O direito à água, por Marina Silva
No domingo passado, Dia Mundial da Água, terminou em Istambul o encontro do Fórum Mundial da Água, com representantes de 150 países. Mais uma vez aflorou – e permaneceu sem consenso – a polêmica sobre o direito à água ser considerado um direito humano.
Parece chocante a simples menção a não considerar como tal uma condição inescapável de sobrevivência física dos seres humanos. No entanto, essa é uma discussão que se arrasta, com grandes implicações políticas, econômicas e diplomáticas. A Declaração Ministerial de Istambul chegou a reconhecer, no máximo, que o “acesso à água potável e ao saneamento é uma necessidade humana básica”. Choveu no molhado, dizendo o óbvio que sequer precisaria ser dito.
E por que isso acontece? Em primeiro lugar, devemos lembrar que se está falando de um recurso natural em situação crítica, cuja escassez ou indisponibilidade ameaça vastos territórios do Planeta. No caminho da água até cada ser humano ou atividade produtiva, está um complexo ordenamento jurídico, nos âmbitos internacional e nacionais, permeado por relações econômicas desiguais entre países ricos e pobres.
Dificilmente alguém discordaria, no plano dos princípios, de que dispor de água suficiente e de boa qualidade é um direito humano essencial. Na prática, esse, como outros direitos básicos, é violado cotidianamente, afetando a vida de bilhões de pessoas. Ora pela falta de água, ora pela dificuldade tecnológica de torná-la disponível ou devido ao estado alarmante de poluição e degradação a que é submetida.
A questão é como viabilizar esse direito. Será, de imediato, transformá-lo num direito “no papel”, passível de gerar obrigações e sanções? Como ficariam países africanos sem as mínimas condições de garantir água às suas populações? Receberiam sanções nos fóruns internacionais?
O mais provável é que passassem a ser objeto de custosos “pacotes” tecnológicos vindos dos países ricos, tornando-se fregueses obrigatórios no mercado da água, como o são de armamento no mercado da guerra.
Para que a água se torne um direito humano efetivo, talvez o caminho deva ser menos declaratório e mais de mudança de processo nas negociações internacionais e nas políticas nacionais. O primeiro ponto dessa mudança é de total simplicidade. A cada dia é menos pertinente falar de direito universal a um recurso tão violenta e persistentemente atacado em sua integridade, das mais diversas formas. A água se esvai pelo uso abusivo e irresponsável, pela poluição, pelo assoreamento, pela destruição de nascentes e de outras áreas sensíveis, essenciais à sua reprodução. Assim, conservar os recursos hídricos – do nível local ao global – é o primeiro passo para a garantia do direito.
Em segundo lugar, a água não pode ser considerada uma propriedade particular ou apenas um insumo, mas, sim, um bem estratégico de usos múltiplos públicos e particulares, regulados pelo Estado. Aliás, nas duas últimas décadas o Brasil atingiu um excelente patamar nesse sentido, por meio de um marco legal que modernizou a gestão da água. Falta-nos, contudo, uma política integrada de implementação, na qual todos os usos dialoguem e interajam.
A baixa implementação de políticas é outro fator que inviabiliza o direito, porque estabelece um ambiente de terra de ninguém na disputa pelo recurso, fazendo com que os segmentos mais fragilizados sejam seriamente prejudicados.
E, finalmente, para que o direito à água seja equânime para toda a humanidade, a base tem que ser profundamente ética, mais do que um estatuto formal. A cooperação entre os povos, na forma de transferência de tecnologia e recursos para o desenvolvimento endógeno de soluções – e não pacotes prontos superdimensionados e incompatíveis com as realidades locais – materializará o direito, criando um ciclo virtuoso, ao combinar cooperação e obrigação.
Hoje, há vários atalhos diversionistas quando se fala no direito à água. Entre eles, a deturpação do mérito da questão, transformando-a em mera janela de oportunidade para novos negócios ou de disputa de espaço geopolítico. O melhor remédio para neutralizar tais desvios é intensificar um processo transparente de debates, no âmbito da ONU, para se chegar à definição real desse direito. Ele só existirá quando forem estabelecidas as condições e regras, tanto da cooperação quanto das obrigações geradas para cada país e para todos os usuários da água, que deveriam ser seus mais interessados protetores.
Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente. Integra o Conselho Curador da FPA.
Publicado no site da Liderança do PT no Senado em 24/3/2009