir a contragosto, quando já era um consenso nacional – levou a que o novo regime não representasse claramente uma vitória da democracia contra a ditadura. A conciliação feita no Colégio Eleitoral – em que a oposição dependia de votos dos partidos do governo – deu a nova cara da democracia: uma conciliação entre o novo e o velho. No lugar do candidato natural da oposição – Ulysses Guimarães, o conciliador Tancredo Neves, tendo como vice o até poucas semanas antes presidente do partido da ditadura, José Sarney, que havia liderado a campanha da ditadura contra as eleições diretas, ao mesmo tempo que nascia um partido que saia no derradeiro momento do bloco do governo, o PFL, para somar-se ao carro vencedor e tentar distanciar-se do regime moribundo.

Uma chapa -Tancredo-Sarney – que expressava claramente a conciliação entre o velho e o novo. As circunstâncias – morte de Tancredo e presidência de Sarney – consolidaram a presença do velho, pelo papel mais destacado que tiveram políticos centrais na ditadura – de que o caso de ACM é o mais significativo, embora não o único. A frustração do governo Sarney, restringindo a democratização ao plano político-institucional – no marco estritamente liberal, sem democratização econômica, social, midiática, cultural – recolocou o tema da desmoralização da política, de que Sarney foi uma expressão clara, por seu governo, por sua capacidade camaleônica de reciclar-se rapidamente da ditadura para a democracia, pelo poder oligárquico que mantêm no Maranhão e por sua capacidade de eleger-se, artificialmente, por outro estado como senador, assim como por seus vínculos estreitos e promíscuos com a grande imprensa – através de ACM, que distribuiu os canais de rádio e televisão pelo Brasil afora para a conquista do quinto ano de mandato para Sarney -, de que a propriedade do canal da Globo no Maranhão é um exemplo, além da transferência da sua influência para eleger filhos seus – Roseana e Zequinha.

Collor, na sua campanha, tratou de capitalizar essa nova desmoralização da política, aparecendo como um outsider, supostamente contra as oligarquias tradicionais da política – como desdobramento da “modernidade” que prometia, contra os “marajás” e a favor da abertura da economia, contra “as carroças”, que seriam os carros fabricados no Brasil. Como isso, Collor colocava, pela primeira vez de forma aberta, dois eixos do consenso neoliberal, que se impunha na America Latina e no mundo: a desqualificação do Estado e a abertura para o mercado externo.

Seu caráter pretensamente bonapartista de governar, se exercia contra a política e os partidos – sua própria eleição por um partido de aluguel expressava a crise dos partidos tradicionais: recordar o pífio resultado de Ulysses como candidato do PMDB, assim de outros representantes de partidos, como Covas, Afif Domingos, Roberto Freire, entre outros. Collor buscava construir um novo bloco no poder, em torno da sua figura e do ideário neoliberal.

Collor viria logo se somar à lista de políticos coruptos – cuja lista incluía centralmente a Maluf, ACM, Sarney, Quércia, entre muitos outros. Mas a nomeação de FHC para comandar a economia por Itamar Franco, permitiu ao PSDB retomar a plataforma neoliberal, de forma mais articulada. Retomava também os pressupostos ideológicos do neoliberalismo: o Estado é o problema e não a solução, promoção da centralidade do mercado no seu lugar.

O neoliberalismo busca desqualificar o Estado, especialmente as regulações – que se contrapõe à livre circulação do capital, aos gastos em políticas sociais e em qualificação e melhor remuneração dos funcionários públicos, além da privatização das empresas públicas.

Um dos seus objetivos, portanto, é enfraquecer o Estado, considerando seus gastos como fonte inflacionária, pregando a diminuição constante dos impostos, para favorecer a transferência de recursos do Estado para o mercado.

O Estado e o conjunto da esfera política foram alvo sistemático das forças neoliberais, tendo a imprensa privada como agente fundamental dessas campanhas, valendo-se das denúncias – quase sempre reais – de casos de corrupção de políticos, da malversação de verbas estatais, da contratação de servidores públicos – sem atentar quando se trata de gastos socialmente inúteis ou quando se trata da prestação de serviço para a massa da população, como é o caso de professores, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, entre outros.

Sempre se tenta tomar casos individuais para buscar criminalizar a totalidade da política e das ações do Estado. Toma-se casos particulares de comprometimento com a corrupção – como os casos de Severino, aliás eleito pela oposição contra o governo, de Sarney, de Renan (sempre deixando de lado os aliados atuais do bloco de direita, como é o caso, por exemplo, da ausência de Quercia, atual aliado de Serra, ou dos membros do DEM e dos próprios tucanos, como foram os casos de Artur Virgilio, Sergio Guerra, Tasso Jereissatti, Yeda Crusius – para tentar generalizar para todos os políticos. Toma-se eventuais irregularidades, por exemplo na distribuição do Bolsa Família, em alguns casos individuais, para se tentar desqualificar um programa que beneficia mais de 60 milhões de pessoas.

Um Congresso fraco não tem condições de definir leis que limitem a livre circulação do capital, o poder sem controle da mídia (como pode ser o caso da Conferência Nacional de Comunicação), a denúncia dos casos de corrupção de empresas privadas, de sonegação fiscal por parte dessas empresas, de controle sobre os ganhos gigantescos dos bancos privados, da superexploração dos trabalhadores pelas empresas privadas, da deterioração do meio ambiente por conglomerados privados urbanos e rurais – entre outras iniciativas. O Congresso fica voltado para casos que a imprensa privada escolhe como seu objeto privilegiado de denúncias – aqueles que buscam afetar políticas de alianças do governo, como se o PMDB e os políticos denunciados agora fossem menos corruptos quando eram aliados de FHC e não eram submetidos a essas denúncias. Tenta colocar o Estado e o governo na defensiva, quando tenta desqualificar programas sociais, gastos na contratação de servidores públicos, investimentos de infraestrutura ou outros planos como os habitacionais, como gastos inúteis, que recairiam em aumento da tributação.

Tratam de criar o clima de que o Estado tem um papel essencialmente negativo, ao tributar muito e gastar de forma irresponsável. Era esse o discurso de FHC quando candidato, tendo como mote a idéia de que “o Estado gasta muito e gasta mal”, que era um Estado falido. Quando terminou seus trágicos 8 anos de presidência, a dívida pública tinha se multiplicado por 11, o Estado tinha se desfeito, a preço de banana, depois de sanear as empresas com dinheiro público, de patrimônios fundamentais do Estado, como a Vale do Rio Doce, os gastos sociais tinham diminuído e, ainda assim, o Estado acumulava uma inflação alta e sem controle por parte do Estado. Nunca o Estado gastou tanto e tão mal, como quando governou o bloco tucano-demoníaco.

Estado e Congresso fracos significam mais espaço para se fortalecer o mercado, isto é, o espaço de domínio e controle das grandes empresas privadas. O bloco opositor termina aceitando que as políticas sociais do governo são positivas, mas tenta esconder que elas supõem tributação e redistribuição do ingresso através de um Estado regulador. Tem que reconhecer que o Brasil saiu antes e mais rapidamente da crise, mas tenta esconder que a indução à retomada do crescimento foi basicamente estatal. Denuncia casos de irregularidade no governo, mas busca esconder, por exemplo, o envolvimento da Sadia e do Unibanco, entre outras empresas privadas brasileiras, na compra irresponsável de subprimes, o que levou à sua falência e compra por outras empresas. Os maiores escândalos contemporâneos não se situam na esfera do Estado, mas no das grandes empresas privadas, como tem se tornado público no caso de algumas das maiores empresas privadas norteamericanas.

No caso do Brasil, tornou-se consensual a idéia de que o PMDB, por ter sido o partido majoritário desde o fim da ditadura militar, se vale do seu papel chave para a obtenção das maiorias pelos governos de turno, para se apropriar de cargos chave nos governos e no Congresso, onde desenvolve práticas fisiológicas. Foi assim nos governos Sarney, Collor, Itamar, FHC e agora no governo Lula. Quando se aliam ao bloco de direita, cala-se em relação a essas práticas, quando elas favorecem o bloco agora governista, se tornam alvos privilegiados das denúncias, tentando desarticular as alianças do governo no Congresso, dado que fracassaram ao tentar desqualificar a Lula com denúncias e ao se dar contra do imenso apoio popular que o governo tem.

Mas se a imprensa mercantil, com o controle monopólico na TV, nos jornais, nas revistas e nos rádios, forja a opinião pública, essa maioria do PMDB é o resultado, como um bumerangue, que retorna do tipo de despolitização que essa imprensa difunde. Ela costuma dizer que “o povo brasileiro não tem memória”. Mas é essa mídia a que produz o esquecimento. Senão teria que dizer que:

– todas essas empresas apoiaram o golpe militar
– A grande maioria apoiou o governo Sarney
– A grande maioria apoiou o governo Collor
– Todas apoiaram o governo FHC do começo ao fim
– Todas apoiaram o Serra e Alckmin.

Tornaram-se instrumentos de propaganda do bloco de direita, que tenta reaver o controle do Estado brasileiro, contra um governo que detêm 80% de apoio da população, enquanto eles conseguem obter apenas 5% de rejeição do governo que atacam noite e dia.

Querem a política desmoralizada, em favor do mercado. O Estado mínimo, fraco, em favor da força das grandes empresas privadas. Um Congresso desmoralizado, para que não possa legislar sobre nada, deixando que as leis de oferta e de procura defina tudo na sociedade.

Emir Sader é sociólogo e professor da Uerj

Publicado no Blog do Emir – Agência Carta Maior em 21/8/2009