Compreender não significa negar o ultrajante, subtrair o inaudito do que tem precedentes, ou explicar fenômenos por meio de analogias e generalizações tais que se deixa de sentir o impacto da realidade e o choque experiência. Significa antes examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós – sem negar sua existência nem vergar humildemente ao seu peso, como se tudo o que de fato ocorreu não pudesse ter acontecido de outra forma. Compreender significa, em suma, encarar a realidade, espontânea e atentamente, e resistir a ela – qualquer que seja, venha a ser ou possa ter sido” (Hannah Arendt, in “As Origens do Totalitarismo”).

A democracia brasileira deve a si mesma esse exercício de “compreender” a que se refere Hannah Arendt, como condição para consolidar o país como nação civilizada. E incorporar os anos de treva, com as perseguições, a brutalidade, a delação, o medo, a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos, o exílio, o rosário de horrores perpetrados pelo estado ditatorial à exata dimensão histórica que lhe cabe: uma realidade incontestável e irrecusável que deitará sua sombra sobre a face futura do Brasil, até que seja resgatada.

Trinta anos depois dos fatos registrados pelo espanhol Jorge Semprún, em a “Grande Viagem” onde denuncia a violência, a deportação nos comboios ferroviários da França para a Alemanha e o encarceramento no Campo de Concentração de Buchenwald, escrevi dois poemas. “Os Esperados” com uma dedicatória: “Este poema é dedicado a todas as mães, filhas, esposas, órfãos que procuram, sem resposta, a vida ou a morte dos seus”. E o poema “Tempo Subterrâneo” uma percepção precária do que ocorria no Continente, em particular no Brasil e Argentina, num momento em que a noite descera absoluta, sobre essa atormentada geografia.

Concretamente o impulso para escrevê-los me veio de um diálogo, talvez o mais dramático que mantivera até ali. Meu interlocutor se chamava Mayer Kucinski, pai de Ana Rosa Kucinski, militante da ALN[1], desaparecida. A expressão ‘diálogo’ é pálida e insuficiente para dar conta daquele contato entre dois desconhecidos. Era uma tarde de sábado, dia de visita dos familiares aos presos políticos no Presídio Barro Branco, em 1975. Eu nunca vira antes o Sr. Mayer Kucinski. E não imagino quem, entre os quarenta e dois condenados que cumpriam pena ali, o conhecia. Ele foi buscando um, outro, um terceiro. Lembro-me que conversou longamente com Artur Scavone. Nunca tive diante de mim, como naquela tarde, o corpo devastado de um ancião sustentado por dois olhos – duas chamas – que eram a encarnação do desespero. Alguma razão, não atino qual, nos levou ao pátio onde nos sentamos.

Ele, num impulso trôpego, angustiado, irreprimível, com um sotaque da Europa do Leste que o deixava ainda mais frágil, como se a entonação da fala imprimisse em cada palavra a irremediável e definitiva condição de estrangeiro, me narrou seus dias e noites de tormento.

O relato torrencial não admitia interrupção. Eu mirava a intensa gesticulação de Mayer Kucinski e via o Sr. K, o personagem de Kafka em busca de respostas a percorrer os labirintos do “Processo” de contornos enganosos, sempre indefinidos, sempre remetendo para outra sala, outro espaço, outro desespero, outro desalento, outro infinito périplo…

Mayer Kucinski buscava Ana Rosa, sua filha. Por ela estava disposto a pagar o que não possuía – o que lhe era exigido por agentes do DOI-Codi – por um sinal de vida, uma notícia. Desejava, para seguir vivendo, ver o rosto de Ana Rosa. Sem atinar com a monstruosidade da tragédia que já despedaçara sua vida, varava meus olhos com o cravo dos seus e me pedia, patético – a mim, que àquela altura cumpria já o terceiro ano de prisão – uma palavra ainda que fosse a notícia de sua morte. Sem resultado.

Há uma hora em que todas as bocas se fecham.
Há uma hora em que a memória nega.
Há uma hora em que a noite desce
como a mordaça definitiva.

Aqui, nos trópicos, a tirania produziu tragédias semelhantes às do nazismo e as prolongou para atormentar o sono das gerações seguintes. Lá os responsáveis foram para Neuremberg, aqui para a aposentadoria. Lá, alguns escaparam do julgamento, mas houve um julgamento. Muitos mergulharam na clandestinidade e vieram reorganizar suas vidas aqui, na América do Sul. Klaus Barbie, na Bolívia, Mengelle, no Brasil, entre outros. Um foi capturado vivo, sob o nome de Klaus Altmann, salvo engano, em Cochabamba, trinta anos depois. O outro teve identificados os ossos pela UNICAMP, naquele mesmo período.

A Noite arrasta consigo sua esteira de assombros. Embora o Ato Institucional Nº 5 tenha sido revogado em janeiro de 1979, deixou instalado no corpo do Estado brasileiro, o ovo da serpente. Um ovo que lateja sob a cálida proteção das áreas de sombra desse mesmo Estado que foram mantidas intocadas, ou que se modificaram sutilmente para permanecer as mesmas, para lembrar Lampedusa, mesmo depois de uma experiência democrática que já dura vinte anos. A fonte da regeneração do Estado não se encontra nas mãos do próprio Estado, mas da sociedade. E nela, pela radical abolição da cultura autoritária de que somos herdeiros.


*Pedro Tierra é poeta. Cumpriu cinco anos de cárcere durante a vigência do AI – 5. É Conselheiro da Fundação Perseu Abramo.

Nota: [1] ALN – Ação Libertadora Nacional, organização armada de resistência à ditadura, liderada por Carlos Marighella.