Os países da América do Sul poderão cooperar com o complexo industrial destinado à produção do petróleo das reservas do pré-sal, dentro de uma estratégia do Brasil de fortalecimento da economia regional. A expectativa é do assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, ministro Marco Aurélio Garcia. Ele observou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer dar prioridade à indústria naval do subcontinente para atender parte da necessidade de compra de 200 novos navios pela Petrobras.

Em entrevista à Agência Brasil, Garcia também defendeu a expansão da indústria brasileira nesses países, como forma de reequilibrar a balança comercial. Garcia manifestou a intenção do Brasil de expandir para o Uruguai e Paraguai o mesmo tipo de acordo automotivo feito neste ano com a Argentina. Ele também aborda questões atuais que atingem países do continente, como o debate político interno da Bolívia e as negociações entre o governo colombiano e as Farc.

Por Ivanir José Bortort e Yara Aquino
Repórteres da Agência Brasil

Leia a íntegra da entrevista:

A descoberta do pré-sal vai implicar alguma mudança nesse processo de integração industrial com os nossos vizinhos. Como o senhor está vendo este processo?

Só para citar um número, a Petrobras terá que encomendar 200 navios. Hoje não há capacidade de produção de 200 navios no mundo, então, o presidente Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] tem enfatizado que quer prioridade para a produção disso e de outros componentes ligados a essa gigantesca indústria. Ele quer dar prioridade para o Brasil e para a América do Sul. Então, temos que começar a repertoriar [compilar, formar repertório] completamente o estado da arte da indústria naval argentina, uruguaia, venezuelana, colombiana. Temos interesse em que essa demanda estimule completamente o processo de industrialização ou reindustrialização da América do Sul. Quando começou o governo Lula, a indústria naval estava muito fragilizada. Houve, então, um salto, a partir também das estatais que começaram produzir as plataformas aqui.


Um modelo desse pressupõe estabilidade econômica, fiscal, ter a regulamentação das legislações?

A supranacionalidade é uma coisa que normalmente vai sendo aceita, ai é sempre um problema de sensibilidade, e eu acho que sua aceitação maior ou menor está sempre ligada à capacidade que ela tem de resolver os problemas substantivos. Se houver base de supranacionalidade que resolva os problemas das assimetrias, os problemas sociais, que fortaleça a democracia, ela será aceita. Se não for assim, não será aceita. No caso europeu, onde é que esbarraram os mecanismos supranacionais que a União Européia criou? Esbarraram no fato de que alguns países acreditaram que não era uma Europa social, não estavam sendo resolvidos problemas cruciais, estava-se tentando montar uma institucionalidade, uma burocracia. Não sei se é esse, ou não, não quero entrar na discussão dos europeus, mas o que digo é que, de qualquer maneira, quando as populações de alguns países ou de todos não se reconhecem mais nas instituições, isso vale tanto para o ponto de vista nacional como regional.

Então quer dizer que, do ponto de vista industrial, o Brasil vai ter uma demanda de submarinos, navios, equipamentos etc?

Nós temos interesse de que essa demanda possa estimular, concretamente, o processo de industrialização e de reindustrialização da América do Sul. Do Brasil, evidentemente. Então no fundo, você observa o seguinte: quando começou o governo Lula, o estado em que se encontrava a indústria naval era muito fragilizado. Hoje, houve um salto. A partir de quê? Também das estatais.

Com essa disponibilidade de energia, a matriz energética também começa a ser revista…

Eu acho que o tema energético tem que ser pensado de forma mais abrangente. Nós vivemos um grande paradoxo na região. A região tem as maiores reservas energéticas do mundo, se você somar o potencial hidroelétrico, petróleo, gás, biocombustíveis, sol, vento, e até nuclear. Então nós temos, sem dúvida, a maior reserva energética do mundo e muito diversificada. Qual é o paradoxo que nós temos aqui? Temos gigantesco potencial energético e temos crise de energia em vários países. Uruguai, que vive sempre no limite, Argentina, no limite, o Chile, o Paraguai, que vivem essa coisa surrealista de ter Itaipu e ter apagão em Assunção, e assim vamos. Então uma das coisas que vamos ter que fazer é buscar soluções coletivas para isso. Coletivas e diferenciadas. Evidentemente o país que tem o maior potencial hidroelétrico do mundo, e isso é seguro, talvez não tenha o maior potencial de combustíveis fósseis, se formos comparar com o que é o Oriente Médio, com o que é a Rússia. Ainda que as descobertas de gás sejam sensacionais, a expansão das reservas venezuelanas e brasileiras também é muito expressiva. Tirando isso, que poderia ser objeto de discussão, do ponto de vista de hidroeletricidade, que é energia renovável, não poluente e barata, nós temos o maior potencial do mundo. No entanto, nós ainda não temos resolvidos os nossos problemas energéticos. Tomemos o exemplo do Brasil. Aqui no Brasil, uma das razões do apagão que houve era a ausência de redes de conexão. Quando as zonas de interconexão se estabeleceram, o governo fez um investimento que praticamente dobrou as ligações de redes no Brasil. Apesar de que aumentou muito o consumo, com o crescimento da economia, que provocou o crescimento do consumo doméstico, cerca de 7 milhões de pessoas que receberam o Luz Para Todos. Mas quando essa rede se estabeleceu, os riscos do desabastecimento diminuíram. Estamos fazendo novos investimentos, que nos garantem elevação do teto de proteção. A mesma situação se coloca para a América do Sul. Se, quando construirmos as hidroelétricas de Madeira [do Rio Madeira: Jirau e Santo Antônio] e outras que venham, se formos fazer uma binacional com os bolivianos e com os argentinos, a de Garabi, tudo isso vai ter uma utilização multinacional. Estamos diante de uma perspectiva de consolidação, de uma espécie de divisão do potencial energético do continente, quer dizer, que cada país tem, como a Bolívia, que tem gás – mas se quiser, pode ter eletricidade – e o Brasil, que não tem tanto, mas tem petróleo suficiente, tem biocombustíveis – o Uruguai está começando a investir em biocombustíveis e agora eles descobriram petróleo. Até porque eu acho que uma das coisas que é interessante é: você veja o tipo de discussão que o pré-sal está produzindo no Brasil. Não é uma discussão ligada, fundamentalmente, à relação de sustentabilidade energética. Não é isso? O que está se discutindo no Brasil exatamente é ‘o que é que nós vamos fazer com os excedentes, qual será a utilização do excedente petrolífero que vai se produzir no Brasil?’ Nós não queremos exportar petróleo bruto. Por isso decidimos construir duas grandes refinarias, uma no Maranhão e outra, no Ceará. que vão se dedicar a exportar gasolina premium para o mundo, para agregar valor. É evidente que nós vamos querer compartilhar com os outros países os investimentos necessários para a produção da exploração do pré-sal, o impacto que isso terá sobre a economia brasileira é gigantesco.

E aí o senhor acha que fortalece o Mercosul, a visão econômica de região, o senhor acha que isso será um mote para consolidar?

Acho que isso ajudará muito. Não vai nos dispensar de tomar outras medidas, que são claras hoje. Precisamos reforçar a estrutura física, a conectividade entre os países, precisamos reforçar a infra-estrutura energética, porque ela independe do programa do pré-sal. Em terceiro lugar, precisamos fortalecer os mecanismos financeiros, a questão do bloco sul é importante, a quantidade de obras que precisam ser feitas aqui. Precisamos também reforçar as políticas sociais, sobretudo uma série de programas de fronteira que são muito importantes, que beneficiam as populações dos países vizinhos e a nossa também. Vamos ter que pensar, também, em outros mecanismos financeiros, quer dizer, essa experiência que estamos iniciando com a Argentina de comércio em moeda nacional pode se generalizar para os outros países. Há ganhos muito fortes. Por outro lado, precisamos agilizar certos mecanismos de garantia na região. Hoje em dia o problema não é tanto emprestarmos para o país A, B ou C, uma certa quantia para ele realizar uma obra. A negociação das condições, em geral, é um trabalho de engenharia financeira que se resolve rapidamente. O grande problema, muitas vezes, são as garantias. Então como é que se faz. Convênio de crédito recíproco é um mecanismo, conta-petróleo, conta-gás, conta-isso, conta-aquilo. Esse é um problema que nós também precisamos sofisticar mais. Eu diria que, finalmente, haverá, tudo isso, associado a outra coisa, também importante, que é criar mecanismos de compensação das assimetrias.

Como isso é possível?

Essa institucionalidade se reforça reforçando mecanismos já existentes e criando outros. No caso do Mercosul, nós temos uma estrutura em Montevidéu que é muito frágil. Então ela precisaria ser reforçada, mas consideravelmente, para que pudesse haver, por parte do Mercosul, uma capacidade de iniciativa maior. Agora nós vamos ter um parlamento, que pode ser um elemento importante. Uma particularidade que os países menores, muitas vezes, ficam preocupados, é que o parlamento pode significar uma hegemonia brasileira. Isso é uma bobagem. O Parlamento Europeu não está dominado pela Alemanha, França, Reino Unido ou Polônia, mas em partes e tendências que são partidárias.

O senhor acha que vamos caminhar por esse modelo?

Eu espero que sim.

O debate interno da Bolívia sobre a condução da sua política econômica e social pelo presidente Evo Morales, inclusive levando ao referendo, preocupa?
Acho que preocupa fundamentalmente aos bolivianos e a todos nós, porque a Bolívia é um país que tem uma localização específica no continente. Então, tudo que ocorre [ali] reverbera na América do Sul de maneira geral. Temos uma percepção muito positiva da evolução da região nos últimos anos – todos os presidentes da região foram eleitos em pleitos massivos. A América do Sul está vivendo uma situação nova. O que tenho dito é que não adianta ficarmos incomodados com processos políticos que podem não ser exatamente dentro do figurino que é nosso e de outros países da região. Em alguns países, as instituições estavam muito cristalizadas – ‘esclerosadas’ talvez seja o termo melhor – e elas não davam conta de novas dinâmicas sociais. Então, lá pelas tantas, se um rio caudaloso vai passar por um canal muito estreito, esse canal é afetado, e eu chamo a atenção para três países onde houve esse problema – Venezuela, Bolívia e Equador – e a solução encontrada foi mais ou menos a mesma: constituinte, isto é, uma espécie de refundação institucional do país. As pessoas dizem:’mas tem muita agitação’. É evidente. Quando há um redesenho do equilíbrio de forças políticas, é normal que isso aconteça. Tem gente que quer avaliar a América do Sul a partir dos textos de teoria política do Século 19.

Do ponto de vista de nossas relações econômicas com a Bolívia, há espaço para avançarmos?

A Bolívia tem um problema crucial hoje, do ponto de vista econômico. É um país com um potencial gigantesco de expansão: produz hoje quase 50 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e só para o Brasil, exporta 30 bilhões. A Bolívia, cujo consumo interno se expandiu bastante, tinha compromissos importantes de venda para a Argentina, que está renegociando. Ela tem a seu lado um país com uma demanda gigantesca, o Chile. Seria uma demanda de 30, 40 milhões, sem falar que, se as negociações com o Chile progredirem como estão progredindo, para se encontrar uma solução de saída para o mar etc, a Bolívia poderia se transformar também em uma grande exportadora para outros mercados: Ásia, Estados Unidos, México. Calculo que ela teria uma demanda potencial de 100 milhões de metros cúbicos, se não mais. O problema é que tem que expandir a produção. Tomamos a decisão de investir porque acreditávamos que não só tínhamos que assegurar a produção para o consumo brasileiro, como também tínhamos que assegurar condições melhores para o funcionamento econômico da Bolívia. Além disso, há toda uma idéia de que a Bolívia possa agregar valor ao seu gás. A Braskem [empresa do setor petroquímico] quer montar uma grande fábrica lá, mas só pode fazer isso se houver oferta de gás. Precisa ampliar a produção.

Depois da libertação de Ingrid Betancourt, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi apontado como a pessoa ideal, o negociador ideal entre as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] e o governo colombiano para libertação dos demais reféns. Como o senhor vê isso?

É evidente que o governo colombiano teve êxitos militares e políticos muito grandes em relação às Farc. Sempre fomos enfáticos nas nossas conversas com o governo colombiano, antes mesmo que o presidente Lula houvesse assumido a Presidência [da República], no período de transição entre sua eleição e a posse. Sempre dissemos que estávamos à disposição do governo colombiano para todo e qualquer tipo de esforço mediador. O Brasil, diferentemente de outros países, não tinha e não teve contatos com as Farc – nem o governo brasileiro, nem os partidos que estão no governo – que nos permitissem estabelecer qualquer tipo de interlocução. A Suíça mantinha contatos com as Farc, a França mantinha. A imprensa brasileira e a colombiana, pelo menos essa revista [Cambio], foram muito melífluas [brandas] na difusão dos documentos. Por exemplo, no que me diz respeito, eu apareço muito bem nos tais documentos do Reyes [Raúl Reyes, líder das Farc, morto em março deste ano]. Ele diz: “esse inefable [inefável, que não se tem palavras para qualificar] Marco Aurélio, que se opõe à participação das Farc no Foro de São Paulo [nome genérico de um encontro bianual de partidos políticos e organizações sociais de esquerda e nacionalistas da América Latina e do Caribe]”. Eles dizem que vão tentar contato com o governo brasileiro, mas não há nenhuma manifestação concreta de que tenha havido qualquer tipo de contato. Nós não teríamos feito isso sem o conhecimento e a aquiescência, do governo colombiano. Quando houve a negociação para a primeira tentativa de libertação de três reféns, eu fui para lá, por determinação do presidente, e naquele momento o governo brasileiro tomou uma precaução: consultar a Colômbia, se eles estavam de acordo. Quando eu fui para lá, o presidente Lula telefonou para o Uribe [Álvaro Uribe, presidente da Colômbia] e perguntou se haveria algum problema. Ele respondeu que não. Quando fui para a Colômbia, recebi seis chamadas do Uribe. Nossa atitude, no que diz respeito à Colômbia, sempre foi de absoluto equilíbrio, e isso é curioso, porque muitas vezes somos acusados, ou de omissão – e o que vemos é um problema interno, que lamentavelmente a Colômbia tem que resolver, e estamos dispostos a ajudar, mas digam-nos como ajudar – ou de termos relações com as Farc, de estarmos torcendo pelas Farc, e digo que não é verdade. Pelo contrário, sempre tivemos uma atitude muito crítica em relação às ações das Farc.

Hoje há uma solução sendo negociada?

Não. Estivemos ajudando em outras coisas periféricas a isso. No que diz respeito à solução interna, o máximo que fiz foi conversar com pessoas do governo, que nos informaram de que haveria um novo esforço, que duraria uns meses ainda, para ver se chegava a uma solução negociada.

Isso depois da libertação de Ingrid Betancourt?

Depois da libertação da Ingrid.

Há uma tratativa para uma solução negociada?

Há uma tratativa do governo colombiano, da qual não estamos participando.

Do governo colombiano com as Farc?

É. Isso pelo menos o alto comissário para a Paz da Colômbia, Luís Carlos Restrepo, me informou: que haveria um interesse do governo de retomar. Outros funcionários do governo, no entanto, têm uma visão um pouco cética sobre as possibilidade de resolução.

A posição do Brasil, nesse caso, é diplomática, em que podemos ajudar, desde que chamados?

No início do governo Lula, o então secretário-geral da ONU [Organização das Nações Unidas], Kofi Annan, telefonou para o presidente pedindo que o Brasil ajudasse. Naquele momento, a ajuda significava concretamente que disponibilizássemos um território aqui para as negociações. Consultamos o presidente colombiano e dissemos: ‘Está às ordens um espaço aqui para negociações, para troca de prisioneiros.’

Para o Brasil, e o continente, é importante uma solução tendo em vista ser uma área complicada, em que há tráfico de drogas, conflitos? Vamos ver pela lado positivo: a Colômbia é um grande país, esse é o problema. Um país com território e população gigantescos, tem economia pujante. Para o Brasil, uma Colômbia pacificada, sem os problemas que ela tem hoje, é importante. Essas reticências que houve em determinados momentos do processo de integração decorriam muito da situação interna. Então, a resolução da situação interna é, para nós, um ponto fundamental. O governo brasileiro teve, durante todos esse período, a despeito do que se diz de forma irresponsável, uma atitude de enorme sensibilidade em relação à situação colombiana. Nunca houve perda de diálogo. Quantas vezes o presidente Uribe se mobilizou para conversar com o presidente Lula, para trocar opiniões? Quero insistir nisso, nossa agenda com a Colômbia não está centrada em aspectos negativos, ela é eminentemente positiva.

Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez estatizou uma empresa de cimento. Esse tipo de atitude estatizante, pode ter algum reflexo do ponto de vista da disposição dos investidores em continuar aplicando no continente?

Acho que não. Alguns investidores podem ficar assustados, mas não acho que seja problema. Em primeiro lugar, porque acredito que a decisão de estatizar determinado setor está ligada a um determinado modelo de desenvolvimento da economia venezuelana. No passado, sofremos a praga das privatizações – no Brasil, não atingiu tanto assim, mas estou me divertindo muito vendo agora aqueles que estavam querendo privatizar a Petrobras, agora a defendem com unhas e dentes. O problema que se coloca sempre é que os investimentos demandam certas garantias. O bom investidor, o que sabe das coisas, vai além das aparências. A Venezuela é um país que, finalmente, decidiu industrializar-se, sair da ‘maldição do petróleo’. Portanto, é um campo importante. Os interesses do Brasil estão associados a uma integração produtiva da América do Sul. O Brasil fez essa opção, tem quem não goste, que pense que devemos nos integrar aos Estados Unidos, à Europa. Temos relações muito boas com os dois, mas resolvemos por um processo de integração sul-americana, que consideramos melhor para o Brasil e para a América do Sul.

Na viagem que o senhor fez ao Paraguai, foi discutida a questão dos brasileiros que têm propriedades de terra naquele país?

Não tratei desse assunto, mas tenho a impressão de que esse problema está evoluindo de forma tranqüila. Evidentemente é possível que o presidente [Fernando] Lugo tome algumas iniciativas de reforma agrária lá. Quem somos nós para criticar a reforma agrária em outros países, se estamos fazendo aqui também? E o presidente Lugo e o ministro da Agricultura paraguaio deram uma série de declarações de que fariam isso de forma muito ordenada.

Se houver uma reforma agrária que atinja alguns brasileiros que são grandes produtores no Paraguai, o Brasil tentará ajudar?

Isso aí é problema interno do Paraguai. Sempre temos uma política de proteção dos cidadãos brasileiros no exterior, essa é uma regra geral. Agora, espero que essas questões se resolvam de forma positiva, entre outras coisas, porque alguns desses setores agrícolas são muito produtivos. Claro que os paraguaios têm preocupações justas, não querem se transformar exclusivamente em uma economia de exportação, querem resolver os problemas sociais, alimentar o povo. Mas essa é nossa política também. Como vamos criticar num outro país a política que praticamos aqui? O presidente Lugo tem se revelado um homem de grande habilidade, que sabe que a transição do Paraguai, depois de mais de 60 anos do regime do Partido Colorado, não é uma coisa que se vai fazer num estalar de dedos.

Com o fortalecimento da economia e da moeda brasileiras, nossas empresas estão expandindo seus negócios para países da América do Sul e expandindo suas indústrias em novos mercados. Como o senhor vê esse processo?

Vejo como um fato positivo, até porque temos dois problemas aqui. Temos hoje uma relação comercial muito desequilibrada em favor do Brasil. Temos um superávit de balança comercial com todos os países da região, menos com a Bolívia, em função das importações de gás. Isso demonstra que a relação comercial muitas vezes não resolve as assimetrias existentes entre as economias sul-americanas, pelo contrário, até agrava. Uma das formas pelas quais podemos compensar isso – além dos mecanismos multilaterais, como fundos, programas de infra-estrutura e financiamentos que o Brasil tem propiciado para construção de obras nesses países – é justamente por intermédio de investimentos. E o Brasil tem sido demandado, em grande medida, a estimular os países que precisam de investimentos.

Há áreas específicas pelas quais o Brasil e os parceiros têm preferência?

Depende muito do país. Há investimentos na área petrolífera, de gás e de minérios. A Petrobras está presente hoje na Argentina, na Colômbia, no Peru. Temos mineradoras, como a Vale, e temos presença forte na área industrial, o que nos interessa, porque uma das formas de estabelecer uma relação mais equilibrada com os países da região é ajudá-los a levar adiante um processo de industrialização – seja ele complementar às nossas indústrias, às indústrias argentinas, seja um processo autônomo. O Brasil tem estimulado muito o desenvolvimento industrial e agrícola da Venezuela.

O desenho que está sendo pensado pelo governo brasileiro é de uma integração econômica maior?Esse pelo menos é o movimento que temos tentado impulsionar. Agora, nossa economia é uma economia de mercado, temos possibilidade de estimular investimentos, direcionar, mas não de dizer para onde uma fábrica vai. Mas as políticas governamentais são fundamentais nesse particular.

Como as instituições de fomento que temos estão sendo usados para isso?

Estão sendo usadas basicamente para a questão de infra-estrutura. Estamos financiando uma iniciativa tripartite entre Brasil, Bolívia e Chile, para uma obra que permitiria a abertura de uma estrada entre Porto Alegre e o Chile, passando pela Argentina, que irá mudar totalmente a integração Pacífico-Atlântico. Agora, o Brasil abriu uma linha de crédito importantíssima para esse projeto Bolívia Hacia el Norte, e está disposto a financiar a linha de transmissão de energia de Itaipu a Assunção, no Paraguai.

Especificamente no caso do Paraguai, chegou-se a falar em um Plano Marshall [principal plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, que recebeu o nome do secretário de Estado, George Marshall], um plano de desenvolvimento econômico. O senhor esteve antes das eleições com Fernando Lugo em nome do Brasil. O que ficou decidido?

Temos que ser cuidadosos ao falar sobre isso, para não parecer que queremos dizer aos paraguaios o que eles têm que fazer – até porque eles sabem muito bem o que fazer. Eu diria que lá vamos ter dois grandes problemas. Um deles é o de Itaipu, para o qual temos expectativa de continuar negociando, como negociamos até agora. No governo anterior, de Nicanor Duarte, o Brasil fez uma série de movimentos que melhoraram completamente o relacionamento entre os dois países, no que diz respeito a essa hidrelétrica, que tem grande importância para nós, do ponto de vista energético. Para o Paraguai, mais do que isso, tem grande importância do ponto de vista financeiro. Uma parte expressiva dos recursos que o Paraguai aufere vem de Itaipu. Então, é normal que eles queiram melhorar as condições de remuneração da energia. Optamos por uma conduta serena, tranqüila. Estive lá pouco antes da posse do presidente [Fernando] Lugo, conversei com ele duas vezes, estive com sua equipe e chegamos a um acordo de que não iríamos negociar pela imprensa, mas sim na mesa de negociação. Há uma série de demandas que nos parecem plausíveis, outras não.

Como será essa negociação?

Eles ofereceram uma pauta que nos pareceu boa, o que não significa que estaremos de acordo com tudo o que foi colocado ali. Mas nos parece um excelente roteiro para as negociações. Ao mesmo tempo, os diretores brasileiro e paraguaio de Itaipu já conversaram algumas vezes e as conversações foram muito positivas. As negociações, no caso brasileiro, serão conduzidas pelos Ministérios das Relações Exteriores e de Minas e Energias, estarão muito mais facilitadas. A segunda questão está ligada à idéia de um projeto de desenvolvimento maior do Paraguai. É um país que tem uma agricultura importante – podemos oferecer cooperação agrícola. Tenho a impressão de que, no Paraguai, o essencial é saber se os paraguaios querem desenvolver um programa industrial para o país. Eles têm um trunfo importantíssimo, que é ter energia, têm a maior proporção de energia per capita do mundo. Essa energia, grande parte dela é exportada, mas poderia ser convertida para a indústria paraguaia. Os próprios paraguaios nos têm dito que querem mudar a imagem do país, de país da falsificação. Tenho certeza de que haveria interesse de empresários brasileiros e algumas empresas brasileiras estão se preparando para anunciar investimentos lá, na área de bens de capital. Acho que há possibilidade de isso se estender para outros setores, como o de bens de consumo, para o mercado interno e também para as exportações. Outro capítulo que discutimos lá, há mais tempo, é o da indústria de biocombustíveis. Eles poderiam perfeitamente entrar na produção de etanol, biodiesel. Enfim, a assunção de um novo presidente cria condições e possibilidades de um país repensar sua vocação econômica e, em função disso, ver no que o Brasil e outros países da região podem efetivamente ajudar.

É um processo com o modelo tradicional de investimentos privados? E onde precisar, as agências de fomento brasileiras podem investir? Um projeto compartilhado entre os dois países?

É. Aí, os paraguaios fixarão as condições, e esse modelo, de certa maneira, é o que acreditamos que possa se estender a outros países, como o Uruguai. Outra questão importante é que o Brasil assinou um novo acordo automotriz com a Argentina. Pela primeira vez, depois de muito tempo, foi um acordo de seis anos de duração, que, então, cria estabilidade. Os acordos anteriores eram anuais, o que não dava muito impacto. Com o acordo de seis anos, um dos primeiros efeitos que constatamos é que a Argentina hoje retomou sua produção automobilística, embora tenha perdido nos últimos anos muitas indústrias de autopeças. No entanto, há possibilidade de a indústria de autopeças voltar, porque esse acordo, com duração de seis anos, tem alguns efeitos de projeção sobre a indústria automotriz. Aceitamos isso. Esse acordo vai ser estendido ao Paraguai e ao Uruguai. Isso implicaria que tivéssemos possibilidade de fazer com que Paraguai e Uruguai também participassem desse processo de divisão do trabalho.

Como é o modelo desse acordo?

Ele estabelece condições muito favoráveis a esse processo de reindustrialização da Argentina. A indústria automobilística brasileira aceitou. Para ter uma idéia, muitas empresas que estavam em Córdoba [Argentina] vieram para o Brasil, mas podem muito bem voltar. Por outro lado, temos possibilidade de fazer com que Paraguai e Uruguai entrem nisso. Estivemos discutindo com o ministro da Argentina a possibilidade de, a partir de compras muito importantes que o país fará da Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica], sobre o início de um processo de integração com a indústria aeronáutica argentina, que foi muito importante no passado.

Publicado na Agência Brasil em 28/08/2008