“Não temos nada a perder, exceto tudo.” Albert Camus

2009 será um ano decisivo. A cri­se econômica mundial colocou o planeta numa encruzilhada histórica que terá de ser enfrentada impreterivelmente neste ano. De­cisões cruciais terão de ser tomadas para superar a crise e construir nova regulação econômica internacional e ordem mundial menos assimétrica. Com efeito, recessões não são fenôme­nos naturais aos quais temos de nos adaptar passivamente. A depender das políticas adotadas, a recessão poderá ser menos profunda e duradoura, con­duzir a ordem internacional mais equi­librada e servir de trampolim para in­serção exitosa de países emergentes no cenário mundial. Em qualquer caso, a omissão ou a repetição do fracassado fundamentalismo de mercado não se constituem em alternativa viável.

A História nos dá exemplos. Na crise de 1929, os EUA não tomaram as deci­sões que poderiam tê-Ia amenizado e abreviado. Hoover insistiu numa politica conservadora de austeridade no plano interno, e, no plano externo, quadrupli­cou as tarifas de importação de 3.200 produtos. Os demais países, também imersos na impotência do paradigma conservador, retaliaram, o que fez com que o co­mércio mundial caísse a um terço do seu volume. A combinação da falta de incentivos adequados pa­ra manter as dinâmicas econômicas internas com a brutal redução do comércio mundial aprofundou a depressão e a fez alastrar-se pelo mundo. O planeta desagregou-se economicamente e as nações suportaram amargo desem­prego e recessão duradoura.

Mas a desagregação não foi apenas econômica. Vinte anos antes, o Tratado de Versailles já havia estabelecido o desequilíbrio geoestratégico que dificul­tou resposta global à crise. Na Alema­nha, o ressentimento histórico, soma­do à crise econômica e à hiperinflação, permitiu a ascensão ao poder de Hitler, obscuro cabo do Exército que, em 1933, obteve grande vota­ção. A Europa, desunida, sucumbiu ao nacionalis­mo belicista e ao prote­cionismo. O que se viu foi a adição trágica de desa­gregação econômica com desarticulação política, que acabou levando ao desastre da Segunda Guerra Mundial.

Em contraste, o período que se seguiu à Segunda Guerra foi de coordenação de esforços direcionados à construção de ordem mundial equili­brada e economia internacional regula­da A desregulamentação financeira foi substituída por Bretton Woods e suas instituições multilaterais, FMI e Banco Mundial, que ditaram as bases de parcial coordenação financeira mundial, ainda que centrada nos interesses dos EUA No lugar da iniqüidade do Tratado de Versailles, surgiu o generoso Plano Marshall, que reconstruiu a economia européia A Europa investiu na coopera­ção e implantou o processo de integra­ção da União Européia O globo uniu-se, mesmo que precariamente, na ONU. Im­plantou-se o Welfare State. Nos trinta anos seguintes, esse mundo capitalista mais regulado e civilizado conheceu o que Hobsbawn denominou de sua “era de ouro”.

As raízes profundas da crise atual residem no abandono desse modelo econômico e político do pós-guerra. A intensa desregulamentação econô­mica verificada nos últimos 20 anos, especialmente no âmbito financeiro, conduziu à gigantesca bolha especu­lativa, cujo estouro precipitou a re­cessão mundial. No plano geoestraté­gico, o unilateralismo exacerbou ten­sões em regiões do planeta, enfraque­ceu o sistema de segurança coletiva da ONU e limitou as possibilidades de um esforço coordenado de regulação econômica e politica para disciplinar a globalização assimétrica. O mundo atual é mais parecido com o mundo das décadas de 20 e 30 do século pas­sado, do que com o mundo que surgiu a partir de 1946.

A crise, entretanto, propicia oportu­nidade para refundar a ordem interna­cional em bases mais modernas e sóli­das. A encruzilhada histórica por ela criada poderá nos levar a um novo de­sastre econômico e geopolítico ou a uma nova ordem mundial de prosperi­dade regulada e distribuída e de efetivo multilateralismo. Isso dependerá das decisões que a comunidade internacio­nal for capaz de tomar, de forma coor­denada. Serão difíceis, talvez dolorosas. Mas terão de ser feitas. Afinal, agora já não temos nada a perder, exceto tudo.

Aloizio Mercadante é senador (PT-SP).

Publicado no jornal O Globo em 4/01/2009