Em janeiro deste ano, após pressão e reivindicações de diversos setores, inclusive daqueles ligados ao empresariado que atua na área de mídia, o presidente Lula anunciou a disposição do governo em convocar a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Em abril, um decreto presidencial oficializou a iniciativa, definindo o seu tema – Comunicação: meios para a construção de direitos e cidadania na era digital – e agendando sua etapa nacional para 1o a 3 de dezembro, em Brasília.

O segundo passo foi a montagem da Comissão Organizadora Nacional, que recebeu a incumbência de definir as regras do processo e garantir a execução de todas as suas etapas. O organismo foi composto por oito representantes do governo federal, oito de associações empresariais, quatro do Congresso Nacional e sete de agremiações sindicais, movimentos sociais e organizações que lutam pela democratização da comunicação, além de um das entidades do campo público de televisão.

Apenas em junho a Comissão Organizadora iniciou seus trabalhos, dedicando-se à tarefa primordial da elaboração e aprovação do regimento interno da Confecom. Pairava naquele momento uma incerteza quanto às possibilidades de equalizar os interesses divergentes em jogo. A previsão era que as polêmicas centrais girariam em torno do temário (conjunto de temas a ser debatido nas várias etapas do processo) e do método de escolha dos delegados à etapa nacional.

Porém, antes que tais controvérsias pudessem ser apreciadas e explicitadas, instaurou-se um impasse político que estagnou o andamento dos trabalhos da Comissão e a conclusão do regimento interno, prevista para o dia 9 de julho. Os representantes da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) apresentaram “condições mínimas”, ou premissas, que deveriam constar no regimento com vistas a garantir a participação do empresariado de radiodifusão no decurso do processo.

Entre elas estão: (1) a defesa do conteúdo nacional, (2) a proteção dos serviços e outorgas atuais frente à turbulência tecnológica da convergência midiática, (3) a defesa intransigente das práticas da legalidade, (4) o respeito e a valorização das empresas brasileiras de comunicação escrita ou de radiodifusão dirigidas e orientadas editorialmente por brasileiros, (4) o livre exercício da atividade de comunicação e de informação, por pessoa e organizações, e (5) a mínima interferência estatal.

A Abert também defendeu que “não se perdesse o foco” no tema central da Confecom, interpretado pela entidade como os desafios relativos ao “futuro” do setor. Em audiência pública realizada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI) no último dia 8 de julho, um representante da associação advogou que as discussões da Conferência “começassem e terminassem na Internet”.

Ou seja, a agenda de temas e propostas do empresariado de radiodifusão – uma legítima visão para ser apresentada nas discussões nas diversas etapas do processo – foi transformada em condição para a manutenção deste segmento no processo da Confecom.

Tal posição precisa ser problematizada fortemente. No que tange às premissas reclamadas pela Abert, a defesa a priori dos interesses de um setor nos objetivos ou mesmo como premissas de uma Conferência não respeita a lógica de funcionamento de uma iniciativa como esta. Como já ocorreu em dezenas de eventos deste tipo organizados pelo Executivo Federal desde 2003, uma Conferência presume a abertura de um espaço para debate público entre as diversas partes envolvidas. Suas regras precisam assegurar esta amplitude, o envolvimento da população e dos diversos segmentos interessados na área. Mas não devem legitimar a consolidação da pauta de determinado segmento como tema indiscutível ou como premissa dos debates. Tal opção ameaça a Confecom como espaço de discussão pública sobre as políticas de comunicação.

Não se pode ignorar que a Conferência deve partir do modelo institucional das comunicações atual, incluindo a Constituição Federal, leis e outras normas. No entanto, como espaço de avaliação e proposição das ações do poder público em uma determinada área, suas resoluções podem, inclusive, apontar para a mudança das estruturas ou do ambiente normativo existente.

Quanto ao mérito das premissas colocadas pelos radiodifusores, fazemos aqui um parêntese que consideramos relevante. Parte delas deve ser entendida como temas importantes para o debate da Conferência. A defesa do conteúdo nacional é uma questão central e importantíssima na discussão sobre a revisão do marco institucional das comunicações brasileiras. Ela precisa ser tratada com atenção, pois já há décadas a mídia brasileira recorre ao expediente de produções estrangeiras, sobretudo estadunidenses, nas diversas mídias difusoras de conteúdos audiovisuais.

Porém, a defesa dos valores culturais brasileiros não pode ser confundida com a prerrogativa de valorizar, a priori, os meios de comunicação comerciais. Falar em conteúdo nacional deve significar falar também na expressão da diversidade e pluralidade de vozes, culturas, regiões, visões, gêneros e formatos, o que hoje não é assegurado nem pela legislação, nem pelas TV e rádios comerciais brasileiras.

Para que a Conferência realize seu caráter de espaço amplo e democrático, tampouco é adequado restringir os assuntos que ali serão discutidos. Se é fato que algumas manifestações dos representantes dos radiodifusores por vezes advogam contra a “proibição” de qualquer debate, a insistência do foco no “futuro” deve ser tomada com cuidado. Faz-se necessário afirmar algo tão óbvio quanto importante: o futuro surge apenas como sucessão do presente, fazendo-se necessário, para planejar aquele, partir dos elementos estruturais e conjunturais do agora.

O argumento utilizado pelos radiodifusores para sustentar este recorte temático parte do lema constante no decreto que convocou a Confecom, cujo final menciona a “era digital”. No entanto, a “era digital” é exatamente esta em que vivemos hoje, um complexo sistema que reúne dos meios mais “primitivos” e das constantes necessidades de atendimento mais banais da população – como falar ao telefone ou ter acesso a um meio impresso – aos desafios trazidos pela convergência de conteúdos, plataformas de distribuição e dispositivos de recepção. “Era digital”, portanto, não pode ser confundida, em hipótese alguma, com as novas plataformas digitais, sendo estas apenas uma parte do problema. A limitação do escopo do tema é também uma ameaça à Confecom quanto à sua necessidade de atender ao déficit histórico de debate público sobre o setor no Brasil.

Ainda em relação às demandas apresentadas pela Abert, está a defesa de que a eleição dos delegados respeite uma proporção paritária, reservando dentre os eleitos 33% ao poder público, 33% ao empresariado e 33% à sociedade civil não empresarial. Ora, será que os donos dos veículos de comunicação e das empresas de telefonia e internet representam 1/3 da população brasileira? Se isso fosse verdade, poderíamos comemorar a quebra da concentração de propriedade que marca a mídia no país, já que contaríamos com 60 milhões de operadores diferentes.

Ao contrário, o segmento empresarial é absoluta minoria em relação ao conjunto da população brasileira e às suas diversas representações, que não se esgotam nos movimentos sociais representados na Comissão Organizadora Nacional. Logo, não se pode conceber que a eles seja garantida tamanha representação. O justo é que eles disputem as vagas de delegados com toda a população, cabendo ao voto de cada cidadão a decisão de qual o percentual que o empresariado representa na Conferência.

Desafios para o governo

O governo federal tem papel fundamental, pelo peso auto-concedido na Comissão Organizadora, na resolução dos impasses colocados. Seria estranho qualquer tipo de abandono da prática adotada nas outras dezenas de Conferências de assegurar uma arena ampla e aberta de debate na qual os diversos segmentos podem colocar suas posições para encontrar aproximações ou equalizar divergências por meios consolidados como as votações.

A condução firme do governo para garantir que a Confecom cumpra seus objetivos e a necessidade de acelerar o processo são tão importantes quanto a atenção a aspectos operacionais do processo. Desde a primeira reunião, o Ministério das Comunicações ficou com a responsabilidade de enviar aos governadores de todo Brasil uma carta oficial conclamando os executivos estaduais a participarem do processo. Até hoje não foi enviado nenhum documento neste sentido, ação fundamental para dar credibilidade à realização da etapa nacional e segurança para as etapas estaduais e municipais.

Outra preocupação operacional é o local onde será realizada a etapa nacional. Os principais centros de convenções de Brasília já estão com reserva para a data da I Confecom. Sob o risco de não haver local adequado, em meados de junho um dos membros da Comissão Organizadora, representante da sociedade civil não empresarial, realizou uma pré-reserva na Academia de Tênis de Brasília, como um possível espaço para a realização do evento. Na época, o Ministério das Comunicações assumiu o compromisso de efetivar a reserva, o que não foi feito. A justificativa foi que isso só seria possível quando houvesse a recomposição dos recursos.

Cronograma e recursos

Se a resolução do impasse torna-se crucial à continuidade da Confecom, não menos importante é a solução de outros dois obstáculos centrais ao bom andamento do processo: o tempo para o desenvolvimento das etapas e os recursos.

Quanto ao primeiro caso, se considerado o agendamento da etapa nacional para o início de dezembro deste ano, a demora na conclusão do regimento interno pode asfixiar o processo pela falta de tempo para a sua necessária interiorização e mobilização dos mais diversos segmentos sociais interessados. A insuficiência de tempo para a realização das etapas preparatórias – municipais, intermunicipais e livres –, previstas para ocorrer antes dos eventos estaduais, marcados para setembro e outubro, coloca-se como mais uma ameaça à plena realização da Confecom.

Mesmo que todas as barreiras elencadas sejam vencidas, ainda coloca-se um impeditivo extremamente grave: os recursos. O Congresso Nacional reservou R$ 8,2 milhões para a Confecom. Em maio, este valor foi reduzido pelo governo federal a R$ 1,6 milhão, montante considerado insuficiente até mesmo pela equipe do Ministério das Comunicações, órgão responsável pela coordenação da iniciativa.

Já chegou ao Congresso Nacional o PL 27/2009, que recompõe integralmente os recursos da Confecom. Porém, com o início do recesso parlamentar, a tramitação até a aprovação final do projeto corre o risco de estender ainda mais os preparativos para todas as etapas da Conferência. Informações do Ministério das Comunicações sinalizam para a possibilidade de que o repasse seja feito por outros meios. A solução, independente do caminho escolhido, deve assegurar a recomposição dos recursos o mais breve possível, de modo que o processo de preparação das etapas possa de fato ser iniciado.

O cenário é definitivamente preocupante. As sinalizações de membros do governo têm apontado que há uma firme convicção sobre a importância de fazer acontecer a I Conferência Nacional de Comunicação. Esperamos que tais intenções se confirmem e que esta não seja iniviabilizada nem política nem estruturalmente.

Esta iniciativa é bandeira histórica dos movimentos que lutam pela democratização da comunicação e pela afirmação da comunicação como um direito humano. Este campo, organizado em torno da Comissão Nacional Pró-Conferência, tem demonstrado disposição ímpar para levar a cabo este marco histórico para as comunicações brasileiras. E continuará a fazê-lo, acreditamos, contribuindo com disposição ao diálogo, mas também com firmeza em suas posições para fazer da Conferência um efetivo espaço público.

Resta aos agentes envolvidos no processo encarar a tarefa histórica de retirar os cidadãos da posição de simples espectadores de meios e consumidores de serviços e elevá-los de fato à condição de sujeitos. Sem isso, falar em liberdade de expressão ou em sociedade democrática continuará soando como um discurso vazio.

*Jonas Valente é jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação e representa o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social na Comissão Organizadora da I Conferência Nacional de Comunicação; Carolina Ribeiro é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

Texto publicado originalmente no site do Observatório do Direito à Comunicação. Republicado a partir do Portal PT.