Muitas democracias do mundo, algumas modelares, como as dos países nórdicos da Europa, não têm Senado como instituição, seus legislativos são unicamerais. São todos, entretanto, países de estado unitário, com território e população relativamente pequenos, como Portugal, Grécia e Israel, também unicamerais. Isto quer dizer que o sistema democrático não exige a existência de uma segunda câmara legislativa, como é o Senado; mas a dimensão territorial e a grandeza e diversidade populacional de um país fazem que seja aconselhável sua existência nele. E, mais, particularmente, a adoção do regime de federação demanda o funcionamento de uma casa parlamentar que represente os Estados federados de forma igualitária.

Razões existem, pois, e experiências as demonstram, para sustentar a existência do Senado no Brasil, contra uma atual onda gigantesca de opinião que pede a sua extinção, em decorrência de uma outra onda, avassaladora, de denúncias estonteantes que atinge, nos dias de hoje, a nossa Câmara Alta.

Não creio necessário discorrer em mais detalhe sobre as razões de sustentação do nosso Senado. Basta observar que o nosso país é vasto, populoso, e tem uma diversidade regional, de caráter cultural e econômico, muito intensa, que seria abafada numa Câmara única, de representação proporcional às populações, na qual obviamente preponderariam com muita força os interesses e perspectivas das regiões mais ricas e populosas. Essas devem ter sido, penso eu, (a extensão e a diversidade) as razões principais que levaram ao modelo federativo adotado pela nossa República, copiando os Estados Unidos, onde o Senado, como representação das diversas Colônias rebeladas, cada uma com o seu governo local independente, existiu antes mesmo da Câmara, durante alguns anos enquanto a Assembléia elaborava a Constituição, e desde então sempre teve uma enorme importância política.

O Senado da República, no Brasil, tem então esta função precípua, de constituir a Casa dos Estados, lá representados igualmente, cada um com três senadores, fazendo valer o princípio básico do federalismo, o da igualdade entre os Estados federados. Mas tem paralelamente outra função, também relevante, função que possuem todas as segundas câmaras existentes em estados unitários, como a França e a Itália, de ser casa revisora ou moderadora das decisões legislativas, casa constituída de políticos de idade mais madura e especialmente de experiência maior no exercício de cargos públicos. Na Itália chega a haver senadores vitalícios, como foi o grande Norberto Bobbio, como é ainda a quase centenária Rita Levi-Montalcini, Prêmio Nobel de medicina. O fundamento desta função é o de que duas câmaras são capazes de formar juízos melhores do que uma só, principalmente se forem constituídas de forma diferente, sendo a segunda composta por representantes mais experientes. Mas tem ainda, o nosso Senado, outras funções específicas de grande importância definidas na Constituição Brasileira, como a de exercer uma presença forte na condução da política externa, através da nomeação dos embaixadores, e a de controlar a gestão monetária e financeira da União e dos Estados, que só uma representação paritária entre os Estados pode fazer adequadamente.

Razões de peso não faltam, por conseguinte, para a existência do nosso Senado. E quais os argumentos usados em favor da sua extinção? Dois, mais comuns: o do excesso de despesas com a função legislativa (uma Câmara só seria menos dispendiosa), e a da escandalosa corrupção desvendada nos últimos dias, que desmerece a Instituição.

Não vou considerar a primeira, que é a dos que pensam que a atividade política, inerente ao sistema democrático, com suas formas de representação, não constitui um ente imprescindível para uma boa e eficaz gestão da República, e querem gastar com essa função o mínimo possível (ou mesmo nada) dos recursos arrecadados com os impostos que pagam. Esta é uma visão proveniente da velha cepa positivista que foi completamente superada pela História ao curso do século XX e suas tragédias. A política é necessária e é decisiva no sistema verdadeiramente democrático, não é a ciência, não é a administração. Não quero com isso dizer, absolutamente, que as despesas do Parlamento, que é a entidade eminentemente política, não devam ser contidas criteriosamente dentro das necessidades estritas ao seu bom funcionamento. No nosso caso, por mero exemplo: passagens aéreas, nunca mais de quatro por mês(poderiam ser duas); assessores técnicos do próprio Senado em Brasília e um pequeno gabinete político no Estado, nunca 20 cabos eleitorais bem pagos pra cada um; nada de auxílio moradia, se o Senado tem apartamentos para todos; coisas triviais desse gênero (bom senso honesto), que reduziriam muito os gastos totais. Mas aí entra a segunda razão que está levando o Senado brasileiro à condenação generalizada da opinião pública, que é a dos abusos, a da corrupção, a da malversação, a dos desmandos, a da sem-vergonhice deslavada que vai sendo revelada. E numa democracia, todos sabemos, é a opinião pública que acaba prevalecendo, é a opinião pública que deve prevalecer.

Bem, neste ponto vale evocar a velha anedota para dizer que a melhor e verdadeira solução não é a de tirar o bom sofá da sala mas a de garantir a moralidade do seu uso. E neste ponto também aparece o lado positivo da crise: tudo o que está sendo revelado acontecia há muito tempo, sem conhecimento público, e só agora, com a transparência dada pelo noticiário, vai ser coibido, vai ser objeto de investigação, de julgamento e de medidas de moralização. Nem os senadores todos sabiam de tudo, o que não os livra da culpa de omissão, como a minha, que lá estive por três mandatos e, comodamente, nunca quis ter nenhum cargo na Mesa Diretora, precisamente para não me envolver nessas questões maçantes da administração da Casa. Com a omissão e a proteção do véu da opacidade, os abusos se multiplicaram e foram criando internamente, gradativamente, a baixa cultura da permissividade. Dá para entender mas não dá para tolerar, daí a saudável campanha do jornalismo investigativo. Tem interesses por trás? Tem. E é intencional a focalização sobre José Sarney, como se ele fosse o culpado de tudo? É, porque é do interesse dos que precisam tirar o PT do poder: visando Sarney, buscam estraçalhar o grande aliado político do Governo que é o PMDB. E é também interessante para a maioria dos senadores que haja um bode expiatório cuja destruição realize a catarse de toda a Instituição e os livre da culpa.

Há interesses velados, sim, movendo a onda de denúncias, mas o fato é que cumprem uma função absolutamente indispensável para a democracia, e o resultado será altamente positivo, repito, altamente positivo, apesar da desmoralização presente da Instituição. É assim que funciona a República, feita por seres humanos, falíveis. Na semana passada, por coincidência, o parlamento britânico aprovou uma nova legislação de repressão à corrupção parlamentar deles que prevê processos mais ágeis para pôr na cadeia os deputados corruptos. Com certeza tal decisão não é gratuita, desarrazoada; deve haver, também lá, coisa muito feia.

É duro mas é necessário que passemos por essas traumáticas lavagens periódicas que vão melhorando nossas instituições e também a nossa sociedade, que elas (instituições) no fundo refletem. Não é demais lembrar que, durante séculos, não existiu o pecado ao sul do Equador, e as lideranças que mais se esforçaram e lutaram pelo nosso aperfeiçoamento moral, os jesuítas, foram expulsos; como foram expulsos também os judeus, que lideravam o nosso desenvolvimento econômico. Recordar também que, não faz muito mais de cem anos, havia um regime de escravidão no Brasil, e que o nosso Estado Republicano só foi implantado por Vargas, depois da Revolução de 30; antes o que havia era um condomínio de oligarquias regionais que só tinha o nome de República (Velha).

Essas coisas do passado sempre de alguma forma continuam presentes, mas eu creio nesse processo sofrido e gradual de desinfecção e aperfeiçoamento, que agora bate fundo no Senado. Creio como necessário e eficaz na purificação.

*Roberto Saturnino Braga foi senador da República (PT-RJ); atualmente preside o Instituto Solidariedade Brasil e integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo