Revistae. [SESC/SP]– n° 136 – setembro 2008

SELMA ROCHA

A historiadora e diretora da Fundação Perseu Abramo passa a limpo o sistema educacional no Brasil

Graduada e mestre em história pela Universidade de São Paulo (USP), Selma Rocha já deu aula na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e foi assessora da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo de 1989 a 1996. Tendo passado pela Secretaria Municipal de Educação em Santo André, de 1997 a 2000, a entrevistada deste mês se especializou na área e ocupou a mesma pasta também em Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Atualmente, Selma é diretora da Fundação Perseu Abramo (FPA), instituição parceira do Sesc São Paulo na realização da pesquisa Idosos no Brasil: Vivências, Desafios e Expectativas na 3ª Idade, realizada também juntamente com o Departamento Nacional do Sesc. O estudo, lançado em 7 de maio de 2007, cobriu todo o território nacional e colocou à disposição dos interessados um perfil detalhado do idoso brasileiro. Na entrevista exclusiva concedida à Revista E, Selma disseca o sistema educacional brasileiro e analisa tanto as políticas públicas que beneficiam a educação quanto a falta delas. “O problema é que o nosso desenvolvimento e o nosso crescimento não foram planejados, durante muito tempo, no sentido de pensar educação, ciência e tecnologia juntamente com os aspectos econômico e social, de maneira integrada”, alerta. Na conversa, cujos melhores trechos seguem abaixo, a entrevistada falou também sobre qual deve ser o real objetivo da educação – desde a educação infantil ao ensino médio – e sobre a relação das escolas e universidades com o mercado de trabalho.

Você acha que a educação é um “bem” hoje mais valioso aos olhos da sociedade e dos governos do que era há 50 anos, por exemplo?

A educação começou a se tornar uma prioridade na sociedade. Eu acho que, em particular, o governo do presidente Lula contribuiu muito quando criou o Plano de Desenvolvimento da Educação e as metas para serem alcançadas até 2021 em relação ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Isso é muito positivo, é muito importante que a sociedade esteja envolvida nisso. Mas eu acho que ainda há um debate muito sério a ser feito em torno do que é assegurar o direito à educação. Isso envolve a democratização do acesso, a garantia da vaga, garantia de uma escola digna e adequada arquitetonicamente, garantia do livro didático, dos materiais. Eu diria que a essência da ação educacional tem a ver com o paradigma que funda o princípio e, digamos, o objetivo social da educação. Ou seja, o que se pretende com a educação? Como assegurar que as pessoas no Brasil, de fato, tenham acesso a processos que respondam à necessidade de conhecer sempre, de construir conhecimento? Esse é um desafio fundamental para que a gente não crie uma educação de primeira classe para uns e de segunda classe para outros. Esse é um desafio fundamental em torno da qualidade e com desencadeamentos em muitas direções – em nível institucional e junto à sociedade civil. Eu diria que foi muito importante essa construção em torno das prioridades da educação [refere-se aos citados Plano de Desenvolvi-mento da Educação e às metas medidas pelo Ideb], porque elas fazem com que a sociedade se ocupe em pensar sobre a qualidade do ensino, sobre a escola como um direito. Fica claro que não basta colocar as crianças ou jovens na escola como uma espécie de medida de proteção à infância e à juventude. É preciso que a sociedade se ocupe em saber o que ocorre no interior das escolas em termos da construção de conhecimento. E esse é um debate muito recente no Brasil.

Como você acha que esse debate pode se dar?

Na verdade há dois problemas: um é a dificuldade em relação às famílias, que têm problemas de diversas naturezas e, muitas vezes, são desestruturadas – e não somente no sentido financeiro, há famílias de classe média que são desestruturadas de outra forma. Isso dificulta muito que ocorra um acompanhamento do processo educativo dos filhos por parte dos pais e dificulta que as pessoas assumam as suas responsabilidades em face da educação dos filhos. A outra questão é a mão inversa: a conduta da própria escola diante da relação da sociedade com os pais – e quando eu falo a escola, incluo políticas educacionais e as ações das secretarias, porque, a meu juízo, tudo isso é indissociável. Há um discurso, muitas vezes normativo, que se faz em torno da escola, da criança e do jovem, muito em função de um “dever ser” – sobretudo quando falamos de escolas públicas, que são diferentes em relação às particulares nesses casos. Um discurso segundo o qual a criança deveria ter outras condições, não as que ela tem, que ela deveria ser outra coisa, não o que ela é, que a família deveria ser uma outra, não aquela.

Enfim, a escola muitas vezes se dirige a esses segmentos da população e faz esse discurso. Ao fazer isso, a escola paralisa a família, porque entre o que a pessoa é e o que ela deveria ser muitas vezes há uma distância tal que ela não vê formas de superar. Eu observei esse tipo de discurso em diversas experiências de educação sobre higiene, sobre procedimentos e hábitos de estudo e leitura, sobre organização do espaço etc., experiências que estavam muito distantes da estrutura familiar e social das famílias inseridas naquele contexto. Então, o discurso é: é preciso higienizar os dentes desta e daquela maneira, só que boa parte das famílias não tem dinheiro para comprar a pasta e a escova – e eu estou dando exemplos drásticos, mas reais. Ou seja, a aproximação com as famílias tem que supor não um discurso moralista e no sentido de que a norma é criada independentemente das pessoas, mas sim de uma maneira que busque construir uma relação com base naquilo que as pessoas efetivamente são. Isso vai me permitir chegar mais perto das pessoas e ajudá-las a dar os passos seguintes. No meu entendimento, é isso que vale para a família. E aí tem uma pista grande para o debate da qualidade.

Você acha que a escola é motivada pela sociedade e pelas políticas educacionais?

Infelizmente houve, no Brasil, uma compartimentalização grande entre as responsabilidades dos governos e das escolas. Algo como um distanciamento artificial entre os governos e a escola, sob o argumento de que as instituições de ensino teriam, em tese, uma autonomia. Diante disso, parece-me necessário retomar a noção das políticas para pensar em que medida se pensou em ações casadas com uma perspectiva de desenvolvimento. A primeira coisa que eu diria é a seguinte: seja para uma criança no ensino fundamental, seja para um adulto ou jovem no ensino superior, o desafio é assegurar que as pessoas construam conhecimento, autonomia intelectual e o desejo de aprender. Nós estamos em um mundo em que a velocidade da produção da informação é muito grande, mas a velocidade da produção do conhecimento não é, e nunca será, tão grande assim. Conhecimento, para ser produzido, precisa de elaboração. Por exemplo, encontro o que quiser na internet. Mas preciso saber o que quero e ter capacidade crítica diante daquilo que leio para ter habilidade analítica para escolher o que me será útil. E isso vale em qualquer área hoje.

Ou seja, é necessário formar profissionais, mas é muito importante, também, formar cabeças pensantes.

O importante é pensar projetos de desenvolvimento global. Pensar, claro, nas necessidades do país, mas também pensar nas necessidades das pessoas. Ou seja, toda a formação deve buscar fundamentos científicos e o contato com áreas que permitam a reflexão sobre eles. Não é verdade que um pedreiro não precisa pensar e não precisa de um fundamento científico. O fato de ele executar um trabalho técnico não implica não ter essa informação geral. E há experiências no Brasil, já há um certo tempo, que nos permitem inferir que mesmo no ensino fundamental você pode trabalhar fundamentos. A técnica tem que estar associada a isso. E preciso pensar em uma formação que articule formação científica e técnica de forma muito intensa, para que as pessoas tenham capacidade de transformação e de adaptação, porque as profissões também se transformam.

Há as que surgem dando lugar a novas…

Os ferramenteiros, os frisadores da década de 1970 e 1980, na área da metalúrgica, por exemplo, não existem mais como profissões. Se a formação dessas pessoas foi estritamente técnica, dificilmente elas se recolocarão no mercado de trabalho, ao passo que se elas tiveram uma formação geral sólida, as chances de recolocação aumentam. De outro lado, complementando, é preciso planejar. O problema é que o nosso desenvolvimento e o nosso crescimento não foram planejados, durante muito tempo, no sentido de pensar educação, ciência e tecnologia juntamente com os aspectos econômico e social, de maneira integrada. É muito importante que se pense as áreas estratégicas de desenvolvimento do país, que haja profissionais capazes de atuar nessas áreas. Você não vai ter somente cientistas, nem todas as pessoas que fazem a graduação se tornarão cientistas, mas todas as pessoas que fazem graduação têm que ter uma formação científica sólida e condições de pensar o conhecimento. Isso é um problema de paradigma, não só de tempo – claro que tem um aspecto temporal, mas a questão é pensar o que se vai fazer em educação ao longo do tempo. Eu vou construir um currículo banalizador, tecnicista, ou não? Ou vou trabalhar técnica e eficiência de maneira articulada, o que supõe responder às necessidades do Brasil? Porque quanto mais gente pensando o processo de trabalho, o mundo do trabalho, melhor – mas não só o pesquisador que atua, por exemplo, no estudo de sementes ou na área de energia, mas sim todos nós.

Estamos cada vez mais distantes das fronteiras do taylorismo [modelo de administração desenvolvido pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor, 1856-1915, e que propunha uma intensificação da divisão do trabalho, fracionando as etapas do processo produtivo de modo que o trabalhador desenvolvesse tarefas especializadas e repetitivas] e do fordismo [sistema de trabalho idealiza-do pelo empresário norte-americano Henry Ford, 1863-1947, fundador da Ford Motor Company, baseado no taylorismo, e que consistia em organizar a linha de montagem de cada fábrica visando ao aumento da produção, controlando as fontes de matérias-primas e de energia, os transportes e a formação da mão-de-obra].

Esses dois modelos criaram padrões de racionalização que hoje já não servem mais do mesmo modo em um mundo globalizado. As fronteiras no tempo, as fronteiras de organização da vida do trabalho mudaram. Por exemplo, nós aqui estamos conversando sobre o uso da informática. É como ligar o computador no final de semana e acabar respondendo a um e-mail de trabalho. Ou seja, a fronteira entre o mundo do trabalho e o mundo do descanso está cada vez mais tênue. Isso é parte do processo de reflexão que todo profissional tem que ter para entender o tempo dele. Se isso é possível? É sim.

Até pouco tempo, essa linha não era tão tênue, era? Enfim, o computador e a internet não faziam parte da realidade das pessoas como fazem hoje; a mesma coisa o celular. Esse novo contexto exige um aprendizado, não?

Eu acredito que sim. Há duas coisas com que nós temos que lidar e pensar intensamente para buscar construir alternativas. A primeira delas é a identificação na nossa época entre tempo e velocidade. Tempo não é igual à velocidade. Por exemplo, na escola, o tempo do desenvolvimento cognitivo não é o tempo da velocidade do processamento da informação. Posso navegar horas na internet e não pensar em nada. Aliás, se tem uma geração que enfrenta isso todos os dias, que pratica isso com vigor e intensidade, é a dessa garotada. Estabelecer que tempo não é igual à velocidade me dá espaço internamente para elaboração. Um dos problemas que precisam ser enfrentados pela educação é lidar com essa linguagem de tempo e de organização visual da imagem, da forma, do texto. Acho um grande erro o professor tentar opor o livro à internet. A internet vai ganhar. A mesma coisa com o livro e a televisão. A televisão também vai ganhar, é uma linguagem muito sedutora, muito bonita e muito rápida, que age no inconsciente. O ideal é, na verdade, não criar nichos de competição entre uma coisa e outra, mas sim criar espaços diferentes de reflexão e procurar trabalhar os prazeres que o texto e o livro trazem – assim como trazem a internet, a velocidade, o jogo. Trabalhar isso na escola significa não ignorar essas linguagens, pelo contrário, deve-se tomá-las como referência. Mesmo as crianças que não têm computador se ocupam disso, porque isso é uma mentalidade de época. Dê uma máquina de filmar de última geração para mim e uma para uma criança de dez anos e veja em quantos segundos essa criança vai explicar como a máquina funciona e quantas horas, talvez dias, eu vou demorar para explicar a mesma coisa – se tudo correr muito bem (risos). Para mim, as referências para pensar a realidade foram outras, tive que mudar essas referências. A criança não, ela ingressa no mundo já com a internet, a câmera digital etc. Mesmo que ela não tenha acesso direto à tecnologia, ela tem acesso a uma mentalidade.

E o que fazer com tanta informação?

Aí que está a questão. O que pode permitir que a informação tenha significado é a capacidade de fazer relações, de deduzir questões sobre essa informação, de inferir problemas a partir dessa relação. Esse trabalho que prevê a atribuição de significado à informação supõe a elaboração e a reflexão. E é a escola que pode explorar essa possibilidade. Eu sempre digo que uma escola que ignora o que acontece no Jornal Nacional, por exemplo, não vai dialogar com ninguém. A mesma coisa uma escola que ignora o que acontece na novela das oito – não é para ser tragado pela novela, mas ela é o ponto de partida de uma parcela enorme da população. O Jornal Nacional organiza o debate familiar à noite no país inteiro. Não precisa ser assim, mas é. E uma vez que é assim, o que a escola faz com essa lógica familiar de comunicação? Ela tem que ler isso, interpretar isso. Ou ela pode ignorar tudo isso e construir um currículo e criar uma lógica, que é o que acontece no sistema educacional até hoje, bastante segregador. Ou seja, aquele que resistir ao currículo, aos professores, à sua própria família e à desconexão entre tudo isso, vai bem e progride, porque a progressão tem que acontecer, mesmo que não seja por uma intencionalidade educacional da escola no sentido de fazer as relações com o mundo em que a criança vive.

Como você vê a questão da formação de professores preparados para essa nova realidade e, mais, da recapacitação de profissionais que já estão no mercado?

Eu acho que tem um superdimensionamento dessa idéia da formação dos professores. A solução de qualquer problema agora é formar professores, como se todo mundo fosse mal formado. Se você observar os resultados do Ideb, vai verificar que mesmo em cidades nas quais você tem um número muito grande de professores com especialização, portanto com uma qualificação grande – como é o caso do município de São Paulo –, há muitos mestres, muitos doutores, pessoas que fizeram cursos de graduação qualificados, e, no entanto, os resultados educacionais não se alteram substantivamente. O que eu penso a respeito disso? Eu penso que, em verdade, a relação entre teoria e prática supõe um processo de elaboração. A formação, na sua dimensão teórica, mesmo que parta da prática, não substitui essa relação cotidiana. Para que haja professores efetivamente preparados para lidar com essas questões contemporâneas, é preciso que a escola elabore, ou seja, crie canais que permitam aos professores tentar analisar a investigação dos seus alunos, conversar sobre o currículo, e isso deve envolver registros, sistematicidade, continuidade e tempo. Os professores têm que ter tempo para fazer isso na sua jornada. Eu diria que para assegurar esse padrão de qualidade do qual nós estamos falando aqui, é preciso que o professor tenha mais tempo na escola. Antes do aluno, inclusive, eu diria. Ele precisa interpretar e fazer mediações. E para fazer isso não basta ter um livro didático na mão e um aluno sentado na carteira, ou um computador ligado.

Ou seja, o professor e a própria escola devem ampliar sua abrangência.

A escola é pensada como uma instância de difusão de informação. Há quem defenda que isso continue assim e que as avaliações nacionais devem servir para instrumentalizar políticas que assegurem esse mínimo. Eu estou entre as pessoas que acham que a escola não deve fazer o mínimo, ela deve fazer o máximo. E o máximo sendo uma instituição do Estado e que, portanto, tem possibilidades que nenhuma outra instituição tem. Em tese, claro, isso envolve recursos, mas acho que o problema não é só de financiamento. Financiamento é muito importante e é necessário, mas acho que a questão é gestão e concepção. Ou seja, o que a escola deve fazer é reproduzir informação mesmo? O professor pega o livro didático, entra na sala, fala o que está no livro, faz os exercícios que estão no livro e está encerrada a aula? Isso é educar? E de vez em quando comenta alguma coisa da realidade? Não, não pode ser isso. E se não pode ser isso, o livro didático deve existir? Deve, ele é um roteiro. Mas é o único? Não, e não pode ser. Para que ele não seja o único roteiro, o professor precisa ter tempo para construir alternativas.

Vivemos hoje uma espécie de “midialização” da própria vida. Ou seja, você tem a capacidade de se tornar a mídia – haja vista a internet com os blogs e sites que qualquer um pode criar. Como estabelecer na população o senso do que é real e do que é falso, ou seja, mostrar o que na rede pode ser, de fato, conhecimento?

É a capacidade crítica que pode me ajudar a discernir essas coisas. E a capacidade crítica se constrói discutindo as coisas na sala de aula, lendo um livro antes de dormir. Sempre disse aos meus filhos, parentes e alunos: o tempo do recolhimento, do sono, não é o tempo da internet, é o tempo do livro. Porque o livro me permite tomar contato comigo mesmo. A hora de dormir é a hora de desligar a televisão, desligar o computador e tomar contato consigo próprio, para poder não só descansar, mas também se reconhecer. As pessoas têm corpo e mente. Uma pessoa que fica sentada na frente da internet não tem corpo? E como o corpo dela reage a isso? Como eu posso trabalhar isso na escola? A questão não é só ficar questionando o tempo que as crianças passam sentadas na frente da internet, mas é preciso trabalhar alternativas com o corpo que permitam a essa criança se reconhecer em outras atividades. É muito bom ficar na frente da internet, mas é muito bom também jogar basquete, correr, jogar bola. É muito bom realizar outras atividades coletivas que mexam com o corpo.


“Sempre disse aos meus filhos, parentes e alunos: o tempo do recolhimento, do sono, não é o tempo da internet, é o tempo do livro. Porque o livro me permite tomar contato comigo mesmo”