“Enquanto o tribunal
estiver reunido, faça-se silêncio
pois a cidade terá de escutar as leis
que aqui e agora crio para persistirem
até o fim dos séculos; graças a elas
estes juízes poderão fazer justiça.”

A citação acima é parte do discurso de Athenas proferido na tragédia grega Eumênides, durante o julgamento de Orestes. Escrita por Équilo, a peça integra a trilogia da cidade de Argos.

No primeiro livro, Agamêmnon, o rei homônimo retorna à sua pátria, depois da longa e vitoriosa guerra de Tróia. Sem esperar, é assassinado pela esposa, Clitemnestra. Essa tem razões pertinentes uma vez que o marido sacrificara sua filha menor, Ifigênia, para alcançar e triunfar no combate. No volume seguinte, Coéferas, acompanhamos o complô dos irmãos Electra e Orestes para vingar a figura paterna. O plano alcança êxito e o rapaz tira a vida de sua própria mãe (Clitemnestra). No último texto, acompanhamos seu julgamento. De um lado, as Erínias (divindades malditas que perseguiam os parricidas e matricidas) exigem a condenação e dilaceramento de Orestes; por outro, Athenas defende as justificadas intenções do rapaz e sua decorrente absolvição.

Diversos estudiosos definem essa tragédia como o marco de surgimento do Direito. Vemos face a face duas formas antagônicas de enxergar a Justiça: uma do âmbito ancestral, das leis divinas e imperdoáveis, orquestrado pelas Fúrias (elas que habitam o submundo com toda perversidade possível e provém de um tempo mítico); outra da esfera intelectual, de direitos, deveres e ponderações, sintetizado em Athenas (ela que nasceu da perna de Zeus Todo-Poderoso e simboliza a sapiência e a integridade). Como era de se esperar, o embate acaba a favor de Athenas (afinal, haja costas quentes, não é mesmo?) e um novo código de leis é assimilado. A partir dali, o tribunal se torna soberano: define-se como um espaço de equidade e ponderações onde cada crime é analisado em suas particularidades, intuitos e premeditações. A votação e o olhar imparcial do juiz se tornam garantia da aplicação correta das leis.

Como pode se esperar a dramaturgia é belíssima, com construções refinadas e proposições estéticas únicas, refletindo bem o espírito filosófico da época. Celebramos, finalmente, o nascimento de uma Justiça igualitária e humanista, bem distante das condenações divinas.

Em contraposição à essa obra canônica do teatro universal, recupero o julgamento de Rafael Braga na semana passada. Desde 2013, Rafael tem sido vítima de um processo discriminatório que vê no encarceramento da juventude periférica a manutenção do status quo. Ele, primeiramente, foi condenado por portar dois frascos de produto de limpeza (que teoricamente seriam explosivos). Rafael não era envolvido em nenhum dos movimentos sociais que na época lutavam por melhoria dos transportes, mesmo assim foi criminalizado e, a partir de então, encarcerado. Na semana passada, o julgamento chegou ao fim com a decisão de que o rapaz cumprirá mais 11 anos de pena, em regime fechado.

É gritante a parcialidade e desproporção de tal resultado. Rafael é acusado por tráfico de drogas. Supostamente estaria portando 0,6g de maconha e 9g de cocaína, durante um enquadro da Polícia Militar. Além do réu, outras testemunhas reiteram que os tais entorpecentes foram plantados pelos próprios policiais a fim de incriminá-lo. Ao invés de apurar a veracidade da situação, a Justiça ateve-se somente ao depoimento dos homens-fardados, desconsiderando a conjuntura e os demais pontos de vistas. Resultado disso é a condenação absurda de Rafael.

Voltemos à Athenas e tentemos sobrepor as situações. Nessa “tragédia” brasileira, que nada tem divina, as Fúrias aparecem legitimadas, em belos ternos e com retórica auspiciosa, destroçando aquilo que não lhes apetece. É como se a punição viesse não do plano da lógica, do racional ou da argumentação, mas sim de uma esfera do irremediável, do já-escolhido. Afinal, como explicar que 9g de cocaína resultem em 11 anos de prisão, e um helicóptero com toneladas de pó seja apagado dos processos jurídicos? As medidas são diametralmente opostas e aquilo que deveria ser isento de parcialidade é regido pelas normas do poder monetário, da classe social e da cor da pele. A “balança” talvez fosse melhor representada por uma “maquininha de débito” empunhada de olhos vendados.

É importante lembrar que nos cânones gregos, os heróis já vinham imbuídos de sua sina e qualquer ação que pusessem em prática seria inútil frente a tormenta do mundo. No panorama nacional, aquilo que seria um plano dos “deuses” torna-se um plano “de Estado”: através da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa e do racismo instituído, os governantes parecem desenhar aos jovens periféricos um “destino” que se alterna entre o cárcere e a crueldade do genocídio. Não há toa, nesse mesmo mês de abril, relembramos o processo ainda em aberto de Luana Barbosa (morta por policiais militares, em Ribeirão Preto, há exatamente um ano) e o assassinato recente de Maria Eduarda.

Sendo assim, torna-se impossível desvincular os três episódios (que, na realidade, são centenas de casos silenciados), já que eles compõem um cenário comum de perseguição, uma cena recorrente de horror e barbárie instituídos, com protagonistas intocáveis (quase semideuses) que vêm na aniquilação do outro a própria opulência.

Se na Antiguidade, era tarefa do teatro causar terror e piedade; avisamos Ésquilo e seus parceiros que na emergência do hoje, os julgamentos geram antes indignação e revolta, necessitando das ruas para um desfecho diferente.

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