Valores Republicanos e Socialistas

Mais de cem anos depois de proclamada a República, os políticos e intelectuais brasileiros ainda debatem valores republicanos. Mais ainda: militantes de esquerda, mimetizando posições assumidas pela Social Democracia Européia no início do século XX, reafirmam seu compromisso com a democracia.

Este debate espelha menos a moderação dos socialistas brasileiros e mais a pobreza do nosso solo histórico. Como gostava de dizer Florestan Fernandes, continuamos patinando no ponto zero. Mas o próprio Florestan costumava lembrar que as reformas burguesas deixadas de lado pela burguesia se transformavam em exigências socialistas. Na periferia, nem o capitalismo nem a democracia política viveriam as mesmas etapas dos países centrais. Sendo assim, a democracia seria o resultado e não o ponto de partida das lutas dos trabalhadores.

Decerto, também na Europa a democracia foi ampliada pelos trabalhadores, mas as Revoluções burguesas já haviam pavimentado o caminho. As sucessivas constituições francesas eram mais avançadas do que qualquer imaginação dos liberais brasileiros do século XIX. Já na constituição do ano I, a República aparecia associada ao direito de resistência à opressão e de derrubada do governo pela força (artigos 34 e 35). No Brasil, uma simples proposta de ampliação da iniciativa de plebiscito e revogabilidade de mandatos parlamentares e executivos (como existe na Venezuela) já causou pânico.

A própria esquerda não convive bem com valores republicanos por várias razões. Entre elas uma combinação perversa de trajetória histórica e adaptação aos vícios brasileiros. Na sua história, a esquerda sempre desdenhou a participação nas instituições. Quando o fez, foi sob a forma da conveniência tática. Essa fase já foi superada, embora discursos pretensamente revolucionários sejam usados para corroborar práticas de corrupção no interior do PT que não se coadunam com a política formal numa democracia representativa. Mesmo quando os desvios “servem a causa”.

Por outro lado, alguns políticos do PT, sem nenhuma vinculação com seus valores socialistas e desconhecendo a história do partido, passaram a exercer suas funções como “técnicos” supostamente neutros na melhor das hipóteses ou como representantes do nepotismo e dos vícios da política brasileira.

A “república” é, para um partido de esquerda na periferia do capitalismo, um projeto indissociável do programa socialista. Valores supostamente socialistas desvinculados da nossa história são palavras vazias, rótulos ou palavras de ordem para agitações sem finalidade, típicas do que o velho Lênin chamava de esquerdismo. Mas valores “republicanos” sem um horizonte de esquerda e sem a compreensão que eles só podem ser conquistados pelos trabalhadores, degeneram na fraseologia esvaziada típica da tradição bacharelesca brasileira.

*Lincoln Secco é Professor do Departamento de História da USP
*Artigo enviado em 4 de maio de 2007

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