Lula e Allende: lições da história – Parte I
Ensaio de Marco Aurélio Garcia. Escrito dez anos depois da derrubada do governo da Unidade Popular, o texto já extraía da experiência a centralidade da rediscussão da relação entre democracia e socialismo.
Esta reflexão se fará ao longo de três pequenos ensaios. Este, o primeiro, identificará já uma resposta muito alta à primeira pergunta formulada pelo companheiro Marco Aurélio Garcia no ano de 1984. O segundo, examinará como cerca de 20 anos depois da queda de Allende, no inícios dos anos noventa, o debate sobre estratégia feito no interior do PT refletia um segundo patamar de respostas ao desafio de chegar ao governo central e não ser dele derrubado como foi Allende. O terceiro ensaio, enfim, aos olhos de hoje, isto é, ao fim do sexto ano dos mandatos de Lula, procurará teorizar o impasse da Unidade Popular à luz do que já aprendemos na experiência complexa de manter a identidade socialista e governar o Brasil.
Mapa das cisões
No seu ensaio “No fim da Alameda Chile, Passado & Presente”, publicado na revista Comunicação & Política do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos ( Editora Paz e Terra, março-junho de 1984), Marco Aurélio Garcia começa por fazer uma breve história da experiência, de seus antecedentes históricos, do ascenso de 1953 e da formação da frente PC-PS que quase levou Allende à vitória eleitoral já em 1958, do frustrado governo democrata-cristão de 1964 e, enfim, a vitória da Unidade Popular com Allende em 1970. Assim como Lula, Allende chegou ao governo central do país em sua quarta candidatura presidencial.
Apesar de eleito com um pouco mais de um terço dos votos (as eleições presidenciais no Chile não eram em dois turnos), o governo Allende toma posse com um programa radical de transformações: previa amplas nacionalizações na economia, de sentido anti-latifundiário, anti-imperialista e anti-monopolista, que levariam ao predomínio do setor estatal sobre os demais e propunha genericamente um processo de autotransformação institucional. Já no primeiro ano de governo, um processo de tomada de terras no sul do país, com presença de militantes do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionário), extravasava o ritmo de aplicação do programa de reforma agrária do governo da Unidade Popular.
No segundo ano de governo, já começa a se adensar a área de impasse do governo e as cisões no campo popular, inclusive no seio da própria Unidade Popular. Marco Aurélio Garcia, documentando-se em vasta bibliografia, identifica dois campos na esquerda: de um lado, a maioria da Unidade Popular acreditava que estava em curso um período de transição ao socialismo que se daria por dentro da legalidade constituída e que seria processualmente alcançada pela progressiva implantação do programa de governo; de outro, setores da esquerda Unidade Popular e o MIR diagnosticavam uma situação pré-revolucionária, formulando a noção de que já estavam se constituindo “embriões” de uma dualidade de poderes e que, então, o centro da estratégia deveria ser a construção de um novo poder popular. “Consolidar para avançar” ou “avançar para consolidar”, reformas radicais ou revolução imediata.
Consolidando-se como linhas de tensão que paralisavam o movimento e o governo, o segundo ano de governo Allende já assistiu a um amplo processo de retomada de iniciativas da direita, com apoio explícito dos EUA, configurando um quadro crescente de desestabilização econômica e social do país, que culminaria em setembro de 1973 com a derrubada do governo da Unidade Popular.
“A substância e as formas da transição”
A inteligência e o sentido transcendente do ensaio de Marco Aurélio Garcia estão em, distanciando-se do clima traumático em que o balanço da trágica experiência se fazia, na verdade replicando os termos de sua cisão, propor novos campos para o debate.
A proposta majoritária da Unidade Popular não esclarecia, segundo ele, suficientemente o que entendia por socialismo ( assimilando-o em grande medida ao modelo estatista do Leste Europeu, embora afirmando sempre o princípio do respeito ao pluralismo) e mantinha um viés institucionalista na abordagem dos movimentos sociais em processo de radicalização no período. O MIR, que antes era adepto da via armada e que só apoiara a eleição de Allende apenas poucos dias antes do pleito, havia crescido muito junto aos emergentes movimentos sociais mas, dotado de uma estrutura partidária verticalista, “ tentativa de simbiose do projeto leninista do Que Fazer? com os modelos organizacionais de inspiração castrista”, mostrou-se incapaz de projetá-los em uma dinâmica democrática.
O ensaio termina propondo a centralidade do tema das relações entre socialismo e democracia, “fundamentais para a construção de uma verdadeira hegemonia dos trabalhadores”. Diz ele: “ A história política do século XX é suficientemente rica em exemplos para nos mostrar também que os chamados “estados de transição” não são tão transitórios assim a ponto de nos fazer abdicar de uma reflexão positiva sobre a substãncia da democracia e do socialismo perseguidos e sobre as formas nas quais eles se expressarão. A (re)definição tão necessária dos sujeitos revolucionários – questão de maior atualidade no pensamento socialista – os procedimentos pelos quais serão fixadas as vias e os instrumentos de acesso ao poder não eliminam, pelo contrário, uma antecipação dos grandes objetivos perseguidos.” (JG)