Aloizio Mercadante: Raízes da crise
(Gordon Brown, primeiro-ministro inglês)
A atual crise envolveu o mundo em um manto de incertezas e insegurança. A permanência de graves desequilíbrios no sistema financeiro internacional, com o consequente bloqueio do crédito, e o processo, ainda inconcluso, de correção dos mercados de ativos imobiliários e financeiros, tornam sombrias as perspectivas de evolução da economia mundial. Reforça essa tendência a resistência dos setores conservadores, nos Estados Unidos, a uma intervenção estatal direcionada à reestruturação do sistema bancário e à coparticipação na sua gestão.
Frente a esse quadro, as decisões e compromissos adotados na recente reunião do G-20, de coordenação do esforço de recuperação da economia mundial e de estabelecimento de normas efetivas de fiscalização e transparência das operações do sistema financeiro global, são alentadores. Mas deixam intocada a percepção de que sair da crise e evitar a repetição de situações similares implicará muito mais do que isso. Implicará o equacionamento de outras questões relevantes, que envolvem um processo mais longo e complexo de transição para um novo padrão de organização e desenvolvimento da economia mundial.
Cito duas.
A primeira está relacionada com os mecanismos econômico-financeiros que viabilizaram o aumento do consumo das famílias norte-americanas nas últimas décadas, simultaneamente ao empobrecimento relativo da maior parte da população do país.
Os dados são um registro emblemático da lógica do mercado auto-regulado.
Entre 1976 e 2006, a economia norte-americana cresceu a um ritmo médio de 3% anuais. No mesmo período, aumentou em cerca de 2.350.000 o número de famílias abaixo da linha da pobreza e, com exceção dos 20% mais ricos, todos os demais segmentos da população diminuíram sua par ticipação na renda total. A renda média real dos 20% mais pobres aumentou, nesses 30 anos, apenas 2%, enquanto a dos 5% mais ricos cresceu 105%. Em resumo, aumentou a pobreza e a desigualdade social.
A expansão do consumo, acima do crescimento do PIB, foi sustentada, particularmente nos anos recentes, pelo crescente endividamento das famílias e pela valorização artificial dos ativos imobiliários e financeiros que constituíam a base da riqueza familiar. A relação entre o endividamento das famílias e o PIB, da ordem de 100% nos anos 80, saltou para 173%; e, entre 1976 e 2007, enquanto a renda nominal disponível aumentou em cerca de US$ 9,3 trilhões, a riqueza das famílias, também em termos nominais, saltou de US$ 6,1 trilhões para US$ 63,6 trilhões. Um festival de ilusionismo econômico.
A segunda questão se refere aos desdobramentos, no plano macroeconômico, desses fenômenos. Desde meados dos anos 80, e com maior intensidade a partir do início dos 90, os Estados Unidos, paralelamente ao deslocamento de sua base industrial para a China e ao aumento do intercâmbio comercial com aquele país, apresentam recorrentes e crescentes déficits nas suas transações correntes com o resto do mundo. A contrapartida desses déficits foi o espetacular crescimento da dívida pública norte-americana, que passa de US$ 1,8 trilhão em 1985 para US$ 10,5 trilhões em setembro passado, equivalente a 74% do PIB do país e a quase 20% do PIB mundial (estimado em US$ 55 trilhões).
O financiamento do consumo e do endividamento norte-americano pelo resto do mundo — em particular pela China, Japão e países produtores de petróleo — alimentou durante alguns anos o crescimento dos Estados Unidos e da economia mundial, criando uma falsa impressão de prosperidade.
Mas, como a atual crise evidencia, desequilíbrios dessa magnitude são insustentáveis no longo prazo.
Sem o equacionamento dos problemas estruturais que estão na origem desses desajustes, o esforço coordenado de enfrentamento da crise a que se propõe o G-20, embora relevante, não será suficiente para apoiar a construção de um ordenamento mundial mais estável e menos assimétrico.
site do senador Aloizio Mercandante, em 06/04/2009