Eu tive um sonho.

Nele, vi o Maracanã lotado, a dançar e chacoalhar numa festa como só o Mário Filho de Nelson Rodrigues é capaz de fazer, todas as tribos e cores representadas, arquibancadas lotadas, embaladas pelas baterias da Mangueira, Portela e Salgueiro, flamenguistas e vascaínos, tricolores e botafoguenses cantando ‘queremos votar para Presidente’.

No gol que decretou a vitória do Santos, o Lucas Lima correu para o círculo central, parou e levantou a camisa para mostrar a que usava por baixo, onde se lia ‘Democracia’. Foi imediatamente cumprimentado pelo árbitro. Nada de amarelo (só o das Diretas). Nem vermelho (também das Diretas). Até os atletas da equipe adversária aplaudiram.

Na preleção feita no vestiário antes da partida do São Paulo, discurso motivacional, pedindo empenho e concentração da equipe, destacando a importância de o coletivo sempre prevalecer sobre o individual, fazendo questão de reforçar que os problemas da democracia só podem ser resolvidos com mais democracia, o Rogério Ceni lembrou emocionado das falas e dos chamados do Osmar Santos na Praça da Sé, em 1984. ‘Diretas quando, São Paulo? Já!’.

No intervalo do jogo do Corinthians, Itaquerão com recorde de público, o telão exibiu flashes do Casagrande e do Vladimir dançando com as camisas amarelas no palco abarrotado, Rita Lee junto com eles, além de repetir várias vezes o discurso do doutor Sócrates dizendo ‘se a emenda for aprovada, eu não vou embora do nosso país’. Arquibancadas, camarotes e organizadas foram à loucura com a imagem do Magrão. Cantaram em uníssono. ‘Olê, olê, olê, olá. Diretas já’.

Na saída de campo, o Fernando Prass furou o bloqueio das burocracias e dos assessores, chamou todos os repórteres e deu ali mesmo a coletiva. ‘O futebol brasileiro está dizendo que não aceita que um Congresso mergulhado em denúncias queira escolher quem vai nos governar. O povo tem o direito de decidir. Queremos Diretas por direitos, para suspender imediatamente as reformas da previdência e trabalhista’.

No Independência (naquela tarde chamado de Arena Democrática), depois de acabar com o jogo e de marcar quatro gols, um deles de letra, o Robinho foi convidado a pedir música no Fantástico. Fez careta para a câmera, deu mais sete pedaladas e mandou de sem-pulo: ‘Meninos mimados não podem reger a nação, do Criolo’. Thiago Neves, também autor de três tentos numa peleja eletrizante que terminou empatada, registrou o seu pedido. ‘Podres poderes, Caetano Veloso’.

No domingo do meu sonho, nos terceiros tempos de todas as rádios, mesas-redondas noturnas, Arenas, Linhas de Passe, Bate-Bolas e A Última Palavra, lances polêmicos e desavenças sobre arbitragem eletrônica foram colocados em segundo plano. Jornalistas e ex-boleiros debateram a soberania popular, os fundamentos da democracia e a máxima que diz que todo poder emana do povo. É o que diz a Constituição, reforçaram. Sem gritarias nem xingamentos. Em todos os programas, o tom da conversa era o mesmo: Diretas Já.

Em seus canais oficiais nas redes sociais, as diretorias de Atlético-GO, Avaí, Coritiba, Ponte Preta e Vitória anunciaram a criação da Frente Boleira em Defesa da Democracia.

No clássico do Nordeste, a torcida do Bahia abriu uma faixa que cravava em letras garrafais ‘Bora Baêa minha porreta, pelas Diretas Já’.  A do Sport respondeu com um bandeirão vermelho e preto que ocupou toda a arquibancada, graúna do Henfil estampada no lugar do tradicional leão mascote – ‘Tô vendo uma esperança’. Quando o árbitro apitou o final da peleja, bandeira e faixa foram levadas para o gramado. Carregadas por jogadores, jornalistas, árbitros e assistentes, deram a volta olímpica.

No confronto contra o Atlético Paranaense, todos os jogadores do Grêmio, e não só o capitão, atuaram com uma faixa especial nos braços, as cores do arco-íris e a palavra de ordem ‘o povo decide’. Nas camisas dos boleiros do Furacão, logo abaixo dos números, os nomes dos atletas foram substituídos por um singelo e poderoso ‘nada a temer. Quero votar’.

Na Arena Condá, refletores apagados, lanternas dos celulares a piscar, camisas brancas e verdes em destaque, depois de fazer um minuto de silêncio, a torcida da Chape passou a entoar um jogral cuidadosamente ensaiado, de uma boniteza única. A metade esquerda do estádio gritava ‘Diretas Já’; a metade direita respondia com ‘O povo quer votar’. Foi assim por quase cinco minutos, alternadamente, sem parar. A plenos pulmões, todos juntos, os vinte mil torcedores passaram então a cantar – e tiveram a companhia do coral dos jogadores em campo: ‘amanhã vai ser maior, amanhã vai ser maior’.

Acordei quando conversava animadamente com o Osmar Santos, na mesa de um bar, e ele me perguntava: ‘quem tem medo das Diretas, meu garotinho?’.

Publicado originalmente em Chuteira F.C./Carta Capital

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