Pessoas desumanizadas e entidades fantasmáticas antropomorfizadas: este foi, e ainda, é o clima mental regressivo da globalização proposta no alvorecer do novo milênio. Embora díspare em seus objetivos e alvos de interesse, o altermundialismo conseguiu claramente impor uma agenda (ainda que precária) a governos, instituições multinacionais e grandes empresas. Com ele, a chamada “opinião pública mundial” passou a ser também um ator global. A análise é de Francisco Carlos Teixeira.

A Recusa ao Império:
No imediato pós-Guerra Fria. Desde 1991, quando o então Presidente George Bush (sênior) declarou – no day after da vitória na primeira Guerra do Golfo (1990-1991) – a emergência de uma nova ordem mundial colocou-se a questão da natureza deste mundo surgido de mais uma vitória.

As mazelas da Guerra Fria (1947-1991) eram por demais evidentes. Em primeiro lugar o risco de aniquilação termonuclear total, expressa na condição MAD/Mútua Destruição Assegurada. Era o equilíbrio do terror. Na periferia do sistema de poder mantido pelas então superpotências – EUA e URSS – explodiam guerras violentas e cruéis, como na Coréia, nos anos ‘50; no Vietnã, nos anos ’60 e em Angola nos anos ’70. O corolário da “Bipolaridade” era o tremendo antagonismo entre os dois sistemas que se queriam validos universalmente, capitalismo e comunismo.

Os Estados Unidos emergiam do conflito com a URSS como o único poder “global” – palavra que, saída de um comercial de cartão de crédito veiculado em mídia mundial, tornar-se-ia a denominação genérica da nova ordem mundial.

Naquela ocasião a maior parte da mídia, e também vários acadêmicos, apressam-se em declarar os Estados Unidos o último “império” do planeta. Não no sentido da última ocorrência na história, mas, como significando a própria realização da história. Nada haveria depois da hegemonia total, ou global, da América. É neste sentido que a noção de fim da história de Francis Fukuyama – exagerada pelo autor, mas muito mais pelos comentaristas – é concebida como a marca registrada da nossa época. A vitória final dos Estados Unidos seria a vitoria dos regimes liberais representativos (apenas aparentemente democráticos) e da economia de mercado. As idéias “velhas” – e graças ao mega-sucesso de Stevie Spielberg, denominadas desde logo de “jurássicas”- sobre a regulação econômica, sobre o Estado de Bem-Social e de controles da sociedade sobre os agentes econômicos, foram consideradas simplesmente insuportáveis.

A vitória destrutiva do liberalismo
A destruição de barreiras e entraves ao livre fluxo de capitais e a demolição sistemática dos anteparos sociais que deveriam proteger grupos, classes e minorias menos dotadas eram as únicas metas possíveis de qualquer política econômica. Somente nos anos imediatos ao “boom”de 1870, ou os “Anos Loucos” dos ’20 ( do século passado ) podem ser comparados com a apologia aos méritos da “mão invisível” como gerente geral do capitalismo.

Logo após as eleições de Margareth Thatcher e de Ronald Reagan (1979/1980 ) pareceria ao observador cuidadoso que os diversos matizes do socialismo e, mesmo, do keynesianismo regulador, estavam definitivamente condenados à lata de lixo da história. Ao mesmo tempo, embora poucos se dessem conta disso naquele momento, o próprio pensamento econômico e social no Ocidente entrava em decadência. Os grandes debates econômicos foram substituídos pela mágica da micro-economia, como os operadores do mercado substituindo os pensadores.

Por toda a parte, mas especialmente na mídia globalizada, surgiam “intérpretes” do chamado “mercado”. Este era transformado em uma entidade antropomórfica, dotado de sentimentos e, mesmo, de uma psicologia própria. Assim, conforme as grandes redes de televisão, o “mercado” variava de “otimista”, para “pessimista”, ou mesmo “nervoso”. Num exemplar fenômeno de transferência na mesma proporção em que os indivíduos eram incorporados na nova ordem como “coisa”, mera mercadoria, o mercado assumia as prerrogativas típicas da pessoa humana. Os livros de auto-ajuda, uma espécie de evangelho sacrílego do sucesso pessoal, ensinavam e impunham a idéia de um indivíduo padrão, sempre positivo, em eterna prontidão, inteiramente despido de qualquer nuance de subjetividade. O “mercado”, bem ao contrário, tornava-se cada vez mais sensível, subjetivo, idiossincrático.

Pessoas desumanizadas e entidades fantasmáticas antropomorfizadas: este foi, e ainda, é o clima mental regressivo da globalização proposta no alvorecer do novo milênio.

Resistência e Inovação nos Movimentos Sociais
O desmonte desta burocracia pode ser naquele momento, popular em virtude do seu papel espoliador das próprias massas populares que deveria promover e assistir. Contudo, tal consenso em torno de um Estado dito “mínimo” acabou por revelar, com rapidez, sua face perversa. Junto com as grandes empresas estatais – ineficientes e oligárquicas – também eram desmontados sistemas de educação, de saúde, de transporte ou de construção de moradias. Em alguns países radicalmente pobres, até a água era privatizada, como no caso da Bolívia. Na maioria das vezes, os serviços, sempre caros, não correspondiam minimamente às necessidades da maioria da população.

Ao mesmo tempo em que a “velha” Ordem ruía, em alguns países, em especial na América do Sul, surgiam novos movimentos sociais altamente reivindicatórios, muitos radicalizados, revelando que o fim da história havia sido anunciado prematuramente. Grupos sociais secularmente marginalizados, espoliados em seus direitos, tratados com arrogância e crueldade, aproveitaram-se da ordem liberal e criaram no seu interior tensões que ela mesma não estava preparada e não podia resolver.

Arranjos oligárquicos de décadas, como na Venezuela, Bolívia, Equador, ruíam deixando para trás uma elite pervertida e atônita. Regimes cruéis como o apartheid na África do Sul ou a ditadura de Pinochet no Chile foram substituídos por novos arranjos, onde os grupos subalternos passaram a desempenhar um papel central.

A nova ordem mundial proclamada na débâcle do socialismo soviético não se quadrava nos moldes do consenso ditado em Washington. Surgiam sinais inquietantes de contestação ao império global dos Estados Unidos.

Existe Alternativa
Da mesma forma, no interior das sociedades avançadas, na Europa e nos Estados Unidos (e por toda parte nos países onde uma florescente classe média urbana impunha-se no novo cenário social) surgia uma ativa crítica ao excessivo materialismo e mercantilismo da chamada Nova Ordem Mundial. Isso se dava através ora, a emergência de novas igrejas; de cultos milenaristas e salvacionistas de caráter regressivo; e de diversos e fundamentalismos.

Grandes vagas de movimentos sociais de protesto contra a destruição da natureza, da vida selvagem; de proteção às crianças ou outras minorias não atendidas, também atraiam a atenção e moldavam-se como alternativas a Ordem que emergira do fim da Guerra Fria.

O mega-movimento organizado em tono do chamado Fórum Social Mundial (inicialmente na cidade de Porto Alegre, depois em várias capitais mundiais ) erguia seu lema ( “Outro Mundo é Possível”) como um ímã aglutinador do que seria chamado de altermundialismo, no final dos anos ’90 e começo do novo milênio. Embora díspare em seus objetivos e alvos de interesse, algumas vezes até mesmo caótico posto que recusava a qualquer instituição, partido o governo um papel dirigente -, o altermundialismo conseguiu claramente impor uma agenda (ainda que precária) a governos, instituições multinacionais e grandes empresas. As noções de “desenvolvimento sustentável”, as chamadas “Metas do Milênio”, o Protocolo de Kyoto, os tratados de banimento das minas terrestres, do mercenariato de crianças, a criação de vários santuários naturais e a adoção pela ONU de uma agenda de combate ao racismo, ao sexismo machista e de debate da homofobia são resultantes em grande parte da agitação do movimento altermundialista.

Em alguns momentos, em Seatlle (1999) ou Genova (2001), as reuniões de cúpula do chamado G-7 (depois, G-8) foram alvo de manifestações gigantescas de protesto dos movimentos alternativos em busca de “um outro mundo”, fazendo com que a chamada “opinião pública mundial” passa-se a ser, também ela, um ator global.

Eis aí, no âmbito da crise mundial, o papel do FSM na história recente dos movimentos sociais.

* Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Publicado originalmente na Agência Carta Maior, em 24/01/2009


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