Constituinte e reforma política
O Brasil precisa urgentemente de uma reforma política, para correção de pontos frágeis do sistema normativo, relacionados com o funcionamento das instituições políticas, que vêm dando margem a abusos e imoralidades que comprometem o caráter democrático do Estado. As constantes e escandalosas práticas de corrupção de várias espécies, diariamente noticiadas pela imprensa, causam justa revolta e provocam reações indignadas de pessoas e organizações que lutam por uma sociedade justa e democrática. Alguns chegam a propor uma « ditadura temporária », desinformados ou esquecidos da tremenda corrupção promovida e acobertada pela ditadura que recentemente infelicitou o Brasil. Mas a grande maioria dos que propugnam por mudanças tem-se manifestado pelo aperfeiçoamento do sistema jurídico, pretendendo, por meios democráticos, estabelecer um sistema normativo que garanta efetivamente a prática da democracia e do Estado de Direito.
No encaminhamento das propostas de reforma política é preciso ter prudência e ponderação, para que não se perca tempo e energia debatendo propostas que, a rigor, não são necessárias, bem como para que não se caia num círculo vicioso, introduzindo reformas que serão apenas novas regras escritas, sem aplicação concreta, como vem acontecedendo com normas já existentes. Na realidade, muitas das práticas usuais de corrupção configuram uma ilegalidade por ofenderem preceitos legais em vigor, bastando, nesses casos, que a cidadania, sobretudo por meio de organizações sociais e associações representativas, aponte situações concretas e exija a punição dos corruptos. Para dar eficiência a essas manifestações, é muito importante o encaminhamento de denúncias formais ao Ministério Público, que, por disposições expressas do artigo 129 da Constituição, tem o dever constitucional de promover ação penal, quando a irregularidade configurar um crime, e de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Para tudo isso não é necessária qualquer reforma, bastando dar aplicação às leis já existentes.
Quanto às mudanças na Constituição, a prática já comprovou a necessidade de emendas, para mudança de dispositivos que, por sua imperfeição, vêm dando margem ao absoluto desrespeito ou à deturpação maliciosa, favorecendo a corrupção. Aqui é preciso fazer uma advertência quanto a uma das propostas já externadas, que subordina as mudanças à convocação de uma «constituinte exclusiva », que seria convocada para o fim limitado de estabelecer novas normas para o sistema político. Antes de tudo, há certa ingenuidade nessa proposta, pois ela é reveladora de uma descrença na Constituição. Com efeito, a aplicação dos preceitos já constantes da Constituição vigente, que estabelece, inclusive, o mecanismo para sua própria reforma, dá o caminho jurídico para o aperfeiçoamento do sistema. Se alguém põe de lado essa Constituição, elaborada democraticamente, com intensa participação popular, não é lógico que confie em emendas elaboradas pelo mesmo processo. A par disso, como expressamente reconhecem os autores dessa proposta, a convocação de uma constituinte exclusiva só poderá ser conseguida com a provocação de uma mobilização nacional. Evidentemente, se houver essa mobilização nacional será derrubada a barreira oposta pelos atuais integrantes do Congresso Nacional e a Constituição será regularmente emendada, aperfeiçoando-se o sistema político sem desrespeito à Constituição vigente e sem o risco de que, sob pretexto de reforma política, sejam revogados preceitos garantidores dos direitos sociais.
*Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor de Teoria do Estado