Marcio Pochmann: A tarefa dos progressistas
Por quase três décadas, o pensamento liberal-conservador predominou em quase todo o mundo. Esta constatação tem seu significado expresso pelo retrocesso de conquistas socioeconômicas difundidas, sobretudo após o final da Segunda Grande Guerra Mundial. A imposição de várias derrotas às forças progressistas ficou demarcada pela emergência da globalização financeira, responsável pelo apequenamento do horizonte de possibilidades emancipatórias para toda a humanidade.
Quando mais as finanças foram sendo deslocadas da produção, mais as forças do trabalho perderam espaços nas políticas públicas, acumulando prejuízos inegáveis em termos de emprego e renda. O enquadramento neoliberal do Estado permitiu a maior monopolização das forças econômicas e financeiras privadas, a tal ponto de o mundo ser governado atualmente por não mais de 500 grandes corporações globais que respondem em conjunto por quase 50% do produto mundial.
O esvaziamento da governança pública mundial construída no segundo pós-guerra, por meio da Assembléia Geral das Nações Unidas, deu lugar ao avanço da própria desgovernança. Nesse sentido, o meio ambiente acusou o conjunto de excessos comprometidos pelo estrito compromisso com o lucro privado.
A crise do capitalismo global colocou em xeque o receituário até então adotado. A presente possibilidade de maior libertação do pensamento liberal-conservador coloca novas tarefas aos defensores do desenvolvimento socioeconômico-ambiental. No intuito de ampliar o debate sobre o papel dos progressistas neste momento de construção das bases de superação da crise, as páginas a seguir foram desenvolvidas em cinco partes complementares. Inicia-se com breve abordagem acerca da crise da globalização, sucedida por interpretação das respostas adotadas pelas políticas econômicas e sociais e, ainda, por análise da capacidade de resposta do governo brasileiro. As duas últimas partes tratam de duas tarefas fundamentais: refundação do Estado e reforma da propriedade.
1. Crise e desglobalização
A crise econômica atual dissemina-se num mundo ineditamente integrado e subordinado à lógica de funcionamento das forças de mercado. Noutras oportunidades, como nas grandes crises sistêmicas de 1873, 1929 e 1973, o mundo estava constituído parcialmente por países com economias de mercado. Nas depressões de 1873 e 1929, por exemplo, havia uma quantidade significativa de colônias vinculadas aos velhos impérios (Inglaterra, França, Holanda e Portugal) que mantinha ativos os modos de produção e consumo pré-capitalistas, enquanto nas crises de 1929 e de 1973 existiam economias centralmente planejadas, como a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Nos dias de hoje, constata-se que o avançado grau de internacionalização capitalista sofre importante abalo por decorrência da crise econômica que termina colocando em xeque as principais forças privadas responsáveis pela sustentação da própria globalização. Sem a ação pública coordenada e civilizada, a inflexão desglobalizadora tende a prosseguir pela via da saída clássica. Ou seja, a promoção da maior concentração de capital nas grandes empresas em meio à contração da demanda estimulada por cortes no nível de emprego e de remuneração dos ocupados. Na seqüência das medidas estatais adotadas para salvar empresas financeiras e não-financeiras insolventes e para compensar parcialmente a queda no consumo ganham maiores destaques as intervenções de caráter protecionista. Outro ciclo de conflitos entre nações pode estar sendo gestado no mundo no caso de continuar predominando a ausência das condições concretas de retomada da trajetória do crescimento econômico e social. Com a fragmentação em curso da economia global, a dinâmica geográfica deve assumir novo patamar com estruturas de hegemonias regionalizadas. Noutras palavras, a transição do mundo unipolar desde o fim da Guerra Fria para a multipolaridade evidenciada por sinais crescentes da decadência estado-unidense. No mesmo sentido, ressalta-se que o desenvolvimento econômico deve ser reconfigurado tendo em vista a quebra dos vínculos entre as finanças nacionais e globais.
De um lado, pelo enfraquecimento das fontes geradoras de liquidez internacional, fundamentais na retroalimentação dos esquemas de financeirização da riqueza interna e externa. Na ausência de novas formas confiáveis de drenagem dos recursos entre países, empresas e famílias deficitárias ou não, a base do financiamento da globalização torna-se ainda mais escassa. Para os países não desenvolvidos, os fluxos internacionais de crédito foram praticamente interrompidos, com queda estimada para 2009 de quase 1,2 trilhão para menos de 200 bilhões de dólares. Ademais da dificuldade para as empresas que operam em rede manterem o circuito da produção desterritorializada, o comércio externo sofre enorme retrocesso. Por conta disso, não se mostra desprezível o surgimento de nova onda de recomposição produtiva no mundo multipolar consagrado por escassos esquemas de financiamentos nacionais e regionais. O fluxo de migrações inversas (das regiões ricas às não desenvolvidas) acompanhado da maior discriminação e violência contra migrantes na Europa, por exemplo, revela o quadro geral de disputa do emprego fora da globalização.
De outro lado, pelo fortalecimento das moedas de curso regional que pode levar ao estabelecimento de estruturas bancárias modificadas, já que o esvaziamento dos bancos locais, estaduais e regionais terminou por concentrar a quase totalidade dos depósitos em poucas localidades. Ou seja, a quebra de compromissos que poderiam haver entre a poupança e a aplicação de recursos na mesma localidade. De maneira geral, tende a prevalecer a transferência da poupança bancária de regiões pobres para as regiões mais ricas estimulada fortemente pela concentração bancária.
Em síntese, a desglobalização já desponta como uma das conseqüências da crise econômica atual. Sua reversão parece possível, contudo, depende da adoção de outra modalidade de saída da crise que não seja a clássica. Neste caso, o padrão de financiamento precisa ser reconstituído, bem como outro modelo de produção e consumo necessita ser adotado. Mas para isso, uma nova maioria política global deveria ocupar o lugar deixado vago pelo grupo de interesses articulados pelo ciclo da financerização de riquezas, estabelecendo na esteira da governança mundial outra institucionalidade para além das agências multilaterais como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, entre outras.
2. Do paradigma de mudanças à mudança de paradigma
Com o passar do tempo, percebe-se como os eventos de uma grande crise podem potencializar o surgimento de novas correntes de pensamento e ação. Por sua manifestação inicial e reação imediata por parte dos governos de diferentes países, a crise atual do capital globalizado já implica significativa mudança de paradigma. Durante as últimas duas décadas, o paradigma dominante era o das mudanças, que se expressou na reforma do Estado, com a privatização e focalização do gasto social, na financeirização da riqueza, na desregulação dos mercados (financeiro, de bens e trabalho), entre outros. Tudo isso provocou um enorme desbalanceamento na relação entre o Estado e o mercado, com extrema valorização do último. Ao invés da preocupação fundamental com resultados que melhorassem a condição de vida e trabalho do conjunto da sociedade estabelecido pelo paradigma de mudanças, prevaleceu o enfoque centrado na eficiência competitiva do mercado frente ao Estado, permeado por visões vazias de indicadores e instrumental operacional insensíveis ao sofrimento humano. Com a redução do Estado, as finanças passaram a funcionar como se fossem um fim em si mesmo, fazendo crer que a riqueza poderia ser criada sem passar pela economia real.
Se considerado apenas os primeiros momentos da crise atual, percebe-se como está em curso uma profunda mudança de paradigma, diferentemente do paradigma anterior de mudanças. Isso pode ser identificado, por exemplo, nas políticas anticrise atuais que ocorrem sem a interferência das Nações Unidas, sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Até então, dificilmente alguma experiência de enfrentamento de crise anterior ocorria sem a presença de agências multilaterais. Mesmo que se constate a presença do G-20 nas tentativas de organização da convergência de ações anticrise, não caberiam dúvidas a respeito da urgência de novas bases institucionais para a governança global. O reposicionamento dos principais atores (Estado, sociedade e mercado) precisa ser restabelecido nestes novos tempos de mudança de paradigma.
Também em relação ao conjunto de políticas econômicas e sociais em curso para enfrentar a crise registra-se o perfil muito distante do adotado em períodos anteriores de grave turbulência econômica. Nas crises dos anos 80, por exemplo, a orientação predominante era a dos ajustes na contenção da demanda interna (corte de emprego e salários) para forçar o surgimento artificial de excedente exportador somente adequado às exigências de pagamento dos serviços financeiros da dívida externa.
Durante a década de 1990, as crises foram respondidas por reformas liberalizantes que geraram a ilusão de que o menos (direitos, renda e ocupação) não significaria, em conseqüência, o mais (pobreza, desemprego e precarização). Nos dias de hoje percebe-se a manifestação de certa confluência espontânea em torno da adoção de políticas anticrise que procuram defender e promover a produção e o emprego em praticamente todos os países.
Por fim, cabe ainda chamar a atenção para o fato de que ao contrário do anterior paradigma de mudanças, que exigia o afastamento do Estado para o pleno e efetivo funcionamento dos mercados, prevalece a atual força da realidade. Ou seja, a forte pressão das próprias forças de mercado para que o Estado avance mais e de forma rápida. Destaca-se que no cenário de mudança de paradigma, o Estado forte torna-se plenamente compatível com o vigor do mercado, colocando em desuso a máxima do pensamento neoliberal de que menos Estado representaria mais mercado e vice-versa. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, déficit fiscal esperado para 2009 pode alcançar 8% do Produto Interno Bruto, somente comparável à experiência da década de 1940.
Resta saber, contudo, se a atual mudança de paradigma, que aponta para o redescobrimento do Estado, atende prioritariamente às exigências de ricos e poderosos interessados na socialização dos prejuízos impostos pela crise. Ou, por outro lado, inaugura, de fato, um novo padrão civilizatório, em que a reorganização do Estado em novas bases permitirá um balanço mais saudável com a sociedade e mercado.
3. Brasil: um olhar para além da superfície
Nos últimos cinco anos, o Brasil registrou uma importante inflexão na trajetória socioeconômica que vinha sendo percorrida desde a crise da dívida externa (1981 – 83). Tanto assim que ao longo de todo o século 20, constata-se que justamente o pior desempenho econômico e social ocorreu durante as décadas de 1980 e 1990, quando a renda per capita manteve-se praticamente estagnada, a distribuição da renda nacional tornou-se ainda mais concentrada, a inflação atingiu patamares inaceitáveis, o endividamento público era crescente e a inserção internacional foi regressiva.
A partir de 2004, contudo, o conjunto dos indicadores econômicos e sociais brasileiros passou a confirmar o cenário muito diferente daquele verificado até então. O endividamento do setor público passou refluir significativamente (de mais de 50% para próximo de 1/3 do produto nacional), acompanhado por estável índice do custo de vida da população, pelo reforço das relações externas e satisfatória expansão econômica, mais de duas vezes superior à verificada nos anos 1990, por exemplo. As implicações disso para o país não tardaram a se manifestar em termos da considerável ampliação do emprego formal e da mobilidade social, bem como pela queda no desemprego, na pobreza e na desigualdade de renda. Em síntese, a combinação positiva do crescimento econômico com a inclusão social potencializada por corretas políticas públicas de incorporação de mais de duas dezenas de milhares de brasileiros ao padrão de consumo de massa.
Esta realidade recente, que permite ao Brasil conectar-se novamente à trajetória do desenvolvimento, terminou sendo fortemente abalada pela crise econômica global. O que se verifica desde o último trimestre de 2008 representa uma inegável ameaça à própria continuidade do ciclo positivo de resultados econômicos e sociais. Inicialmente convém destacar que parte da alteração no comportamento do setor produtivo atual reflete a elevação da taxa básica de juros, cujos efeitos passaram a se fazer mais presentes a partir de setembro do ano passado. Além disso, percebe-se como também rapidamente a economia nacional passou a acusar sinais da inoculação do vírus da crise econômica internacional no setor produtivo proveniente da inadimplência das hipotecas subprime estado-unidense.
No caso brasileiro, destacam-se três principais vetores de transmissão da crise externa. O primeiro refere-se à drástica contenção do crédito internacional que atingiu fortemente o setor produtivo doméstico, especialmente as empresas produtoras de mercadorias de maior valor unitário e dependentes de financiamentos (bens de consumo durável e de capitais). O segundo vetor diz respeito ao encolhimento do comércio externo que impacta diretamente parcela do setor produtivo comprometido com o atendimento da demanda oriunda de exportações. O terceiro vetor de transmissão da crise internacional deriva das decisões das matrizes das grandes corporações transnacionais, responsáveis pelo reposicionamento mais contido das filiais em operação no Brasil.
Frente a isso, o governo brasileiro tem procurado atuar imediata e convergentemente. As respostas governamentais se diferenciam em dois níveis principais. O primeiro, que atende mais a emergência dos efeitos da crise, compreendem, em geral, medidas tradicionais de natureza anticíclica, como a flexibilização das políticas fiscais e monetárias (ampliação da liquidez, queda nos juros, subsídios e isenções tributárias), ajuda a setores econômicos em dificuldades, apoio às famílias pobres e a trabalhadores ocupados (ampliação do programa Bolsa Família e elevação do salário mínimo), entre outras.
O segundo nível de medidas implementadas pelo governo tem caráter inovador, comprometido com o médio e longo prazos da economia nacional. Tratam-se ações convergentes com o propósito maior de sustentação do atual ciclo de investimentos que acompanha o Brasil nos últimos 19 trimestres. Para isso, observa-se até agora a priorização dos recursos orçamentários para ações do Plano de Aceleração do Crescimento e reforço financeiro ao Banco de Desenvolvimento Econômico e Social para suprir dificuldades de capital de giro de empresas e, fundamentalmente, fortalecer os investimentos em energia e infra-estrutura, bem como o apoio à reestruturação patrimonial dos grandes grupos econômicos privados em operação no Brasil.
Nesse aspecto, o país parece explicitar, mais uma vez, a sua vocação para superar grandes dificuldades. Diante da grande Depressão de 1929, por exemplo, o Brasil aproveitou a oportunidade para transitar de sua antiga estrutura produtiva primária-exportadora para o inovador projeto de industrialização nacional somente interrompido meio século depois pela crise da dívida externa (1981-83). Em síntese, o país não somente foi um dos primeiros a sair da profunda crise econômica internacional, como se colocou de forma superior no cenário pós-depressão. Entre as décadas de 1930 e 1980, por exemplo, a produção nacional foi multiplicada por 18,2 vezes (6,0% ao ano), permitindo construir uma nova estrutura produtiva urbano-industrial, acoplada ao desenvolvimento do sistema nacional de proteção social.
As antigas e quase inexistentes ações de proteção social por categoria profissional foram fortemente ampliadas a partir da década de 1930, inicialmente para os segmentos urbanos. Nos anos 60 foi vez da população rural passar a ser beneficiada por políticas de assistência médica e aposentadoria e, no final da década de 1980 por força da Constituição Federal de 1988, ocorreu a unificação geral do sistema nacional de assistência e previdência social.
Da mesma forma, o Brasil conseguiu se desprender da grave crise econômica internacional dos anos 70, quando o sistema monetário de Bretton Woods se desorganizou (fim da conversibilidade do dólar ao ouro, elevação do preço do petróleo, recessão, entre outros). Naquela oportunidade, o país lançou mão do seu segundo Plano Nacional de Desenvolvimento que permitiu complementar a sua base produtiva e gerar novos setores de exportação, bem como pôs em funcionamento o Proálcool, responsável pela inovação tecnológica que alterou a matriz energética. Também fez parte das ações anti-crise dos anos 70, o alívio na política de arrocho salarial e a introdução do mecanismo de garantia de renda à parcela da população mais vulnerável (Renda Mensal Vitalícia).
Na crise global dos dias de hoje, o Brasil responde positivamente. Os avanços econômicos e sociais obtidos anteriormente à crise atual indicam que o país encontra-se melhor preparado para enfrentar o grave quadro internacional. A despeito das dificuldades, o país tem condições – em plena crise – de reaparelhar o seu sistema financeiro para responder às exigências de reorganização do setor produtivo. Ou seja, utilizar as políticas públicas para ampliar e aprofundar o funcionamento do mercado, concebendo maiores oportunidades aos micro e pequenos empreendedores, bem como aos diversos setores produtivos emergentes.
Tudo isso, é claro, sem abandonar o sentido geral da repartição da renda, necessário para fazer valer o potencial do seu mercado interno, avançando nas reformas redistributivas que possam contribuir para o avanço da mobilidade social e aprofundamento do consumo de massa. Da mesma forma, cabe ressaltar o horizonte do comércio externo que nestes momentos de profundas turbulências permite tornar mais competitivo variados segmentos produtivos (micro e pequenos negócios), contribuindo para diversificar e elevar o valor agregado da pauta de exportação.
Pelos exemplos do passado, sabe-se que o desafio imposto pela crise econômica internacional pode ser transformado em oportunidade a ser aproveitada pelo conjunto dos brasileiros. E é justamente isso que se percebe preliminarmente em curso. O estabelecimento de um grande entendimento nacional poderia fazer mais rápido avançar tanto a necessária reorganização produtiva e financeira como o sentido geral da redistribuição da renda e riqueza.
4. Refundação do Estado
A crise mundial torna mais evidente o conjunto de equívocos que resulta da recente experiência neoliberal. Os países que mais longe avançaram o princípio da auto-regulação das forças de mercado e da desregulamentação do Estado encontram-se entre os mais frágeis e vulneráveis no contexto atual de turbulências e incertezas globais. Fácil imaginar como a economia brasileira estaria débil e a deriva se a trajetória privatista e de inserção externa subordinada aos interesses dos países ricos dos anos 90 não tivesse sido interrompida. Sem bancos públicos (BB, CEF, BNB e BNDES) e empresas estatais como Petrobrás e Eletrobrás, por exemplo, o Brasil não teria a mínima condição de responder imediata e positivamente à crise do crédito e do investimento privado.
Países que se desfizeram de bancos e empresas públicas, como o caso argentino, convivem hoje com maiores dificuldades para enfrentar afirmativamente a crise. No Brasil, a fase da privatização implicou reduzir a participação dos bancos públicos de mais de 50% para quase 1/3 da disponibilidade total do crédito doméstico, enquanto a transferência para o setor privado de empresas estatais respondeu por 15% do Produto Interno Bruto e pela destruição de mais de 500 mil postos de trabalho. Em valor, o processo de privatização brasileiro somente conseguiu ser inferior à experiência soviética, com parte significativa do setor produtivo estatal sendo capturado pelo capital estrangeiro.
Da mesma forma, a opção política pela diversificação comercial permite ao Brasil o seu reposicionamento no mundo com soberania, bem diferente das economias com exportações concentradas em poucos países, como parece indicar o México, com mais de 4/5 do comércio externo somente com os Estados Unidos. A recessão nos países ricos contamina mais facilmente aquelas nações dependentes de suas trocas externas. Para o Brasil, o peso dos países ricos no comércio externo encontra-se pouco acima de 40%, quando nos anos 90 era de mais de 2/3 do total. Estas constatações sobre o Brasil em relação a outras nações descrevem resumidamente uma situação melhor, porém ainda insuficiente ainda para indicar a necessária construção de um novo caminho a ser percorrido. Isso porque se tem presente que o neoliberalismo cometeu o seu haraquiri, não tendo sido superado – até o momento – pelo estabelecimento de projeto econômico e social alternativo. As respostas à crise do capital globalizado podem até ser transformadas numa etapa de desenvolvimento do novo padrão civilizatório, mas ainda se encontram distante disso.
De maneira geral, percebe-se que o Estado reaparece como elemento central do enfrentamento à turbulência mundial, embora ainda desfalcado da perspectiva transformadora de oportunidades e desafios do século 21. A reprodução dos tradicionais traços do padrão de Estado dos últimos cem anos indica tão somente o aprofundamento da organização por funções setoriais (caixinhas), cada vez mais ineficiente, quando não concorrente entre si e à margem do potencial das forças do mercado. Adiciona-se a isso o acúmulo das variadas ondas de “choques de gestão” internalizadas pela administração do Estado que produziram tanto a regressão da capacidade e sistematicidade de grande parte das políticas como o esvaziamento da própria função pública.
Por um lado, o corte do funcionalismo e de sua remuneração procedido pela internalização de métodos privados acirrou a competição na função pública e fortaleceu a autonomização setorializada e não convergente das políticas adotadas pelo conjunto do governo. Como na lógica privada, o todo deu lugar a partes, trazendo consigo a prevalência da visão e ação de curto prazismo no interior da função pública. O planejamento e o compromisso de longo prazo foram substituídos por uma sucessão irracional de programas e projetos pilotos, que alterados constantemente pelas autoridades de plantão fizeram com que o Estado fosse abandonando o sentido estruturador do padrão civilizatório fora da emergência do curtíssimo prazo.
Por outro lado, a estabilidade da esfera pública foi sendo contaminada pela lógica da eventualidade, amplamente acolhida pelo curso da terceirização das funções e da contratação de mão-de-obra. Assim, o Estado foi se comprometendo com repasses crescentes de recursos a instituições – algumas nem sempre decentes (fundações, ONG’s e cooperativas) – portadoras de flexibilidade para o exercício dos desvios da função pública.
Assim, orçamentos e licitações tornaram-se, muitas vezes, o espaço privilegiado para manifestação da força dos interesses privados, negociatas e maior corrupção. Em síntese, a emergência da corrosão do caráter da função pública, posto que o tradicional funcionário de Estado, demarcado pelo profissionalismo e meritocracia, passou a dar lugar – em algumas vezes – ao comissionado e ao corpo estranho dos terceirizados.
O Estado precisa ser refundado. Ele deve ser o meio necessário para o desenvolvimento do padrão civilizatório contemporâneo em conformidade com as favoráveis possibilidades do século 21. A sociedade pós-industrial, com ganhos espetaculares de produtividade imaterial e expectativa da vida humana ao redor dos 100 anos de idade, abre uma inédita e superior perspectiva civilizatória: educação para a vida toda, ingresso no mercado de trabalho depois de 25 anos de idade, trabalho menos dependente da sobrevivência e mais associado à utilidade e criatividade sócio-coletiva.
Para além das exigências do século 20, que conformaram tanto o Novo Estado Industrial (J. Kenneth Galbraith) como o Bem Estar Social (K. Gunnar Myrdal), encontra-se em curso novos e complexos desafios que exigem profundas reformas estatais. Três grandes eixos estruturadores do novo Estado precisam ser perseguidos com clareza e efetividade.
O primeiro diz respeito à constituição de novas institucionalidades na relação do Estado com o mercado. Alavancada pela experiência neoliberal, o mercado enfraqueceu as bases de promoção da competição, cada vez mais sufocadas pelo predomínio da monopolização expresso pelos vícios privados das grandes corporações transnacionais. O esvaziamento da competição precisa ser rapidamente combatido com novas instituições portadoras de futuro, capazes de garantir a continuidade da inovação por meio da concorrência combinada com a cooperação entre empreendedores e da maior regulação das grandes corporações empresariais.
O segundo grande eixo estruturador do novo Estado deve resultar da revolução na propriedade que impulsione uma relação mais transparente, democrática e justa com toda a sociedade. Neste caso, a ampliação do fundo público se faz necessária para sustentar o padrão civilizatório do século 21, a partir da tributação sobre o excedente adicional gerado por novas fontes de riqueza, que por serem intangíveis escapam crescentemente das anacrônicas bases arrecadatórias vigentes a mais de 200 anos.
Por fim, o terceiro eixo reside na profunda transformação do padrão de gestão pública. Políticas cada vez mais matriciais e intersetoriais pressupõem a organização do Estado em torno do enfrentamento de problemas estruturais e conjunturais. Noutras palavras, a meritocracia e o profissionalismo para conduzir ações públicas articuladas para lidar com problemas estruturais e políticas governamentais descentralizadas e compartilhadas com a sociedade e mercado para enfrentar diversos e específicos problemas conjunturais. Urge fazer do Estado do futuro o experimentalismo do presente. Muito mais do que anunciar as dificuldades da crise global, cabe ressaltar as oportunidades que dela derivam como a realização de uma profunda reforma do Estado que viabilize o alcance das condições pós-crise para sustentação do novo desenvolvimento ambiental, econômico e social.
5. Revolução da propriedade
As conseqüências sociais decorrentes da presente crise difundem-se rapidamente, tendo o desemprego e a precarização dos postos de trabalho a maior centralidade na organização do bem estar humano. Sem trabalho, os indicadores sociais tendem a se degradar pronunciadamente. Na Depressão de 1929, por exemplo, quando o nível de ocupação atingiu patamares reduzidos jamais vistos, o enfrentamento do desemprego não se deu exclusivamente pela porta da geração de novos postos de trabalho.
Não há dúvidas que somente a retomada sustentada da economia terminou por abrir condições adequadas de elevação do nível de ocupação, mas isso se deu no longo prazo, a partir da superação das causas que haviam levado à grande crise dos anos 1930.
Por conta disso, parcela importante das ações de enfrentamento do desemprego ocorreu para além da demanda econômica de absorção de trabalhadores. Noutras palavras, a redução do desemprego transcorreu sobre a determinação da oferta de mão-de-obra, com intuito de reduzi-la em função da crescente ociosidade da força de trabalho. Assim, por exemplo, ganhou maior importância o conjunto de ações voltadas tanto para a postergação do ingresso como a saída do mercado de trabalho. Ao invés da entrada no mercado de trabalho a partir dos cinco ou seis anos de idade, conforme experiência anterior da sociedade agrária houve a postergação para os 15 anos, após passagem pelo ensino básico. Ou seja, a educação passou a antecipar qualquer experiência laboral, da mesma forma que depois da conclusão de um determinado tempo de trabalho regular (geralmente 30 anos para mulher ou 35 anos para o homem), foi definida a saída do mercado de trabalho para a inatividade financiada por fundos públicos. Nesses termos, a superação da crise do desemprego da década de 1930 implicou uma nova combinação da jornada de trabalho com o tempo de vida. Em síntese, a jornada do trabalho pela sobrevivência, que representava 4/5 do tempo de vida do ser humano antes da Depressão de 1920, passou para não mais do que 2/5 em função da postergação do ingresso e da antecipação da saída do mercado de trabalho. Na ausência de trabalho para todos foram sendo constituídas as condições políticas necessárias para a acomodação da oferta de mão-de-obra com garantia de renda à quantidade e qualidade da demanda econômica de trabalhadores.
Essa breve e sintética recuperação de algumas ações adotadas para fazer frente ao massivo desemprego de setenta anos atrás tem por objetivo contribuir com o debate atual sobre o desafio de enfrentar a nova onda de trabalhadores ociosos que a atual crise está gerando. Como os postos de trabalhos cortados pela força da crise econômica dificilmente serão recuperados no curto prazo, as respostas tradicionais se mostram insuficientes ao mesmo passo que as soluções neoliberais de corte de direitos, sem conseguir gerar vagas adicionais, levam à maior precarização das ocupações existentes. A oportunidade de implantação de uma agenda decente e inovadora de combate ao desemprego atualmente em expansão requer a ousadia de ações transformadoras da relação entre a jornada de trabalho pela sobrevivência e o tempo de vida.
Para uma sociedade cada vez mais focada no conhecimento, parece não haver razões para o ingresso no mercado de trabalho antes dos 25 anos de idade, somente após a conclusão do ensino superior. Isso não significaria, contudo, a possibilidade de experiência laboral voltada exclusivamente à aprendizagem teórica abstrata, mas a crescente experimentação prática, com maior aproximação possível do ensino aos requisitos da demanda econômica dos trabalhadores, por meio do estágio e períodos de labor por curtos períodos no ano, como nas férias educacionais.
Assim, questiona-se no Brasil, por exemplo, por que somente os filhos dos pobres estão condenados ao ingresso no mercado de trabalho tão cedo, o que implica, muitas vezes, o abandono da escola, quando não a combinação de brutais jornadas de atividades de 16 horas por dia (8 horas de trabalho, 2 a 4 horas de deslocamentos e 4 horas de freqüência escolar). A aprendizagem de qualidade torna-se muito distante nessas condições de reprodução humana. Os filhos dos ricos, por permanecerem mais tempo na escola, ingressam mais tardiamente e ocupam os principais postos de trabalho, com maior remuneração e status social, enquanto os filhos dos pobres somente disputam a base da pirâmide do mercado de trabalho, transformado num mecanismo de reprodução das desigualdades no país.
A condenação ao trabalho precoce somente pode ser ultrapassada mediante a substituição da renda do trabalho por uma garantia monetária ao estudo. Isso seria extremamente útil, por exemplo, ao universo de 500 mil estudantes de mais de 15 anos que se matriculam no ensino médio, mas não conseguem freqüência anual por decorrência de sua dependência à renda do trabalho. Da mesma forma, caberia também o avanço da alternativa de gradual redução da jornada de trabalho a partir do avanço do envelhecimento humano, bem como a instalação de programas de pré-aposentadorias que permitissem a passagem menos drástica da ocupação para a inatividade remunerada, sem mais o choque atual que representa o ingresso na aposentadoria. Talvez por isso, o Brasil registre 1/3 dos aposentados e pensionistas ainda ativos no mercado de trabalho, bem como forte concentração de trabalhadores de mais idade no exercício do duplo trabalho e horas extraordinárias.
Por fim, ademais do encaminhamento de ações de atenção à renda básica de cidadania, abre-se a oportunidade de implantação da política em emprego garantido de 12 horas semanais a todos entre 25 a 55 anos de idade. Na ausência de demanda econômica de trabalhadores, o fundo público deveria cobrir o emprego da mão-de-obra ociosa para atividades de qualificação e exercício laboral em atividades socialmente úteis, como, por exemplo, a urbanização das periferias dos centros metropolitanos, assistência técnica de micro e pequenos empreendimentos e serviços de atenção a inativos (idosos, doentes e portadores de deficiências).
Tudo isso depende de uma grande revolução na propriedade. O Brasil, que pouco avançou na democratização da propriedade segue mantendo apenas 6% de toda sua da população com posse dos meios de produção (Amorim, R et al Os proprietários no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009). As reformas urbana e tributária com sentido da justiça social permitiriam consagrar o avanço do Estado em novas bases democráticas e progressistas. A propriedade privada precisa transitar para a propriedade pública, tendo na tributação renovada o papel central. Isso porque os tributos, taxas e contribuições podem permitir a expansão do fundo público em consonância com os crescentes ganhos de produtividade imaterial: base do financiamento do novo padrão civilizatório.
*Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA).