Segundo domingo de agosto e se estou aqui pra contar essa história, nesta segunda segunda-feira de agosto de 2017, é porque sobrevivi. Sobrevivi a mais um Dia dos Pais, uma data extremamente desconfortável para mim. Poderia falar sobre o quanto essa é uma data encomendada pelo capitalismo e tal, concordo com todas essas leituras, mas na minha vivência periférica esses dias sempre foram carregados de uma outra coisa e sempre tiveram um impacto forte, uma importância simbólica mas também concreta em nosso ano. Um momento de congregação e portanto, de amor entre a família. Eu nunca tive esse momento. Quero falar da primeira experiência de desamor que tive na vida, a do meu pai.

Hoje estou certa de que não conhecer o pai (como é o caso exorbitante de muitas filhas e filhos) é menos pior do que conhecê-lo e ir vendo-o se tornar um estranho ao longo dos anos. Pior ainda, é amá-lo, mesmo com tudo que ele fez – ou – não fez. A história é longa, não caberá nos limites dos caracteres, mas vou tentar resumir.

Quando eu nasci, meu pai era muito jovem. O casamento durou apenas quatro anos, se separaram quando eu tinha dois. Cresci no âmago do que hoje a justiça da família tipifica como “alienação parental”. Criada com minha mãe, ouvia sempre que meu pai era irresponsável, que não assumia as responsabilidades, que não ajudava. Eu discordava e ia pra cima dela, afinal, meu pai era um herói que me levava no cinema e tinha um carro grande e fazia minhas vontades, mesmo que de dois em dois meses, e olhe lá. Do lado dele, sempre muita repulsa e ódio por minha mãe. Não me agradava também ouvir as coisas que ele falava, mas eu não saía em defesa dela na infância por medo (sim, eu tinha muito medo dele porque ele era muito grande e mesmo nunca tendo me batido, exercia uma autoridade etérea sobre minha subjetividade, que só de ele aparecer eu me tremia de orgulho e medo).

Na adolescência, os conflitos acumulados começaram a florir em grandes embates e muita coisa foi se ressignificando na minha vida. Quanto mais eu amadurecia, mais compreendia que a distância entre meu pai e eu era a mesma distância entre ele e minha mãe. Eu era o fruto de uma frustração patriarcal de não-dominação, pois minha mãe sempre foi uma mulher independente, de um rancor mal curado, de uma misoginia profunda que ele desenvolveu por mainha. E não é que isso respingava em mim: eu era o repositório de todo o desdém que já não cabia mais dar a ela

Tivemos poucas e duras discussões, a última há cinco anos e não nos falamos desde então. É estranho porque até somos amigos no facebook. É estranho porque ele não é um estranho, sei seu endereço, vejo suas postagens, moramos na mesma cidade.

Há algum tempo comecei a fazer uma reflexão sobre os distúrbios da minha vida amorosa e do quanto esta dimensão da minha vida chamada – pai – está articulada ao meu desequilíbrio emocional, sobretudo na relação com homens. E é uma frustração horrorosa saber que mesmo exercendo a militância feminista há mais de cinco anos, do ponto de vista organizativo, mesmo tendo conquistado minha autonomia financeira e de ter cada dia mais clareza sobre os processos de dominação e subjugação aos quais somos, mulheres e mais ainda mulheres negras, submetidas; ainda assim me permito e às vezes até me impulsiono no colo de relações abusivas. No meu caso, as relações abusivas se dão pela falta e não pelo excesso. Pela desresponsabilização, pelo descompromisso, pela desatenção, pelo descrédito.

É como se eu tivesse numa espiral de sofrimento de onde não consigo sair mesmo vendo o portal da liberdade na minha frente. E a barreira intransponível entre eu e ele é a minha subjetividade completamente escravizada por padrões de desleixo e indiferença, que ainda me fazem pensar que sou culpada e que, portanto, tenho capacidade de superar, ou seja, de fazer ser diferente, de provar que mereço ser amada. Que peso, que lástima.

Espero que a partir desse desabafo, outras mulheres me ajudem a acumular uma reflexão feminista mais aprofundada sobre o tema. Nem sei como terminar esse texto, pois ao fim dele me deparo com um limite que não sei como superar, mas sigo caminhando.

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