O PSB e as origens do socialismo democrático no Brasil
Por Gleyton Trindade
Em grande medida, a ainda inconclusa democracia brasileira é tributária das mobilizações da esquerda nacional que soube lutar pela constituição de direitos e liberdades fundamentais em contextos de autoritarismo e intolerância política. Tributária especialmente de um socialismo democrático brasileiro articulador de uma consciência democrática presente em setores importantes da intelectualidade e dos movimentos sociais do país. Este socialismo democrático constituiu-se em patrimônio da cultura política brasileira atual e compõe o quadro de lutas pela ampliação do reconhecimento de direitos e de cidadania democrática. No entanto, qual seria a origem deste socialismo democrático no Brasil? Como compreender o aparecimento desta esquerda democrática num contexto político frequentemente marcado pelo autoritarismo e desrespeito aos princípios mais básicos da democracia?
Descortinar as origens deste socialismo democrático é a tarefa do livro Semeando Democracia: a trajetória do socialismo democrático no Brasil de Miracy Gustin e Margarida Vieira (Contagem: Editora Palesa, 1994). Na verdade, temos aí desvendada a origem e a experiência singular do Partido Socialista Brasileiro durante o período democrático entre 1945 e 1964. O ponto de partida da obra é a compreensão do PSB como precursor de um discurso político novo no cenário político nacional que se norteava a partir de um modelo ideal de sociedade socialista democrática e que deixaria um legado importante para a cultura política brasileira posterior.
As origens do PSB poderiam ser encontradas nas incertezas do momento político nacional posterior a 1945, recém saído de longo período ditatorial, e que se reproduziram nos comportamentos políticos individuais e nas organizações partidárias. Nesse emaranhado de contradições, dá-se o surgimento do primeiro núcleo do PSB: a Esquerda Democrática (ED) nascida de um movimento de opinião nacional, apoiada por forças opostas à ditadura. Duas teriam sido suas matrizes principais: as ambigüidades do liberalismo brasileiro e a insatisfação com os caminhos da esquerda brasileira, apoiada fortemente nas diretrizes do Partido Comunista. Estas diferentes matrizes teriam sido responsáveis pela diversidade presente no partido formando “áreas de igualdade” que se estendiam do liberalismo social ao marxismo. Essas áreas aglutinaram-se em “núcleos de solidariedade” que configuraram no partido núcleos regionais e grupos internos diferenciados.
Com a 1ª. Convenção Nacional da Esquerda Democrática no Rio em 1946 estrutura-se definitivamente como partido político. Pela primeira vez no país funda-se um partido socialista de âmbito nacional, destacando-se em seu programa sua condição pluriclassista, “o partido não se destina a lutar pelos interesses exclusivos de uma classe , mas pelos de todos que vivem do próprio trabalho, operários do campo e das cidades, empregados em geral, além de estabelecer que deverá procurar o avanço do socialismo no interior das instituições existentes na sociedade capitalista afirmando que seu fim último é a abolição desta sociedade”.
Desta forma, os socialistas organizados em torno do novo partido faziam distinções explícitas entre reivindicações mediatas, a realização integral de um programa socialista, e imediatas como a garantia da liberdade de culto, preservação da autonomia municipal, administração de empresas do Estado ou de autarquias por conselhos mistos, desapropriação e socialização progressiva de todos os serviços públicos. Essas plataformas apresentavam uma visão gradualista de encaminhamento do socialismo, “luta por um programa de reivindicações imediatas cuja satisfação levará ao fortalecimento do regime democrático, à melhoria das condições de vida das massas trabalhadoras, que, dessa maneira irá preparando para o advento do socialismo”.
A experiência do PSB
Um dos grandes méritos do livro de Miracy Gustin e Margarida Vieira é recompor com admiração confessa a trajetória do PSB entre 45-64 sem negar que esta trajetória é marcada por ambigüidades, por avanços e recuos em grande parte devidos à própria realidade nacional. Neste caminho descontínuo de construção de experiência política original é que as autoras podem identificar três diferentes momentos na trajetória política do PSB.
Em sua fase inicial o PSB constituía um amálgama de grupos diversos com baixa capacidade de estabelecer princípios auto-referidos de ação política. É a fase dos “anti”, especialmente “antigetulismo” e “antiprestismo”. Viam na política personalista de Prestes e Getúlio o grande inimigo a ser contestado. Neste sentido, a luta contra “o encaudilhamento da política nacional” apareceria como o elemento aglutinador principal dos grupos no interior do partido.
Numa segunda fase o alvo do combate passaria a ser a política operária desenvolvida pelo PTB e pelo PCB. O foco não era mais as figuras de Vargas ou de Prestes, mas um comportamento partidário visto pelos socialistas como “atrelador” e que dividia a mesma arena de atuação do PSB. Por um lado, o PSB no momento de sua fundação já encontrara um partido comunista organizado nacionalmente, ativo e cujo líder transformara-se em figura simbóder transformara-se em figura simbanizado nacionalmente, ativo e cujo ltas e destes sae vivem do pra e das forças liberais. o liça de representação dos interesses dos trabalhadores. Por outro lado, o movimento de incorporação das massas operárias realizado por Vargas durante o Estado Novo provocara uma quase simbiose entre o recém surgido sindicalismo e o Estado Autoritário. É neste contexto que se poderia compreender a luta empreendida pelos parlamentares do PSB contra o chamado “trabalhismo ministerialista”, em favor da autonomia dos sindicatos com o objetivo de libertá-los tanto da intervenção do governo quanto dos partidos.
As grandes marcas desta segunda fase, no entanto, seriam os erros nas conduções das coligações eleitorais e a degeneração ideológica do partido. Paralelo a conduta partidária nacional que se opunha ás estratégias do “trabalhismo ministerialista”, passa a ocorrer um discurso de veemente nacionalismo que desfiguraria o partido em quase todo o país. O PSB perderia a oportunidade de se consolidar como alternativa original e se perderia no emaranhado da política nacional. Como conseqüência, sob a bandeira nacionalista e sob a liderança de socialistas pragmáticos aliada ao antipetebismo de São Paulo, apoiaria a candidatura conservadora de Juarez Távora contra a coligação PSD-PTB em nome do nacionalismo e da legalidade. Antes disto, o erro mais grave, a coligação com o Partido Democrata Cristão e o lançamento da candidatura do então deputado Jânio Quadros na eleição municipal paulistana de 1953. A justificativa era a de que para lutar contra o populismo de Ademar de Barros era preciso uma política de massas que o Partido Socialista sozinho não conseguiria empreender. Vitoriosa a campanha eleitoral, á característica carismática de Jânio Quadros capitalizaria para si próprio todas as vitórias obtidas na administração municipal e jogaria o PSB em profunda crise de identidade. O partido ficaria irremediavelmente cindido em duas facções: “janistas” e “não janistas”, os primeiros compostos por antigos integrantes que passaram a dar apoio irrestrito e por aqueles que, sendo somente janistas, ingressaram oportunisticamente no PSB e nunca se tornaram socialistas.
A exceção á esta situação de degeneração era a do PSB de Pernambuco, especialmente da cidade de Recife cuja ascensão do partido ao poder local deu-se com a preservação da identidade partidária e com a arregimentação de candidatos internos ao próprio partido. Enquanto em São Paulo o PSB unia-se ao populismo demagógico de Jânio Quadros, o socialismo pernambucano coligava-se às forças de esquerda combatidas pelo partido no resto do país. Nas eleições de 1955 com a “Frente de Recife” integrada por socialistas, comunistas e trabalhistas mais radicais, a vitória de Pelópidas Silveira permitiria experiências importantes na administração municipal do PSB em Recife inclusive com o apoio ao então deputado estadual socialista Francisco Julião para a formação das Ligas Camponesas em Pernambuco e das Ligas Urbanas no cinturão de miséria da grande Recife.
No restante do país o PSB só conseguirá se livrar da influência de Jânio Quadros nas eleições presidenciais de 1960 com o apoio aos nomes do Marechal Lott e João Goulart para presidente. Inicia-se então uma terceira fase na trajetória do PSB, a mais rica em possibilidades, momento em que vencem as alas mais ideológicas do partido que numa inversão de posições aliam-se aos grupos mais radicais do Partido Trabalhista. A partir daí o PSB começa a surgir como fator de relativa importância no cenário nacional; as Ligas Camponesas tornam-se conhecidas e se expandem; aumentam os representantes do partido nos Legislativos; começa a exercer certa liderança no meio sindical e se posiciona abertamente em solidariedade a Revolução Cubana e em favor das Reformas de Base. Possibilidades rompidas com o golpe militar de 64.
Legado do socialismo democrático
Uma das idéias luminosas do livro de Miracy Gustin e Margarida Vieira é a de que o PSB constituiu um “partido-semente”, no sentido de se configurar como agitador de uma nova cultura política expressa em projeto de cidadania que, ao contrário dos trabalhistas, comunistas e liberais, combinou a dimensão social e política da democracia. Projeto gerado nas brechas da modernização conservadora do país, na contracorrente das propostas que disputavam á hegemonia, mas que deixou sementes que iriam germinar em período posterior.
Neste sentido, o partido-semente é, antes de tudo, uma construção político-cultural. Ele busca o poder, mas carregando nova concepção do mundo, por isto seus efeitos se fazem sentir não apenas no jogo eleitoral, mas nas instâncias culturais da sociedade. Importam aí menos as vitórias eleitorais e mais a formação de quadros, menos as idéias estabelecidas e mais os debates provocados. É neste contexto que ganha relevo a defesa de determinados temas fundamentais ao socialismo democrático no programa e prática política do PSB. As sementes aparecem, por exemplo, na defesa da legalidade e do uso não instrumental da democracia; na valorização da formação política aberta e sem dogmatismos no interior do partido como nos cursos de sociologia ministrados por Antônio Cândido; na defesa da Reforma Agrária e no incentivo a todas as organizações dos trabalhadores do campo como realizado pelo deputado socialista Francisco Julião; na aposta na autonomia sindical com pluralidade de representação de interesses; na defesa da educação pública e laica como direito fundamental expresso, por exemplo, na Campanha de Defesa da Escola Pública em 1960 favorável à Anísio Teixeira contra o sistema privado e religioso de educação. Ainda mais, poder-se-ia atribuir ao PSB um legado não desprezível de pessoas que viram essa experiência, educaram-se politicamente no partido e, á medida que sobreviveram à ditadura militar, continuaram a participar da vida pública brasileira. Nomes como Pelópidas Silveira, Antônio Cândido, os irmãos Abramo – Cláudio, Lélia e Fúlvio, Francisco Julião, Paul Singer, Fábio Wanderley Reis entre outros.
Neste sentido, o PSB teria deixado para a esquerda brasileira uma perspectiva nova recuperada por partidos e coligações na atual democracia e que aparecem como fruto de uma maturação política do socialismo democrático anterior. Concepção renovada que semeou o campo das lutas pelas liberdades democráticas associadas á igualdade socialista no cenário político brasileiro.