Estudo Sobre a Tortura no Brasil
2º semestre de 1978 (data provável)
INTRODUÇÃO
No trabalho que este grupo vem desenvolvendo, não estava colocada a necessidade de uma investigação que visasse exclusivamente o tema que ora nos propomos, que é a questão da Tortura no Brasil. Sentiu-se de imediato que seria importante aprofundar o estudo sobre o que hoje pode chamar-se de a "instituição" da tortura; estudar como ela se processa, quais são seus agentes; a quem ela beneficia e sobre quem ela se abate. Essencialmente, tenta-se, neste momento, compreender sobre quem ela recai, contra quem ou contra que grupos ela é exercida. Entendê-la como um meio usado pelo poder estatal para atingir determinados fins. Compreendê-la, enfim, como um instrumento da luta de classes e desta forma entendê-la no seu fundamento político e assim politicamente tratar a questão.
O tema foi desenvolvido levando-se em conta a repressão que habitualmente se desencadeia sobre as grandes massas proletarizadas da cidade e do campo, passando depois sobre a repressão aos movimentos organizados de oposição ao regime brasileiro dos últimos anos. Todo um capítulo é dedicado ao funcionamento da tortura e não se pretende, muito ao contrário, ter-se o tema esgotado com esse curto apanhado. O que se pretende, na verdade, é iniciar a discussão ampla da questão, para o qual, até o presente momento, estiveram ausentes os grandes interessados (a maioria da população brasileira). É fundamental que se destaque que não se pretendeu, neste capítulo, julgar, pressupor, preconceber ou, por mais longe que se fosse, emitir opinião sobre o comportamento dos opositores do regime diante da tortura. Tão somente tentou-se efetuar uma análise do funcionamento e eficácia da tortura. Julgamentos ou avaliações sobre como os opositores se comportaram ou sobre como se comportou este ou aquele, são questões que não estão entre as preocupações do Núcleo dos Profissionais da Saúde. Tentar-se-á, também, levantar algumas hipóteses sobre seqüelas decorrentes da tortura, relatar um pouco da atuação do profissional da saúde frente às torturas e, por fim, colocar nossas conclusões e propostas.
Alguns aspectos do desenvolvimento político-social do Brasil
O terror, a tortura Intitucionalizada
A organização da repressão e dos centros de tortura
O Suporte financeiro da tortura
Métodos, funcionamento e eficácia da tortura
Atuação do profissional de saúde frente às torturas
Alguns aspectos do desenvolvimento político-social do Brasil
Nós entendemos e caracterizamos a repressão como uma das formas de manutenção do poder do Estado. Nesse sentido, devemos analisá-la dentro do contexto da luta de classes que se desenvolveu e se desenvolve no Brasil. Isto significa, de um lado, apreender a estrutura social brasileira dentro da sua dinâmica histórica particular e, de outro, localizar a posição que a estrutura repressiva ocupa dentro desta.
No início da década de 60 observa-se no país um crescente aumento do movimento popular. Tanto os trabalhadores urbanos, como os rurais, procuravam se organizar na tentativa de conquistar um espaço político para se fazer ouvir e, mais ainda, dar novos rumos políticos voltados aos seus reais interesses.
Setores da classe média, junto com os trabalhadores, compunham um amplo movimento que reivindicava melhores salários, reforma agrária, nacionalização da exploração dos recursos naturais, democratização do sistema de ensino e de saúde, alfabetização (movimento de educação de base através do método desenvolvido por Paulo Freire) etc.
A classe dominante viu-se ameaçada nos seus privilégios. Vislumbrava-se potencialmente a possibilidade da estrutura de poder ser posta em "xeque". Na medida em que os setores populares fossem se organizando, não só em termos reivindicatórios, mas politicamente, abria-se a possibilidade de uma reviravolta no poder.
Ao mesmo tempo existiam interesses contraditórios dentro das classes dominantes. Setores da burguesia monopolista (industrial e financeiro, por exemplo) não encontravam um espaço político adequado para expressão e execução de seus interesses no governo de João Goulart. Interesses que implicavam na reformulação da estratégia de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
As elites dominantes, representadas pelos militares, dão um golpe de Estado no dia 31 de março de 1964, a que chamaram de Revolução pela "ordem, segurança e desenvolvimento". Na realidade foi uma contra-revolução para a manutenção do seu poder, agora sob novas formas. A Junta Militar extingue os partidos, destrói as organizações populares, suprime os direitos de greve e livre organização, censura os meios de comunicação, cassa os mandatos, principalmente de parlamentares eleito por sua vinculação aos interesses populares. Destrói, enfim, qualquer forma de organização e oposição.
Do ponto de vista da política econômica, implanta-se um arrocho salarial violento, que vai ser um dos pilares do desenvolvimento capitalista, agora marcadamente monopolista.
Nesse primeiro golpe os grandes atingidos são os trabalhadores rurais e urbanos. A pequena burguesia não foi duramente atingida. Ela mantém, ainda, um certo espaço de expressão e atuação. E será principalmente nesse segmento social que ressurgirá o movimento de oposição ao regime.
Com a crescente monopolização da economia, a pequena burguesia perde seus canais de ascensão social. Nesta nova situação ocorrem milhares de falências ou incorporação dos pequenos e médios negócios pelas grandes empresas nacionais ou multinacionais. A queda do poder aquisitivo, a restrição à participação política, o estrangulamento do acesso ao ensino superior (principal via de ascensão social), aprofundam as contradições com o regime militar.
Cabe lembrar que, no plano internacional, surgiram movimentos de contestação, fundamentalmente pequeno-burgueses, nos diferentes países, com diversas colorações. No Brasil, as contradições desta parte da sociedade vão ser canalizadas politicamente de maneira rápida.
Nos anos 66, 67 e 68 milhares de pessoas, principalmente estudantes e intelectuais, ocuparam as ruas, as escolas, muitas vezes entrando em choque com a polícia, reivindicando melhores condições de ensino, fim da ditadura militar e fim da dominação imperialista
Ao mesmo tempo, em novos pólos industriais na cidade de Osasco (São Paulo) e Contagem (Minas Gerais), surgem movimentos operários com um novo caráter: menos corporativistas, incorporando as bandeiras levantadas pelos movimentos pequeno-burgueses e, utilizando novos métodos de luta (ocupação de fábrica, passeatas e choques com a polícia).
Dentro do novo contexto de movimentação, agudiza-se do ponto de vista do regime militar o "perigo de subversão". Em dezembro de 1968, aprofunda-se o caráter ditatorial e repressivo do regime, através da promulgação do Ato Institucional n.º 5. É um golpe dentro do golpe que é aplicado à sociedade brasileira. Extinguem-se os espaços de expressão e atuação ainda existentes. A violência repressiva aumenta e seus métodos se sofisticam.
A radicalização do sistema, rumo a um Estado policial onde a repressão se institucionaliza, exige o aperfeiçoamento de todo um aparato político, militar, ideológico e jurídico que sustente essa radicalização.
Se, até mesmo antes de 64, já existia uma legislação de segurança nacional específica, esta se torna cada vez mais abrangente: a Lei de Segurança Nacional adquire um conteúdo cada vez mais repressivo, tendo o papel político de dar cobertura formal à violência institucionalizada e definindo o grau de abrangência do que é considerado crime contra o Estado, O Executivo, centralizador do poderio político-econômico, incapaz de absorver uma oposição mais séria, decreta os vários atos institucionais e complementares que trazem decorrências jurídicas, como, por exemplo, a extinção do, habeas corpus. Estabelece eleições indiretas e em 66 criam-se artificialmente dois partidos: ARENA e MDB no qual o MDB tem a função de partido de "oposição" consentida. E proíbe-se a organização de quaisquer outros partidos que não esses.
Continuando no rumo do aperfeiçoamento de seu aparato repressivo, uma Junta Militar, que governa o país em fins de 69, longe de qualquer contribuição do Congresso Nacional, estabelece algumas formas jurídicas que acompanham esse aperfeiçoamento: Código Penal Militar, Código do Processo Penal Militar, Lei da Organização Judiciária Militar, Lei de Segurança Nacional.
A ditadura instalada em 64 consegue, desta forma, implantar seu projeto político e econômico e de organização social. Projeto este que tem como um de seus pilares de sustentação, no plano econômico, o arrocho salarial, que garante os gordos lucros dos patrões.
A disparidade entre o desenvolvimento econômico e o social é evidente. Enquanto existe um incremento na produção, a miséria social se acentua: a mortalidade infantil aumenta: 82 de 1000 crianças nascidas vivas, em média (São Paulo), morrem antes de chegar a 1 ano de idade, sendo que muitas vezes esse índice é bem mais elevado se levarmos em conta as regiões e os locais mais pobres do país. A escolaridade é um privilégio: apenas 30% da população conclui o curso primário, com a média de 2% chegando ao ensino superior. Tanto saúde como educação caem no total descaso do governo e o Estado se desobriga paulatinamente da prestação desses serviços aos setores populares.
Dá-se um aumento significativo no número de favelas, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos, incrementado por um novo tipo de morador: o trabalhador de baixa renda, marginalizado pelos altos preços dos aluguéis.
O problema do menor abandonado se agudiza, atingindo o absurdo número de 20 milhões (1/6 da população total).
A política do arrocho salarial, junto com o crescente aumento do custo de vida, minimiza cada vez mais as condições de vida da grande maioria da população, especialmente dos trabalhadores, Esta minimização das condições de vida também é uma forma de repressão – a econômica. As extensas jornadas de trabalho, o transporte escasso e desconfortável, a precariedade das habitações, a falta de poder aquisitivo, de lazer, saúde e educação, enfim a sobrevivência da violência cotidiana, tem sua contribuição na apatia da grande massa.
A burguesia consegue manter esse sistema de exploração, exercendo seu domínio em vários níveis. Num desses níveis se situa o controle ideológico sobre toda a sociedade, principalmente sobre a massa trabalhadora.
Esse tipo de controle assume várias facetas e é exercido através de várias instituições: escola, família, setores da igreja, como também através dos vários canais de expressão que a classe dominante mantém sob sua hegemonia: rádio, TV, grande imprensa, etc.
A dominação cultural-científica impõe os valores, o saber, os costumes da burguesia, tentando destruir a vontade, a cultura e a inteligência da massa. Massa esta da qual se tenta apagar a memória própria, destruir sua história, tirar sua cultura, assim como tirar sua produção, suas terras. Induz-se a um relacionamento social na base da competição e do individualismo, onde cada qual tenta salvar sua pele. São métodos que cumprem o objetivo político bem claro de perpetuar um sistema em que apenas uma minoria decide e tem para si os frutos do trabalho da grande maioria que sobrevive apenas, não vive.
Com o fim de aprimorar esse tipo de controle ideológico, os militares golpistas de 64 censuram aberta e descaradamente a imprensa e as diversões públicas, visando o controle de todas as informações, o cerceamento ao livre debate de idéias. Teatros são invadidos, jornais e revistas são apreendidos e fechados; artistas, jornalistas, estudantes, intelectuais vários são presos, perseguidos, torturados, exilados, assassinados. É o terror no meio cultural e artístico.
Nas escolas se prega a doutrina da "segurança nacional". As disciplinas vão estar a serviço da reprodução e manutenção do sistema capitalista.
Nos locais de trabalho, as listas negras a exigência de atestados criminais e ideológicos, a "segurança interna", convergem para cercar aqueles que se colocam em oposição à ordem social estabelecida.
O terror, a tortura Intitucionalizada
A forma de dominação de uma classe sobre a outra comporta, porém, um número bastante grande de variáveis.
Nessa medida, o regime não se furta em usar o terror, o arbítrio, a tortura e uma estrutura judiciária que absorva tudo isso, para os casos de questionamento real ou imaginário ao seu projeto político e de organização social. Desde o mais obscuro cabo de delegacia do interior até os altos funcionários, oficiais e "agentes de segurança interna", o aparato ideológico da violência é o mesmo: mudam apenas as formas como ela é racionalizada ao nível de seus agentes. Desde o combate à chamada marginalidade até o combate à chamada subversão, o espírito é o mesmo. A arbitrariedade policial, esquadrão da morte, tortura institucionalizada, assassinatos de militantes revolucionários, operários, camponeses, religiosos, estudantes, intelectuais ou mesmo pessoas meramente suspeitas de serem opositores, tudo isso é uma rotina aos olhos da justiça de classes.
A necessidade de reprimir com violência tanto a população de maneira geral, como grupos diferenciados numa população (opositores políticos e os chamados criminosos sociais) obviamente cumpre finalidades políticas muito precisas.
Os agentes policiais, respaldados pela impunidade, seqüestram, prendem, assassinam operários, estudantes, religiosos, menores; enfim, a grande parte da população está sujeita à onipotência e violência policial, enquanto que os tribunais das classes dominantes demonstram sua parcialidade absolvendo os crimes da sua própria classe.
A organização da repressão e dos centros de tortura
Existe uma vasta e complexa estrutura de repressão e tortura, unificada sob a égide do sistema DOI-CODI, com a hegemonia das Forças Armadas. Dentro dessa estrutura, podem-se distinguir três níveis diferenciados para seu funcionamento: os centros políticos onde se cria e decide a política repressiva; os setores meramente operacionais e os que se ligam diretamente com a instância judiciária.
Ligados pelo CODI (Centro de Informações de Defesa Interna), ao comando nacional de repressão (Conselho de Segurança Nacional, Serviço Nacional de Informações, Centro de Informações do Exército, Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica, Centro de Informações da Marinha), os DOIs (Departamento de Operações Internas) congregam em nível regional os órgãos repressivos das três Armas, mais a polícia política, a Polícia Militar e os grupos especiais de operações, todos eles subordinados diretamente ao Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). A tortura institucionaliza-se, portanto, a partir dos próprios centros de poder, por seus canais mais diretos. Todos esses canais, de uma forma mais ou menos direta, veiculam e criam condições para que a tortura exista e seja aplicada.
Vê-se que os organismos de segurança crescem a partir de 64 e tornam-se cada vez mais importantes para a engrenagem do poder estabelecido. E, além dos organismos de segurança "oficiais", surgem os grupos para-militares de extrema direita que tem suas ações repressivas e terroristas acobertadas e respaldadas pelo Estado. Podemos citar como exemplos: AAB (Aliança Anticomunista Brasileira); Centelha, Voluntários da Pátria; MAC, CCC, entidades como a TFP etc.
O relacionamento entre os órgãos de repressão e os grupos paramilitares é ainda mais explícito e descarado em alguns casos. Por exemplo, um desses grupos, auto-denominado de Braço Clandestino da Repressão, chega ao ponto de seqüestrar indivíduos, ínterrogá-los em cárcere privado, e deixá-los posteriormente na rua para serem apanhados pelos órgãos de "segurança", com o recado de que já tinham sido interrogados.
O Suporte financeiro da tortura
A fim de que todo esse vasto e bem estruturado aparato repressivo funcione a contento, existe a necessidade de um apoio financeiro. Esse apoio tem sua sustentação nos cofres públicos, embora necessariamente complementado pela contribuição (em dinheiro vivo, equipamentos, tecnologia etc.) direta da classe exploradora.
Outro requisito necessário para a sustentação desse aparato é a formação de "agentes de segurança" que cumpram com eficácia suas funções. Para tanto se utilizou o que o próprio regime definiu como estado de Guerra Interna. Nas próprias palavras do então presidente Castelo Branco, em 15 de março de l967, "o conceito tradicional de defesa nacional coloca mais força sobre os aspectos militares da segurança e, paralelamente, os problemas de agressão externa. A noção de segurança é mais abrangente e compreende a defesa global das instituições; além disso, toma conta da agressão interna personificada na infiltração e subversão ideológica, formas hoje mais prováveis de conflito do que a agressão externa". Esta idéia fica mais clara nas declarações de um coronel ainda em serviço ativo, "…o que se argumentava era que se lutava contra um inimigo externo – o comunismo internacional – cujo exército estava infiltrado dentro da nossa própria população. Era uma situação semelhante à de um território ocupado, onde, pelo menos teoricamente, toda pessoa é potencialmente soldado inimigo. Por isso, todos os exércitos do mundo concedem. ao chefe do governo militar de uma zona de ocupação a autoridade de exercer a justiça sumaria.
Desta forma o Estado se atribui o direito e necessidade que a nível do privado é o direito de um indivíduo em situação extrema de cometer um crime, tratando-se até da vida de um inocente, para salvar a própria vida. Tal princípío, transposto para a relação entre o Estado e o indivíduo, justifica as medidas excepcionais de caráter repressivo o preventivo adotadas pelos governantes na defesa do Estado ou da Nação, quando se concretizam as ameaças, tentativas de… subversões, baseadas em antagonismos ou pressão de origem interna ou externa-interna. Tais medidas transpõem as regras que tutelam em época normal os direitos assegurados habitualmente pelos textos constitucionais e também pela Declaração Universal dos Direitos Humanos".
Esta concepção de Segurança Nacional é a base ideológica oficial sobre a qual se assenta a formação do torturador. As ações dos agentes de segurança foram justificadas pelo chamado "estado de guerra interna" e o torturador foi utilizado como instrumento desta política, e ele mesmo não se considerava um carrasco, mas sim um técnico de informações. Os torturadores nunca eram ou foram punidos, ao contrário, recebiam prêmios mensais, muito superiores a seus salários oficiais. Esses prêmios eram ainda mais reforçadores quando ocorria a eliminação de algum dirigente subversivo considerado particularmente perigoso. Desta forma, o torturador no Brasil foi não somente justificado oficialmente, mas também teve suas ações encobertas e até incentivadas, sendo o torturador o resultado grotesco do tipo de sistema que o produziu, do tipo de ideologia que o justificou e do tipo de política repressiva ofícíal que o alimentou.
A variedade e quantidade de métodos usados pela repressão indicam o alastramento da tortura enquanto método de controle social. Queremos levantar dois aspectos que contribuem para tal disseminação. O primeiro é o da eficácia. Segundo os órgãos de informação, os métodos de interrogação (tortura psicológica), aliados a técnicas de pesquisa criminal poderiam fornecer as informações desejadas, porém não de forma tão rápida e na mesma quantidade que a obtida através dos outros tipos de tortura, que incluem o suplício físico. Além de cumprir com o objetivo de recolher informação em curto prazo, a tortura física cumpriria, também de forma eficaz, um papel intimidatório, visando ainda, paralelamente, a quebra da resistência psicológica e ideológica.
O segundo aspecto, que gostaríamos de ressaltar, é o da impunidade de que gozavam os mandantes e praticantes da tortura. Dentro de um sistema em que os meios de comunicação de massa estão sob o total controle dos órgãos de segurança e se impõe, à quase totalidade da população, um silêncio intimidado, não puderam ocorrer denúncias ou exigências de apuração de responsabilidades na prática de torturas. Por outro lado, apesar de serem universalmente consideradas ilegítimas, foram não só justificadas como também incentivadas pelo poder estatal, que também as protegeu e as ocultou da opinião pública nacional e internacional.
A eficácia da tortura e a impunidade de seus mandantes e executores são dois, entre outros fatores, que contribuíram para a manutenção "oficiosa" de tal prática e a multiplicidade de métodos concebidos. A seguir faremos uma listagem dos métodos de tortura mais conhecidos e utilizados em nosso país.
1) Choque elétrico
2) Pau-de-arara
3) Cadeira de dragão
4) Afogamento
5) Telefone
6) Palmatória
7) Espancamento
8) Esbofeteamento
9) Empalamento
10) Queimadura com cigarros
11) Geladeira
12) Mordida de cachorro
13) Coroa de Cristo
14) Violação sexual
15) Arrancamento de dentes
16) Injeções de éter subcutâneas
17) Arrancamento de unhas
18) Soro da "verdade" (Pentotal)
19) Fuzilamento simulado
20) Ameaça de morte (à própria pessoa, filhos, companheiros, etc)
21) Assistir à tortura de companheiros
22) Aplicar torturas em companheiros
24) Desorganização temporo-espacial
Na relação acima, podemos observar a existência de métodos que privilegiam o ataque à integridade física e outros à psicológica.. Devemos ressalvar, no entanto, que apesar de algumas técnicas terem num plano primário a promoção da dor física, propõem, concomitantemente, uma desorganização emocional.
Quando uma pessoa. é levada para a sala de interrogatórios, o objetivo imediato é a quebra de sua resistência. Para este fim é utilizado todo um instrumental e "mise-en-scene", que ameaçam em primeira instância a sua integridade física, o que se constitui em permanente ameaça de morte. É importante ressaltar que toda sessão de tortura está ímersa num clima de hostilidade, em que o torturado é colocado em condição de inimigo e inferior, marcando-se claramente a atitude de prepotente superioridade do torturador, que explicita constantemente que mantém o poder e o arbítrio de vida e de morte sobre o seu oponente. Durante o interrogatório tenta-se, em princípio, estabelecer uma espécie de reflexo condicionado dos mais simples: quando o preso nega a informação se promove a dor, quando a confirma se retira o estímulo doloroso. Desta forma, primariamente, ataca-se a integridade física através da exposição intermitente à dor de variada intensidade e qualidade, e procura-se tornar prioritária a sobrevivência e a exigência de extinção da fonte de dor.
Essa compreensão é ainda superficial e rudimentar. Quando nos detemos a analisar os relatos de ex-presos políticos, observamos que o processo de tortura tem desdobramentos mais complexos. Numa sessão de interrogatório e torturas, ocorrências como micção, evacuação ou emissão de esperma, involuntárias, são respostas fisiológicas esperadas em tal situação. O torturado, no entanto, as vivência por um lado, como vergonhosas ou humilhantes – em função da aprendizagem social que reforça o caráter privado e a necessidade de controle de tais ocorrências- por outro lado, como alteração ou perda mais geral de seus controles, significando, para o preso, indício de fraqueza ideológica, diminuição da capacidade de resistir, demonstração de medo, etc.
Neste caso, se observa que o esquema simples de reflexo condicionado não explica totalmente o fenômeno descrito. Se por um lado, objetivamente existe a apresentação de um determinado estímulo (promoção ou retirada da dor), a um determinado comportamento (negar ou confirmar informações); por outro, percebemos a existência de toda uma mediação subjetiva e psicológica da situação. O torturador, frente a resposta físiológica (objetiva) não a interpreta somente como um descontrole orgânico mas e principalmente como indício de descontrole emocional (medo). Por outro lado, o torturado pode perceber tais ocorrências não somente como descontrole corporal, mas como a perda da capacidade de comando geral (cognitivo, emocional, ideológico). Outros relatos nos remetem à mesma multiplicidade de fatores integrantes do processo de torturas. O pau-de-arara, assim como o choque elétrico, que num primeiro plano objetivam o suplício físico, a nos pautarmos pelos depoimentos de alguns prisioneiros políticos, promovem também uma desorganização psicológica. Submetidos ao pau-de-arara descrevem a ocorrência do adormecimento dos segmentos ou extremidades do corpo, sensações estas objetivas e concretas, e completam com avaliações subjetivas – "era como se essas partes não fizessem mais parte de mim" ou "senti como se tivesse perdido mãos e pés, como se tivesse sido mutilado". O choque elétrico, que no plano corporal promove uma reação muscular de intensidade variável é, fora desse plano objetivo, relatado como "parecia que eu não ia parar mais de sacudir" ou "eu pensei que o meu corpo tivesse se rebelado e não voltasse mais ao meu comando".
Alguns métodos de tortura são concebidos para cumprir, mais especificamente, o objetivo de desestruturação psicológica: é o caso das técnicas de desorganização sensorial, utilizadas no método chamado "geladeira", em que a manutenção de um prisioneiro em cubículo impõe limitações à organização do movimento e ao exercício das possibilidades posturais, propondo não só a restrição do espaço físico mas também do espaço psicológico; a permanência em celas contínua e fortemente iluminadas, a disposição aleatória dos intervalos de refeição, as mudanças bruscas de intensidade ou freqüência dos sons, queda ou elevação rápida de temperatura, além da inexistência de registradores do tempo social.(relógios, calendários, etc.) impedem a percepção de qualquer ordenação sistemática, destroem a lógica das sucessões e dos referenciais externos – em geral estáveis e bem definidos, como a passagem das horas, da gradativa-passagem do calor para o frio, etc. – e tem por finalidade desintegrar os referenciais internos – certezas, objetivos, valores etc. – e tornar o torturado incapaz de realizar qualquer avaliação, de estabelecer critérios do que é ou não importante e, desta forma, aumentar a possibilidade dele fornecer informações.
Levantaremos, finalmente, um outro aspecto que é integrado no funcionamento da tortura, ou seja, o aspecto ideológico. O nosso objetivo é mais o de relatar algumas técnicas que propõem a desorganização ideológica, sem nos determos na análise da ideologia do torturador ou torturado. Aleatoriamente intercalam-se entre as sessões de torturas, conversas com indivíduos que se apresentam como "amigos" e tentam com o recém-torturado um relacionamento "amistoso" e "eivado de solidariedade". Mostram-se como aliados contra as práticas da violência, criticando seus próprios colegas. Procura-se, através da captação da simpatia do prisioneiro, além de obter dele informações, sua cooptação ideológica. Uma outra variante são as sessões de "grupo~terapia", nas quais o coordenador, que se auto-denomina psicólogo ou psiquiatra, substitui o anteriormente citado "amigo solidário", com os mesmos objetivos.
Assim, observamos que, nos mais variados tipos de tortura, há um denominador comum, base da eficácia de todos eles, que é a tentativa de promover uma desorganização afetivo-emocional e ideológica. A1ém de enfraquecer a capacidade cognitiva através de experiências concretas de descontrole corporal impostas pela tortura física, o prisioneiro é defrontado constantemente com situações conflitivas – dá informações ou deverá torturar um companheiro, delata companheiros ou assistirá à tortura do filho – cujas resoluções dependem de uma ponderação equilibrada dos afetos o emoções por um lado e das certezas dos objetivos e convicções políticas por outro, ou seja, da estrutura psicológica e ideológica, ambas também severamente atacadas pela tortura.
A desorganização, do funcionamento físico e psíquico, proposta pela tortura se tornará responsável pela gradativa perda dos referenciais e conseqüentemente da capacidade de avaliação, podendo minar as trincheiras erguidas pelo torturado para proteger seus ideais e suas convicções.
O esquema de resistência individual à desorganização funcional promovida pela tortura pertence à esfera privada de cada um. Na medida em que as pessoas reagem diferentemente a estímulos ou provocações é possível que da mesma forma reajam de modo diferenciado à desorganização proposta. Sobre essa diferenciação de comportamento frente à tortura, inúmeras hipóteses são levantadas: alguns atribuem-na à diferença de formação do indivíduo, visão de mundo, concepções políticas, solidez da estrutura de personalidade, componente ideológico, etc. Outros, como pode ser observado em relatos de ex-presos políticos, privilegiam o componente ideológico, ou seja, a profunda convicção na justeza das causas e posições assumidas e defendidas, como fator de importância vital na capacidade de enfrentar e resistir à desorganização,
Tais hipóteses geram divergências de opinião; por isso, proporíamos discussões mais aprofundadas sobre essa questão.
Atuação do profissional de saúde frente às torturas
O regime de repressão, instaurado no país a partir de 1964, teve a colaboração direta e indireta de muitos profissionais de saúde, ou seja, enfermeiros e médicos que "recuperavam" torturados, para que estes pudessem ser submetidos a novas sessões de tortura; psicólogos que participavam do planejamento das estratégias das torturas; médicos que forneciam laudos falsos, acobertando sinais evidentes de torturas, ou ocultando a "causa mortis" real.
Um dos trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo dos Profissionais de Saúde do CBA/SP foi a denúncia pública dos profissionais de saúde que colaboraram direta ou indiretamente com as torturas.
A atuação de médicos ligados à repressão veio à tona em vários encontros de profissionais de saúde. Ex-presos políticos de São Paulo e Rio de Janeiro relataram terem sido atendidos, nos intervalos das sessões de tortura, por médicos que, após rápido exame clínico e controle de sinais vitais, autorizaram o prosseguimento das torturas, atribuindo os sintomas apresentados pelos "pacientes" ao exacerbamento de aspectos emocionais, sem comprometimento somático importante.
Diversos depoimentos foram recebidos, denunciando a participação de profissionais de saúde, principalmente médicos e enfermeiros, nas sessões de tortura, sem que, contudo, pudéssemos identificá-los. Já em Belo Horizonte (Minas Gerais), um medico, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Jean Paul, foi identificado e está sendo acusado de participação direta na tortura de presos políticos.
Através de levantamentos de laudos necroscópicos, recebidos de familiares de mortos pela repressão, pôde-se constatar que a maioria deles atestava como "causa mortis": atropelamento, suicídio e morte em tiroteios, sem relatar qualquer evidência de tortura, tal como queimaduras, equimoses, necroses etc. Tudo isso contraditava com os depoimentos e testemunhos de companheiros de cela, que presenciaram estas mortes no interior das prisões em consequência das torturas sofridas.
Poderíamos citar como exemplo o caso de Alexandre Vanucchi Leme, morto pela repressão em 1973 e cujos familiares entraram com um processo no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, no dia 23/8/79, denunciando e pedindo punição para os médicos Isaac Abramovich e Orlando Brandão. Tais médicos deram como "causa mortis" lesões traumáticas crâneo-encefálicas em conseqüência de atropelamento, ao tentar fugir. Não há referências, no exame necroscópico, a quaisquer ferimentos, constatados no cadáver, que se pudesse atribuir a torturas sofridas. E mais: ao quesito quarto (que pergunta se a morte foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel) responderam negativamente. Entretanto, segundo depoimentos de companheiros de prisão, Alexandre morreu em sua cela, vítima de torturas a que foi submetido, e apresentava sinais evidentes de maus tratos.
Baseada em pesquisas efetuada pelo Núcleo de Profissionais de Saúde do CBA/SP, a imprensa pôde divulgar nomes de outros médicos que tiveram procedimentos semelhantes, tais como: Paulo A. de Queiroz, Harry Shibata, Marcos de Almeida, Armando Canger Rodrigues.
Denúncias de outros profissionais, ligados à saúde, com práticas diferentes das citadas, puderam surgir em mesas-redondas:
a) Profissionais de saúde, com cargos de direção em instituições hospitalares estatais (como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) foram coniventes com a repressão, falseando ou omitindo o registro de presos políticos, que para lá foram levados em estado grave, como é o caso de Luis Hirata, internado em estado gravíssmo na Unidade de Transplante Renal do referido hospital com nome falso. Tal prática tinha como objetivo eliminar provas da existência de torturas, as quais, algumas vezes, levaram até à morte.
b) Médicos-legistas que participaram ativamente da ocultação de cadáveres. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, cujo corpo estava no Instituto Médico Legal, órgão subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. À indagação dos familiares, o diretor do IML, à época Dr. Arnaldo Siqueira, negou a presença de corpo nas dependências daquele órgão. Um dos parentes, burlando a vigilância do Instituto, descobriu o cadáver numa de suas geladeiras. O objetivo da ocultação de cadáver é o de impedir que os familiares, ao entrarem na posse do corpo, possam constatar as marcas da violência nele perpretado.
c) Médícos-militares que não deram assistência adequada a presos políticos internados nos Hospitais do Exército, Marinha o Aeronáutica. Há muitas denúncias relatando casos de prisioneiros que, devido a problemas decorrentes de uma patologia ou estado físico previamente existente: (diabetes, hipertensão, gravidez, ICC, epilepsia etc), ou decorrentes dos maus tratos e torturas sofridos, necessitavam ser removidos para uma enfermaria. Na maioria dos casos, abaixo especificados, era enfermaria de hospital militar:
c.1) alguns denunciam que receberam um tratamento inadequado. Por exemplo, o caso de uma grávida, que acordou com a bolsa amniótica rota. Foi vista, primeiro, por um médico-militar, que negou que ela estivesse com bolsa rota e prescreveu antibiótico, alegando tratar-se de ‘urina solta". O segundo, Dr. Trindade, ofícíal do exército, que constatou a bolsa rota, disse à paciente que necessitava induzir o parto, mas que só faria isso no dia seguinte, pois era quando estaria de plantão. A criança nasceu sem assistência média e a mãe ficou 27 horas com a bolsa rota.
c.2) outros denunciam o clima de hostilidade com que eram atendidos, contrariando a própria legislação de guerra, que protege os prisioneiros e determina que os inimigos feridos tenham o atendimento melhor possivel. Tal hostilidade, além disso, vai contra os princípios básicos da "relação médico-paciente"
c.3) Cabe ressaltar que é impossível que o Conselho Regional de Medicina exerça qualquer vigilância ética sobre os médicos militares, pois estes não se subordinam aos Conselhos e, sim, a seus superiores hierárquicos. Isto impossibilita toda tentativa de investigação das denúncias de mau atendimento nos hospitais militares. Informações sobre o que acontece nas dependências militares não são fornecidas, sob alegação de tratar-se de "assuntos de segurança nacional".
Por outro lado, profissionais de saúde se opuseram ao emprego do seu conhecimento técnico-científico a serviço da tortura.
Nos anos de maior repressão, quando os direitos de manifestação, expressão e organização estavam praticamente abolidos, tal oposição se deu de uma maneira dispersa, isolada, individual, sem muita eficácia. Restringiu-se ao atendimento profissiona1 de ex-presos políticos ou foragidos, que necessitavam de atenção à saúde, acompanhamento de seqüelas de tortura, ou tratamento de patologias que se agravaram com as péssimas condições carcerárias.
Psicólogos, dentistas, médicos, enfermeiros, por exemplo, atenderam a inúmeros casos, havendo ex-torturados que necessitaram de acompanhamento por períodos prolongados. Algumas instituições de psicologia, como é o caso de Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, acompanharam muitos presos e ex-presos políticos, dando-lhes o necessário atendimento psicoterápico. Por razões éticas e de segurança, não podemos divulgar o nome desses profissionais, que resistiram, da forma que puderam, aos crimes de uma ditadura, que ainda se mantém, embora em transformação.
À medida em que amplas camadas populares foram conseguindo romper os limites a elas impostos, vemos que tal oposição dos profissionais de saúde se torna mais organizada. Surgem denúncias, cada vez mais constantes, profissionais se unificam, para dar assistência mais adequada, Surge o Núcleo de Profissionais da Saúde. No meio da categoria de saúde inicia-se a campanha contra as torturas e contra a participação de profissionais da área em tais práticas. Buscam-se formas de punir médicos, psicólogos etc., que colaboraram com a repressão, como é o caso da entrada de processos. no Conselho Regional de Medicina, que adotou a Declaração de Tóquio, pedindo a cassação de mandato profissional etc.
A definição e o posicionamento mais claros contra as torturas, se constituem num avanço da luta; no entanto, face à tortura ainda exístente, que hoje se abate principalmente sobre o preso comum, face à manutenção dos órgãos de repressão e à permanência de leis ditatoriais, como a Lei de Segurança Nacional, por exemplo, nossas conquistas são ainda poucas e as medidas adotadas ainda insuficientes para por fim à estrutura repressiva vigente.
É necessário que se mobilize todas as categorias da área de saúde. É necessário buscar formas cada vez mais organizadas de combate à tortura e a seus agentes.