Joênia Wapichana: Sem a terra, não existem valores nem cultura
Antes de Ayres de Britto proferir seu voto, a índia JBC , conhecida como Joênia Wapichana, a primeira índia a graduar-se em Direito no Brasil, defendeu oralmente a causa dos índios de Raposa Serra do Sol, onde nasceu e se criou, na tribuna do Supremo Tribunal Federal. Caso a entidade aprovar a revisão da homologação do território de Roraima, todas as outras terras indígenas demarcadas no Brasil poderão ser também revistas. Em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line, Joênia avaliou esta primeira parte do julgamento como uma grande alegria, pois, para ela, o ministro-relator conseguiu, com suas palavras, esclarecer diversos pontos em relação a este processo. “Eu fiquei bastante comovida com a forma como ele traduziu toda a importância dos povos indígenas para o Brasil, a importância de manter a nossa terra de forma integral. Foi brilhante, iluminado. O ministro conseguiu escrever tudo isso que nós vínhamos falando, reclamando”, disse ela.
Joênia Batista de Carvalho* graduou-se em Direito, pela Universidade Federal de Roraima, e hoje é advogada do Conselho Indigenista de Roraima.
Confira a entrevista.
Que significado teve para a comunidade indígena essa parte do julgamento que aconteceu sobre a demarcação de Raposa Serra do Sol?
Para nós, foi uma grande alegria porque conseguir o voto do ministro-relator esclareceu uma série de questões que foram abordadas esse tempo todo em documentos da ação popular, pelo próprio estado de Roraima e pelos arrozeiros. Para nós, então, foi muito bom e brilhante o levantamento fundamentado, embasado e esclarecedor do ministro Ayres de Britto. Não restam dúvidas de que não há ilegalidades no decreto presidencial que considera a demarcação de terra de Raposa Serra do Sol de forma contínua. Isso nos deixa com a segurança de que os ministros têm esclarecimento sobre o assunto. A importância das terras indígenas precisa ser interpretada de forma que se possa atender as necessidades dos povos de Raposa Serra do Sol, contemplando todos os valores, os aspectos culturais, antropológicos, econômicos, ambientais, assuntos que muitas vezes foram, e ainda são, negados pelo governo de Roraima. Esses aspectos foram brilhantemente esclarecidos pelo ministro-relator. Tais fatos não deveriam gerar polêmicas, uma vez que a legislação brasileira ampara a função das Forças Armadas e da Polícia Federal e considera conciliável a presença de indígenas na faixa de fronteira. Esperamos que, na próxima sessão, os ministros possam comparar e fazer um aprofundamento da ação, tomando, assim, ciência da situação, além de comprovarem o que o ministro-relator colocou em seu relatório.
O que representa para vocês esse pedido de vista em relação ao julgamento?
Para mim, foi muito marcante, emocionante. Claro que existia um peso grande da responsabilidade também, porque ser a única voz indígena ali naquela plenária, sendo escutada atentamente por índios e não-índios, é algo muito marcante e representativo. Marcou porque eu vi meus avós, voltei alguns anos no tempo, digamos assim. Afinal, eles se colocavam numa posição submissa, de não poderem falar por si. Enfim, as pessoas puderam ouvir uma voz indígena dentro desse processo, o que foi importante para nós todos. Ninguém precisa falar pelos índios, ao contrário do que diz o senador Augusto Botelho, que diz que fala pelos índios. Nós mesmos vamos lá e falamos quais são nossos interesses. Eu sou da tribo wapichana, um dos povos de Raposa Serra do Sol, e posso dizer que os povos de lá estão unidos, isto é, não estão só interessados na demarcação contínua. Eu representei todas as comunidades de lá e estamos juntos para conseguir a nossa terra de forma contínua.
O que significaram para você as palavras do ministro Ayres de Britto?
Eu fiquei bastante comovida com a forma como ele traduziu toda a importância dos povos indígenas para o Brasil, com a importância de manter a nossa terra de forma integral. Foi brilhante, iluminado. O ministro conseguiu escrever tudo isso que nós vinhamos falando, reclamando, mas não estava sendo considerado e precisava de interpretação do que a própria Constituição de 1988 conseguiu escrever em nossa Carta Magna. Fiquei muito alegre. Em suas linhas técnicas incontestáveis, ele conseguiu expressar brilhantemente o seu voto. E isso foi muito importante para nós nesse momento.
Joênia, você foi a primeira índia a se formar em Direito. Para você, que viveu a vida toda em Raposa Serra do Sol, como essa discussão em torno da identidade indígena aconteceu?
Enquanto não tinha ainda saído de Roraima, eu não sabia que era a primeira advogada índia mulher. Quando comecei a participar de reuniões fora do estado, me dei conta de que existiam poucos profissionais indígenas e de que eu era a primeira mulher índia que tinha se formado em Direito no Brasil. Nós temos necessidade de formar os indígenas, mas é diferente do que alguns políticos de Roraima e do Estado colocam em seu discurso, dizendo que queremos ficar segregados, ou seja, queremos isolamento e separação. Estamos buscando conhecimentos universais para justamente requerer a nossa participação na sociedade brasileira como é de direito. Se formar e ter o conhecimento das leis brasileira e do merecedor respeito dos povos indígenas foi fundamental para mim como profissional indígena, como advogada das nossas comunidades em Roraima. Isso é um avanço muito grande do protagonismo dos povos indígenas, que estão mostrando a sua capacidade de falar por si só, de entender o contexto que está em jogo. Além disso, ter um curso superior, estudo, ou entender as tecnologias, não mostra que deixamos nossa cultura de lado. Pelo contrário, estamos reforçando ainda mais nossa cultura e nossa identidade indígena.
Muitas vezes, as pessoas não compreendem, pensando que o indígena deve ser domesticado. Com isso, existe a idéia de que, a partir do momento que ele passa a ter conhecimento, não é mais índio. Esse pensamento é inadmissível. A diversidade étnica no país deve ser respeitada. Eu posso ter mestrado, doutorado, compreensão da lei do branco e nunca vou deixar de ser indígena. É uma condição que ninguém vai tirar de mim, ou seja, jamais vão conseguir tirar de mim a cultura dos índios. Estamos apenas agregando conhecimento. Somos discriminados porque temos laptop, celular, falamos português. O próprio estado de Roraima diz que não há mais índios lá só porque estamos falando por nós mesmos, reclamando nossos direitos e exigindo respeito. Eles acham que os índios devem ficar calados, na sua comunidade, que não podem vestir roupa. A partir do momento que nos tornamos protagonistas, eles acham que não somos mais índios. Depois de 1500 anos de colonização, a gente ainda resiste e não é diferente, pois também fazemos parte do povo brasileiro.
Raposa Serra do Sol vive ainda, além da invasão dos arrozeiros, a disputa de religiões dentro do seu território. Como você vê essa questão?
Essa questão de religião foi um argumento que os políticos de Roraima tentam fazer aparecer na mídia como se houvesse uma briga de religiões. Esse argumento é totalmente falso. Falam que de um lado está a Igreja Católica e do outro lado a Igreja Evangélica. Cada um tem o direito de escolher a sua religião. Apesar de haver a presença dessas igrejas diferentes, a religião indígena pesa mais alto. Muitas comunidades indígenas que participam do conselho são evangélicas. Ficam tentando travar uma batalha de religiões que não existe. Aqui os índios se respeitam. Muitas vezes essa batalha é fomentada para tentar gerar uma divisão entre as próprias comunidades. Isso é crueldade.
Como se sentem os índios com essa grande pressão sobre eles em relação à sua cultura e às suas terras?
Estamos há mais de 30 anos buscando regularizar a terra indígena de forma legal. Nesse período que passou, muitas coisas aconteceram, muitas mortes, muita violência. A sensação que as comunidades têm em relação a tudo isso, em relação aos impactos na sua vida e na sua cultura, é que precisam de justiça para resolver esse problema. Estamos esperando até agora que as autoridades brasileiras e a sociedade abram sua cabeça e vejam o que está acontecendo com os índios. Essa é uma questão de ameaça à nossa cultura e à nossa espiritualidade. Nós entendemos que todos devem compartilhar essa responsabilidade, pois se trata de uma diversidade cultural, de uma riqueza que nem todo mundo conhece. Se se conhecesse a nossa realidade, se conversassem conosco, talvez não houvesse tanta pressão sobre os povos indígenas, porque nossa relação com a terra é cultural. Sem a terra, não existem valores nem cultura. Queremos mostrar que a terra não representa simplesmente uma questão de sobrevivência econômica, mas sim a própria vida cultural dos indígenas. O que o ministro colocou em seu voto é muito sério. Às vezes, as pessoas não percebem que a questão da terra tem muita importância para nós. O desenvolvimento tem outro sentido para nós. Não pensamos nele de forma econômica, capitalista, mas na relação com a natureza. Precisamos mostrar mais isso para a sociedade, para que todos dêem importância para a terra nesse mesmo sentido.
O que podemos esperar para o próximo julgamento em relação à homologação de Raposa Serra do Sol?
Nós vamos esperar que seja agendado um novo julgamento. Estaremos aqui esperando. Vamos continuar explicando para quem quiser ouvir qual é a importância dessa terra, porque é necessário manter uma área contínua na Raposa Serra do Sol. Vamos insistir para que os dez ministros que ainda não votaram possam seguir o voto do ministro-relator.