Georges Flexor: Os desafios dos biocombustíveis em tempos de crise econômica
Com a crise econômica ocupando quase todo o espaço do noticiário econômico e político, perderam intensidade as controvérsias que marcaram a rápida expansão dos biocombustíveis antes da falência da Lehman Brothers em setembro de 2008. Comparada à efervescente conjuntura pré-crise, o momento atual é marcado por expectativas menos grandiosas ou alarmantes, e por um ambiente intelectual mais propício à revisão da percepção dos desafios e problemas do setor, cuja discussão está mais associada agora a aspectos mais concretos e operacionais.
Esse momento, no entanto, não perdurará e, mais cedo ou mais tarde, aquelas controvérsias anteriores a respeito da segurança alimentar ou do desmatamento das florestas tropicais voltarão a ocupar um lugar de destaque na agenda global desse início do século XXI. A trajetória ascendente dos preços do petróleo nessas últimas semanas (um aumento de 45% desde o início do ano), a organização de um G8 agrícola para discutir uma agenda permeada pela questão da segurança alimentar e o comprometimento dos Estados Unidos da América em desenvolver uma matriz energética mais sustentável podem ser vistos como exemplos de que os fatores que alimentaram os debates antes da crise econômica global não desaparecerem. Podem ter ficado em segundo plano devido à intensidade e à extensão dessa última, mas é bem provável que uma melhora nas expectativas macroeconômicas ou a emergência de uma nova crise, quer seja alimentar, energética ou ambiental, recolocará a questão dos biocombustíveis sob os holofotes.
Nas linhas a seguir, pretendo brevemente apontar para alguns dos efeitos mais visíveis da crise sobre a indústria de biocombustíveis no Brasil, assim como destacar desafios e oportunidades proporcionados pelo momento atual. Acredito que o arrefecimento das controvérsias representa um contexto oportuno para avaliar e discutir a questão do desenvolvimento dos biocombustíveis no Brasil.
Ao congelar o acesso ao crédito, gerar incertezas e estimular expectativas negativas, a crise econômica solapou rapidamente os alicerces que sustentavam o boom de investimentos no setor sucro-alcooleiro desde o início do século. Por um lado, a rápida deterioração do ambiente econômico impactou duramente as usinas, sobretudo, as mais alavancadas e com menor grau de capacidades funcionais e gerenciais. Para viabilizar uma onda de renegociação das dívidas junto ao BNDES, Banco do Brasil, tradings e fundos de investimentos, o setor sucro-alcooleiro tem tentado buscar apoio do governo, ação que resultou em concessões de créditos públicos e na maior atuação da Petrobras e do BNDES. O pedido de socorro ao governo envolveu também ações de financiamento de estoques, no intuito de manter capital de giro e desestimular a oferta e a queda dos preços. Por outro lado, a crise do setor abriu janelas de oportunidades de negócios para empresas mais sólidas e capitalizadas, que puderam adquirir ativos a preços vantajosos. Empresas multinacionais como a trading francesa LDC, por exemplo, comprou a Santelisa, que, por sua vez, perdeu centenas de milhões de dólares no mercado de derivativos enquanto a líder do setor, a brasileira Cosan passou a controlar a Nova América Agroenergia. O principal efeito direto da crise, portanto, é de acelerar um processo de consolidação e concentração do setor, processo esse que já havia sido iniciado antes do colapso do sistema financeiro.
Na indústria do biodiesel, a situação é diferente por causa de alguns fatores específicos. O primeiro dele é de ordem institucional. Com efeito, a indústria de biodiesel se beneficia de um quadro institucional que lhe garante certa estabilidade, com a formalização de leilões de compra periódicos e a garantia de uma demanda interna gradativamente crescente. Com a implementação da Política Nacional de Uso e Produção de Biodiesel (PNPB), as empresas produtores de biodiesel desfrutam de certa segurança quanto ao crescimento do mercado, já que podem contar com uma demanda garantida de 1,4 bilhões de litros ao ano devido à mistura de 3% desse produto no diesel mineral, e que será aumentada para 4% a partir de julho deste ano. Esse arcabouço institucional funciona, nesse sentido, como estabilizador das expectativas, algo precioso em tempo de incertezas radicais. Sem essa ancora institucional, é provável que o razoável clima de confiança que caracteriza a indústria de biodiesel seria bem diferente.
Já o segundo conjunto de fatores específicos se relaciona com o estágio de desenvolvimento da indústria de biodiesel. O mercado de biodiesel, ao contrário do de etanol, ainda não corresponde a um mercado maduro: antes de 2008 era quase inexistente. Ao contrário do que aconteceu com o mercado de etanol, de 2003 até o início de 2008, o de biodiesel não foi marcado por um excessivo clima de euforia e expectativa de lucros fáceis. O início da indústria de biodiesel no Brasil caracterizou-se por uma série de problemas gerenciais e margens bastante apertadas, deixando várias empresas em péssima situação financeira. Mas, comparada com o setor sucro-alcooleiro, trata-se de uma indústria com investimentos de menor porte, com alavancagem reduzida e com menor presença de capitais aventureiros. Essa característica representa uma diferença importante entre ambos os mercados e tem preservado em grande parte a indústria de biodiesel da crise econômica. Por fim, cabe observar que, como os preços da soja – a principal matéria prima usada na produção de biodiesel – estão abaixo do seu pico alcançado no primeiro semestre de 2008, as empresas têm margens mais confortáveis e algumas já apresentam sinais de expansão da produção.
Se a crise econômica global atingiu severamente o setor sucro-alcooleiro brasileiro, seus efeitos sobre a indústria de etanol americana foram devastadores. Com empresas endividadas, dificuldades de acesso ao crédito e controvérsias intensas sobre os subsídios ao etanol de milho, as empresas americanas se defrontam com um quadro de negócio até pouco tempo atrás impensável. Além disso, com a redução da demanda por combustíveis nos Estados Unidos, as refinarias que usam o etanol como aditivo na composição da gasolina diminuíram a procura pelo mesmo. O preço do milho, que é o principal componente do custo, pode ter caído em relação a 2008, mas continua acima dos seus níveis históricos, o que acaba afetando negativamente o desempenho econômico das usinas americanas.
Nessas condições, a indústria de etanol norte-america pressiona governo e congresso para mudar a legislação a seu favor. Mas é uma empreitada incerta. A Agência de Proteção Ambiental americana (EPA, em inglês) divulgou recentemente um relatório crítico ao etanol de milho, considerando nulo, ou quase, os benefícios ambientais associados à produção e ao uso deste tipo de biocombustível. A aprovação de um padrão de combustíveis de baixa emissão de carbono pelo estado da Califórnia e o comunicado a favor do etanol de cana (brasileiro) representam outros motivos de preocupação para os produtores americanos. Para a indústria sucro-alcooleira brasileira, no entanto, trata-se de um acontecimento importante, já que legitima em parte o biocombustível brasileiro e torna mais contestáveis os subsídios aos produtores americanos e as altas tarifas de importação do etanol brasileiro.
Para além das possibilidades de maior exportação de etanol para o gigantesco mercado norte-americano de combustíveis, a crise pode ter um efeito mais indireto sobre o padrão de produção e consumo de biocombustíveis no Brasil e no mundo. A redução abrupta do ritmo de crescimento econômico diminui a percepção de escassez energética e, portanto, a necessidade de garantir suprimentos a qualquer custo. Nesse contexto, os ganhos – em termos de segurança energética – de elevar a produção de biocombustíveis baseada em matéria-prima agrícola como o milho ou a soja são menores do que na fase de rápida expansão econômica. Com a diminuição dos incentivos à manutenção de uma indústria de etanol de primeira geração pouco eficiente ambiental e economicamente, os passos para o desenvolvimento de biocombustíveis de segunda geração, como o etanol celulósico ou o biodiesel de micro-algas, poderiam acelerar-se. Essa evolução teria a vantagem de resolver parte do dilema biocombustíveis versus alimentos, garantindo maior legitimidade a essa forma de aproveitamento social da biomassa. Mas para que essa mudança realmente venha acontecer, é necessário um processo de construção e difusão de novas narrativas acerca dos fatores que impulsionem o crescimento e promovam o desenvolvimento. No entanto, em contexto de profunda crise, a difusão de novas idéias e narrativas acerca dos mecanismos que favorecem padrões econômicos e sociais mais sustentáveis é uma possibilidade e não representa uma certeza.
Para o conjunto de atores envolvidos na produção de biocombustíveis no Brasil, a conjuntura atual traz implicações importantes. Devido a economias externas associadas à densidade da cadeia sucro-alcooleira no Brasil, sua promoção e apoio podem ser considerados estratégicos para o país.
Iniciativas nesse sentido, porém, deveriam privilegiar projetos que incorporem os novos atributos da competitividade, a responsabilidade social e ambiental, sem os quais políticas para o setor perdem legitimidade.
O estudo do zoneamento da cana pode representar um avanço nessa direção, mas os critérios estabelecidos para definir as áreas aptas ou não à expansão da indústria de etanol podem ser razoavelmente criticados e gerar novas polêmicas. No caso em que novas idéias e narrativas sociais se difundam rapidamente, os ganhos da expansão do setor sucro-alcooleiro podem derreter, e os investimentos recentemente realizados podem atrasar uma mudança significativa para um sistema econômico e social mais sustentável. Ou seja, os incentivos de curto prazo podem gerar prejuízos a médio e longo prazo. Em particular, podem induzir menores investimentos em ciência e tecnologia necessários para o desenvolvimento de etanol de segunda geração e outras fontes de biomassa, deixando a outros países, como os Estados Unidos, a liderança nessa área.
Para a indústria de biodiesel, o principal desafio é reduzir a dependência da soja como matéria-prima. Uma política de desenvolvimento da indústria de biodiesel não pode depender de uma commoditie fundamental para o sistema agroalimentar sem correr o risco de enfrentar o tema da segurança alimentar. A questão da equidade que norteia o desenho do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel é um componente essencial de sua legitimidade. Mas esperar que a produção crescente de biodiesel seja baseada principalmente no fornecimento de matéria-prima da agricultura familiar é provavelmente otimista demais. O desenvolvimento de novas tecnologias baseadas em micro-algas, os investimentos em pesquisas agronômicas apropriadas à diversidade dos ecossistemas brasileiros, a construção de sistemas de produção e distribuição descentralizados e de mercados para óleos de cozinhas representam alternativas que podem combinar-se com estímulos a produção da agricultura familiar. Essas possibilidades, mesmo que pouco atrativas no momento, poderão representar uma aposta política e econômica bastante interessante para o futuro próximo.
*Georges Flexor é professor do IM/UFRRJ, membro do Observatório de Políticas Públicas para Agricultura (OPPA/CPDA/UFRRJ – http://www.ufrrj.br/cpda/oppa/) e Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento/INCT-PPED. Recebe apoio da FAPERJ.