Maria Rita Kehl
O amor é uma droga pesada
O poema que dá nome ao segundo livro de Maria Rita Kehl, editado em 1983, traz a pulsão da geração de esquerda pós 1968 e expressa, certamente, um dos máximos estéticos deste novo sentimento do mundo. Sobre a poética desta geração, no prefácio de Processos primários (Estação Liberdade, 1996), Armando Freitas Filho escreve: “tratava-se, portanto, de uma poesia militante, que não fazia greve, mas que vivia em férias, escrevendo-se quase que por sozinha, de uma poesia afinal que, se era feita de fragmentos, paradoxalmente ia compondo, a muitas mãos, um só poema ininterrupto, no qual a marca da autoria ficava em segundo plano – como aliás, ocorre em todos os movimentos artísticos nas suas primeira fases – e que não disfarçava a costura, os bastidores, a oficina artesanal e coletiva de sua confecção.”
O amor é uma droga pesada
Como se eu fosse velha muito velha
pela milésima vez correndo essas estradas
aqui barranco de terra vermelha ali capim-gordura
incendiado ao sol
a casa pobre bucólica só de longe
o gado magro o arame farpado o vira-lata caipira
e eu mulher muito velha
voltando mais uma vez da viagem sem esferas
com minha inútil bagagem de antigos registros
sentimentais
brasileiros.
o amor é uma droga pesada
perde-se a exata dimensão da vida e
o retorno é lento, cheio de falsas visões
cold turkey
me quero de volta e que esses matos voltem a fazer
sentido
sinto falta do mundo sintetizado em sua ordem nos
meus
pensamentos
não esse oco reverberando
mandalas nos ossos do crânio
não a dissolução de todas as certezas
o mundo apenas sua representação
me contendo me dizendo
a que pertenço afinal
o amor é uma droga pesada
e eu uma velhíssima mulher
gozando pela milésima vez a viagem infernal.