Nossa fome cotidiana
“O que tem todo dia pra gente comer é arroz e farinha mesmo, feijão só mais de vez em quando. Subiu muito, né?”, diz Rogéria Maria da Silva Lima enquanto lava as louças de uma das duas refeições diárias da família. Ela mora com os três filhos e o marido em uma casa de taipa no bairro mais pobre de Ipaumirim, no sertão cearense, fronteira com a Paraíba. A renda da família gira em torno de 130 reais por mês, divididos entre os 94 reais que recebem por terem dois filhos inscritos no Bolsa Família (a menor, Ranieli, ainda não foi cadastrada) e outros 30 ou 40 reais conseguidos em bicos pelo marido José Marcio dos Santos.
Uma vez por semana, aparece carne no prato da família, normalmente frango, aqui e ali um pouco de carne. Menos de uma vez por semana Marcio compra “salada”: um tomate ou uma cebola, divididos entre os cinco familiares. Os alimentos mais consumidos são farinha, arroz e leite. Se dependesse das crianças, comeriam macarrão instantâneo todos os dias. Com o Bolsa Família, Rogéria compra biscoitos de água e sal, um litro de óleo, um pote de margarina, sabão, uma ou outra peça de roupa e eventualmente um chinelo. A água vem do poço, o fogão é a lenha e a eletricidade, dividida com o vizinho. Com o Bolsa Família, dá para “agüentar o mês”.
As crianças inscritas no programa, Renata, de 3 anos, e Marcio Júnior, de 7, freqüentam a escola regularmente. Se faltam, é porque estão com disenteria, o que a mãe já perdeu a conta de quantas vezes aconteceu. Não há esgoto no bairro.
A dureza cotidiana e o desafio de colocar comida no prato todos os dias são a realidade de milhões de brasileiros, parte deles atendida pelo Bolsa Família. Alvo de preconceitos, o programa federal acaba de passar por uma varredura que revela, em detalhes, o impacto real nas famílias atendidas.
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) está prestes a divulgar os resultados da pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas, que CartaCapital traz com exclusividade. Para chegar aos dados a seguir, o Ibase fez entrevistas qualitativas com 15 grupos de beneficiários e de gestores municipais do programa. Em seguida, saiu a campo para entrevistar 5 mil titulares do cartão Bolsa Família, em 229 municípios de todas as regiões do País.
“Além de questionar se estavam se alimentando mais e melhor, buscamos saber como decidem diante da escassez”, explica Francisco Menezes, diretor do Ibase e coordenador da pesquisa. Entre as constatações, nas famílias de renda mais baixa, aumentou o consumo de cereais, principalmente arroz e feijão, alimentos que declinam na dieta brasileira. No geral, os atendidos pelo programa priorizam alimentos calóricos, ditos fortes, e de menor valor nutritivo.
Ao longo das mais de 200 páginas da apresentação final, percebe-se que a atitude de Rogéria, que não deixa faltar farinha enquanto a família mal sabe o que é uma fruta fresca, é igual à das mães (as mulheres são 94% dos titulares do programa) em nível mais grave de insegurança alimentar. “Faz muita diferença se a família está em situação de extrema fragilidade ou se já tem uma base”, diz Menezes. Ele teme que o aumento mundial no preço dos alimentos represente “enorme retrocesso” às conquistas do programa.
O presidente Lula empenhou-se em garantir que o novo reajuste no repasse às famílias eliminasse as perdas da inflação no preço dos alimentos. O aumento, anunciado na quarta-feira 25, será de 8% e passa a valer a partir de julho. Com a mudança, cada família beneficiada passará a receber de 20 a 182 reais por mês, de acordo com a renda mensal por pessoa e com o número de crianças e adolescentes até 17 anos. As famílias mais pobres recebem o benefício básico, de 62 reais. Cada filho em idade escolar (até três) dá direito a mais 20 reais, e cada adolescente (até dois), a 30 reais. O benefício é pago desde que os filhos freqüentem a escola e sejam vacinados regularmente.
Mal saiu o reajuste e políticos da oposição contestam o programa que, apesar de ser regido pela Lei Federal 10.836, é acusado de ser eleitoreiro, de criar acomodação ou de ser mero assistencialismo (leia quadro). No entender de Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, esse raciocínio se deve a uma visão economicista da sociedade, mas é, essencialmente, uma questão ideológica. “Esses mitos se devem a setores cada vez mais minoritários, encastelados em instituições de poder, que mantêm uma ideologia decorrente da escravidão, do coronelismo, das capitanias hereditárias e do mandonismo, ainda que revestidas de uma falsa modernidade.”
A pesquisa do Ibase vasculha a fundo o Bolsa Família. Além de apontar mudanças reais na alimentação dos beneficiários, pode ser confrontada com os principais mitos a respeito do programa.
“Não existe fome no Brasil”
Existe. Ainda que tenha havido avanços, a fome é uma realidade para milhões de brasileiros. A partir das discussões geradas pelo Fome Zero, em 2003, conforme a nutricionista da Unicamp Ana Segall, os indicadores baseados apenas na renda foram substituídos: “Há um imaginário um pouco estilizado da fome, mas ela pode ser algo cotidiano”. A partir de 15 perguntas sobre oferta e quantidade de comida, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar determina se a situação é grave (fome entre adultos e/ou crianças da família), moderada (restrição na quantidade de alimento) ou leve (receio de faltar comida no futuro próximo). Mais da metade, 55% das famílias atendidas pelo Bolsa Família estão em situação de insegurança alimentar moderada ou grave (tabela ao lado). São 6,1 milhões de lares, ou cerca de 30 milhões de brasileiros, segundo o Ibase.
“O Bolsa Família não chega a quem precisa”
Na avaliação da secretária nacional de Renda de Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social, Rosani Cunha, o programa está próximo de atender os mais pobres. Ele se dirige a 11,1 milhões de famílias, aproximadamente 50 milhões de brasileiros. “O mais difícil é chegar às famílias mais vulneráveis, quase invisíveis”, admite, referindo-se àquelas com endereço precário, submetidas a trabalho escravo, indígenas ou quilombolas, para as quais o MDS desenvolve credenciamento diferenciado. “O programa chega às que precisam, mas não a todas”, diz Menezes, baseado na pesquisa do Ibase, segundo a qual 60% dos entrevistados disseram conhecer quem precise do programa e não o receba.
“O programa é assistencialista”
Há uma diferença entre assistência social, direito essencial dos cidadãos, e assistencialismo, que visa tirar proveito político e eternizar o dependente. “No Brasil, há desprezo e cinismo quanto ao direito à assistência do Estado”, alfineta Menezes. “Embora não se possa negar o peso na reeleição do presidente Lula, o Bolsa Família não é uma política de governo, é uma política de Estado, regida por lei.” Segundo o Ibase, 64% dos titulares concordam com a exclusão das famílias que não cumprirem as contrapartidas (manter os filhos vacinados e estudando). “A defesa das condicionalidades é uma resposta a essa crítica”, diz Rosani Cunha, “pois mostra que há uma responsabilidade do Estado e uma do beneficiário”.
“Receber o Bolsa Família acomoda”
O suposto efeito preguiça é a crítica mais contumaz ao programa. “A pesquisa desmente cabalmente essa afirmação”, diz Menezes. Os números são claros: 99,5% dos pesquisados não deixaram de trabalhar (ou fazer algum tipo de trabalho) depois do Bolsa Família. “Entre os 0,5% que deixaram ocupações, a maioria exercia trabalho degradante, como os cortadores de cana do Nordeste. Se disseram não a um trabalho indigno, é uma conquista de cidadania.”
A pesquisadora do Ibase, Mariana Santarelli, afirma que, nas entrevistas qualitativas, o maior desejo dos beneficiados era conseguir um emprego e, em segundo lugar, emprego com carteira assinada. Quando questionadas sobre até quando receber o benefício, 20% disseram “para sempre”, porcentual considerado baixo e atribuído, na maioria, aos habitantes de áreas rurais sem perspectiva: “É importante ver que 80% dos pesquisados têm esperança de ingresso no mercado de trabalho”.
Rosani Cunha ataca a raiz: “Essa crítica é ideológica, não tem base em número real”. Ela cita dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (Pnad) de 2006, em que o nível de ocupação entre os atendidos pelo Bolsa Família é maior do que entre os não beneficiários (77% a 73,8%). “Há uma busca por trabalho, mas como muitos não têm escolaridade, não saem da pobreza.” A secretária aposta na escolaridade como oportunidade de emancipação. E Menezes, na integração de políticas públicas.
Em Osasco, arredores de São Paulo, a prefeitura aproxima os programas de transferência com os de geração de renda. “O segredo é apresentar alternativas ao mesmo tempo que atendemos à necessidade imediata”, diz Dulce Cazunni, secretária do Desenvolvimento, Trabalho e Inclusão do município. A transformação é visível no dia-a-dia das iniciativas centralizadas pela prefeitura.
A maior parte das mulheres carentes que freqüentam a oficina de costura recebe o benefício federal (há 20.157 titulares do Bolsa Família na cidade). Elas produzem os uniformes da rede municipal de ensino. Este ano, 457 mil peças sairão das mãos de gente como Daniela de Jesus Gregório, de 24 anos, mãe de Ryan, de 5 anos. “Eu não sabia nem sentar numa máquina. Vi essa chance e agarrei”, diz a jovem, que vivia de bicos e agora recebe a bolsa de 450 reais da prefeitura. “Hoje, tenho segurança para fazer um teste numa empresa.”
Além de aprender a profissão, Edilene Lídia de Souza, de 32 anos, e outras 27 mulheres, com apoio dos programas de Economia Solidária da cidade, montaram uma cooperativa de costureiras. Edilene, que estudou até a 6ª série, diz que a oportunidade de trabalhar mudou sua vida. “Comecei a ver portas abertas para mim. Sou uma pessoa, tenho potencial.”
“O pobre não sabe usar o dinheiro”
Na pesquisa do Ibase ou em qualquer outra sobre o Bolsa Família, a primeira resposta sobre “em que o dinheiro é gasto” é alimentação. No Nordeste, 91% dos titulares do programa apontaram a comida. No Sul, 73%. No geral, com opção de até três respostas, os beneficiários disseram gastar em alimentação (87%), material escolar (46%), vestuário (37%), remédios (22%), gás (10%), luz (6%), tratamento médico (2%), água (1%).
“A alimentação consome 56% da renda total das famílias”, afirma Menezes. “A razão para não comprarem mais é o preço”, complementa Santarelli. De acordo com o Ibase, após o recebimento do benefício, foi possível comprar mais alimentos dos seguintes grupos: açúcares (78%), arroz e cereais (76%), leite e derivados (68%), biscoitos (63%), industrializados (62%), carnes (61%), feijões (59%), óleos (55%), frutas (55%), ovos (46%), raízes (43%) e vegetais (40%). O aumento no consumo de biscoitos, óleos e gorduras, açúcares e industrializados não é saudável, e segue uma tendência nacional, já observada pelo IBGE.
A dieta dos beneficiários do Bolsa Família se diferencia da tendência no aumento do consumo de arroz e feijão, principalmente nas famílias em situação precária. Estas, no entanto, optam por alimentos calóricos em lugar dos nutritivos (mais caros). “Uma dieta muito energética dá a falsa impressão de que a fome acabou. É um ciclo perverso que leva à obesidade”, alerta Ana Segall. Nas famílias que já têm o básico, o Bolsa Família permitiu acesso a alimentos “complementares”, como frutas, verduras e industrializados, além da carne. Nos grupos focais, as mães disseram poder oferecer aos filhos o que chamam de “lanche”, biscoito recheado e iogurte.
“Não acho que não seja digno comprar um tênis para o filho, um ventilador, panela de pressão. Se a mãe tem condições de administrar esse dinheiro, está mais do que certa. Porque dignidade a gente tem que continuar tendo”. Quem ensina é uma mãe, beneficiária do programa, residente no Rio de Janeiro.
A regularidade na entrega do dinheiro possibilita que seja usado como garantia de crédito. A aquisição de eletrodomésticos, em vez de comida, foi muito criticada. “Comprar uma geladeira, um fogão é mau uso do dinheiro? Isso é uma arrogância”, crê Rosani Cunha: “Há preconceito em achar que o pobre não sabe escolher”.
A assistente social Maria de Lourdes Ferreira, moradora de Carapicuíba, nos arredores de São Paulo, é um caso raríssimo de renúncia voluntária ao Bolsa Família. “Eu dizia para mim mesma: não posso depender desses 15 reais do governo. Eu me revoltava”, diz. Aos 43 anos, perdeu um dos três filhos vítima de meningite, parou de estudar para cuidar dos outros dois e foi diarista para colocar comida em casa. Há seis anos, separou-se do marido e mudou a vida graças não ao Bolsa Família, mas a um somatório de iniciativas.
Maria cursou o pré-vestibular comunitário da ONG Educafro, e conseguiu bolsa integral na Universidade São Francisco. “Trabalhava como diarista e estudava à noite, eu não comia. Pedi o Bolsa porque vi as coisas apertarem.” O benefício era de 15 reais (hoje 20), mas fazia diferença. Ainda na faculdade, conseguiu um estágio remunerado e, com peso na consciência por ver gente “muito mais miserável”, decidiu cancelar o cartão. Hoje recebe bolsa de 470 reais mensais, de uma fundação vinculada ao governo estadual, para especializar-se na área. E sonha com uma vaga no serviço público.
Rosani Cunha, do MDS, reconhece que é preciso melhorar a comunicação do ministério com os gestores municipais do programa e com as famílias. Mas considera o Bolsa Família vitorioso porque alivia a pobreza imediata, reduz a pobreza nas gerações seguintes e integra-se a outras alternativas de desenvolvimento.
“O Bolsa Família é bem-sucedido no que se propõe, mas tem um limite. Não vai acabar com a pobreza”, diz Menezes, sem ilusões: “Transferir renda não resolve os problemas sociais”. Assim como Rosani, ele destaca a importância de outras iniciativas. Um exemplo é o Programa de Aquisição de Alimentos, do MDS, que liga a agricultura familiar aos consumidores. Ou o Pronaf, que dá crédito às famílias produtoras.
Em fevereiro deste ano, o governo federal lançou o programa Territórios da Cidadania para integrar políticas públicas nas áreas rurais mais miseráveis. “O que indevidamente se chama de grotões são ambientes onde vivem brasileiros que precisam de tratamento”, defende Humberto Oliveira, um dos coordenadores do programa que tem 12,9 bilhões de reais de orçamento. Com a participação de 24 ministérios e órgãos federais, a intenção é potencializar o efeito dos benefícios. “Além do Bolsa Família, programas como o Brasil Alfabetizado, cursos de capacitação profissional e acesso ao crédito também chegarão a essa família”, explica Oliveira, e vislumbra um futuro menos árduo para brasileiros como Rogéria e os filhos alimentados à base de farinha. “Ao juntarmos tudo, a possibilidade de este cidadão ingressar em uma atividade produtiva e gerar a própria renda é muito maior.”
*Colaborou Breno Castro Alves
A chiadeira de sempre Para alguns, o sucesso do Bolsa Família suscita ressalvas e poréns
Phydia de Athayde
“O Bolsa Família distribui renda sem porta de saída. É bom por um lado, mas não é bom habituar as pessoas à dependência”, critica o senador José Agripino. O líder do DEM também não vê com bons olhos o reajuste no repasse ao programa. “O governo aumenta o Bolsa Família para exibir um crescimento artificial do PIB. À medida que ofereceu renda àqueles que nunca puderam ter uma geladeira, um microondas, criou uma escalada de consumo baseada numa capacidade artificial de compra”, diz.
O senador Cristovam Buarque defende um repasse ainda maior aos beneficiados, mas critica a gestão do programa pelo MDS, e diz que o vínculo com a escola é fraco: “Sem melhorar a qualidade do ensino, não se vai emancipar as famílias da pobreza”.
Na Câmara dos Deputados, Nazareno Fonteles (PT-PI) tenta costurar a aprovação de um projeto de lei que influenciará diretamente os beneficiados do Bolsa Família, pois trata da merenda escolar. Além de estender a merenda ao ensino médio, visa aproximar o produtor do comprador. “Isso favorece o produtor local, produz renda, valoriza a cultura e a agricultura familiar”, diz o deputado. Ele explica que tem de haver uma hierarquia de necessidades e, por isso, é favorável ao aumento no repasse do Bolsa Família. O PL da Merenda tramitará em uma comissão especial. Até o momento, no entanto, está parado, pois o DEM e o PSDB insistem em não indicar seus representantes.
A cientista política Lúcia Avelar, da Universidade de Brasília, tem uma tese para a má vontade. Em uma análise acadêmica das últimas três eleições municipais (de 1996, 2000 e 2004), ela verificou o avanço dos partidos de esquerda a partir de 2000, e o recuo constante dos partidos de direita. “A transferência de renda cria um vínculo do eleitor com o Estado, sem intermediários, e este é o primeiro passo para um sentimento de cidadania”, diz. Entre os municípios com pior índice de desenvolvimento humano predominam o DEM e os partidos considerados de direita. “São locais tradicionalmente controlados pela elite financeira local. Por isso há tanta chiadeira”, conclui.