Em seu mais famoso livro lançado recentemente no Brasil e intitulado “O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, a ícone feminista na luta anticapitalista, Silvia Federici, retrata a história do desenvolvimento capitalista de uma perspectiva inédita e fundamental: a das mulheres.

A narrativa, de leitura fácil e permeada por belíssimas imagens de obras artísticas, começa no período feudal, apresentando a luta dos hereges. Ao lembrar das aulas de história na escola, conectamos os hereges imediatamente com a igreja e o ambiente religioso. Porém, Federici nos mostra como essa luta era, também, contra a classe minoritária no poder, ou seja, os senhores feudais e a incipiente burguesia.

Outro ponto do movimento herético que é ignorado pela história oficial ensinada é a elevada posição social que as mulheres obtiveram nele. Nas seitas hereges, as mulheres eram consideradas como iguais, podiam pregar e até alcançar postos sacerdotais – algo que, na igreja católica, seria inadmissível.

Ainda, no feudalismo, as mulheres tinham mais poder sobre seu corpo do que posteriormente no capitalismo: o aborto não era condenado e os conhecimentos relacionados à reprodução e ao nascimento eram transmitidos a cada geração de mulheres.

Paulatinamente, na passagem do sistema feudal para o capitalismo, as mulheres foram disciplinadas para se tornarem máquinas de reprodução de mais força de trabalho. Além disso, foram relegadas ao trabalho doméstico e ao de cuidados, ambos extremamente desvalorizados. Estes processos, tanto a disciplina quanto a desvalorização, ocorreram por meio de vários mecanismos que minaram a força das mulheres na sociedade, desde a proibição do aborto e a medicalização da saúde até a desvalorização da força de trabalho feminina nas fábricas.

Entre esses processos, um em particular é foco de análise: a caça às bruxas. Federici mostra, então, como esta prática inescrupulosa foi incorporada em um movimento de “cima para baixo”, ou seja, do Estado para a população e como ela desembocou numa criminalização da mulher dona de si, que não tinha medo de enfrentar as autoridades e as injustiças produzidas pelo sistema capitalista. Muitas das mulheres presas e queimadas vivas eram aquelas que desafiavam a espoliação que estava assombrando a sociedade, tomando ações como se recusar a pagar aluguel ou protestar contra a privatização de terras.

Assim, a caça às bruxas serviu como uma importante ferramenta no processo de acumulação capitalista ao conseguir disciplinar as mulheres para aceitarem o sistema imposto e transformá-las em uma de suas engrenagens. É relevante lembrar que Marx não menciona isso em seus trabalhos e, portanto, o livro de Federici preenche uma lacuna seminal nos escritos marxistas. Por apresentar uma visão ignorada da história e apontar outras questões interessantes – como a colonização e a visão do corpo que se modifica com o surgimento do capitalismo – O Calibã e a Bruxa é uma leitura imprescindível.

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